MOÇÃO APROVADA NA ASSEMBLEIA GERAL ORDINÁRIA DOS SÓCIOS DA SOCIEDADE BRASILEIRA PARA O PROGRESSO DA CIÊNCIA (SBPC), REALIZADA EM 17 DE JULHO DE 2025, NA UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DE PERNAMBUCO (UFRPE), EM RECIFE-PE, POR OCASIÃO DE SUA 77ª REUNIÃO ANUAL.
Título: Manifesto da Ciência Brasileira sobre o Projeto de Lei (PL) nº 2.159/202
Destinatários: Público em Geral, Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, Vice-Presidente da República e Ministro da Indústria e do Comércio, Geraldo Alckmin, Ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Márcio Macêdo, Ministro do Gabinete de Segurança Institucional, General Amaro, Ministro- Chefe da Casa Civil, Rui Costa, Ministra de Relações Institucionais, Gleisi Hoffmann, Ministro da Advocacia-Geral da União, Jorge Messias, Ministro da Controladoria-Geral da União, Vinícius de Carvalho, Ministro da Secretaria de Comunicação Social, Sidônio Palmeira, Ministro da Saúde, Alexandre Padilha, Ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, Ministro da Pesca e Aquicultura, André de Paula, Ministro dos Esportes, André Fufuca, Ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, Ministro da Educação, Camilo Santana, Ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, Ministro da Previdência Social, Wolney Queiroz, Ministro do Turismo, Celso Sabino, Ministra das Mulheres, Márcia Lopes, Ministra da Gestão e Inovação, Esther Dweck, Ministro da Fazenda, Fernando Haddad, Ministro das Cidades, Jader Filho, Ministro da Defesa, José Múcio, Ministro das Comunicações, Frederico Siqueira Filho, Ministra da Ciência, Tecnologia e Inovação, Luciana Santos, Ao Ministro do Trabalho, Luiz Marinho, Ministra dos Direitos Humanos, Macaé Evaristo, Ministro do Empreendedorismo, Márcio França, Ministra da Cultura, Margareth Menezes, Ministra do Meio Ambiente e Mudanças do Clima, Marina Silva, Ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, Ministro do Desenvolvimento Agrário, Paulo Teixeira, Ministro dos Transportes, Renan Filho, Ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, Ministro dos Portos e Aeroportos, Silvio Costa Filho, Ministra do Planejamento e Orçamento, Simone Tebet, Ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, Ministro da Integração, Waldez Goés, Ministro do Desenvolvimento e Assistência Social, Wellington Dias, Presidente da Câmara dos Deputados, Deputado Federal Hugo Motta, Presidente do Senado Federal, Senador Davi Alcolumbre.
Texto: “O licenciamento ambiental vigente está sob séria ameaça. Ele é o principal instrumento da Política Nacional de Meio Ambiente (Lei n° 6.938/1981) que garante proteção constitucional aos direitos da coletividade brasileira e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, para as presentes e futuras gerações. Infelizmente, essa ameaça vem do Congresso Nacional.
O Congresso Nacional aprovou o Projeto de Lei n° 2.159/2021, que agora aguarda sanção presidencial. Este PL representa o mais grave retrocesso ao sistema de proteção ambiental do país, fragilizando regras e mecanismos de análise, controle e fiscalização. Ademais, ignora solenemente o estado de emergência climática em que a humanidade se encontra e o fato de que quatro biomas brasileiros – floresta Amazônica, Cerrado, Pantanal e Caatinga – estão muito próximos dos chamados de “pontos de não retorno”. Ultrapassados esses pontos, esses biomas poderão entrar em colapso ambiental, deixando de prestar seus múltiplos serviços ecossistêmicos essenciais.
A ciência já demonstrou, com fartas evidências, que para evitarmos o tal colapso é necessário, urgentemente, zerar a destruição da vegetação nativa, combater os incêndios e a degradação ambiental e iniciar a restauração em grande escala destes biomas incluindo, entre eles, a Mata Atlântica. A propósito, o PL altera também a Lei da Mata Atlântica, bioma que já perdeu 76% de sua cobertura original, deixando os remanescentes de floresta madura vulneráveis ao desmatamento.
Além de ameaçar os biomas e o bem-estar dos brasileiros, a aprovação desse PL é incompatível com os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, como o Acordo de Paris e do Marco Global da Biodiversidade de Kunming-Montreal, entre outros atos internacionais, inclusive aqueles que protegem os direitos humanos fundamentais. Ao aprovar o projeto, o poder legislativo coloca em dúvida a liderança do Brasil nos esforços globais de mitigação e adaptação às mudanças climáticas especialmente em um momento em que sediará a COP 30, em Belém do Pará.
Este PL é uma ameaça à Constituição Federal e aos direitos dos brasileiros, além de representar uma afronta à ciência produzida por cientistas do Brasil e do mundo, incluindo membros da Academia Brasileira de Ciências (ABC), da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), do Painel Científico da Amazônia e do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas. Esta afronta é, brevemente, ilustrada abaixo nos impactos que resultarão do PL aprovado.
Aumento potencial de emissões de carbono. A criação de uma Licença por Adesão e Compromisso (LAC) permitirá emissões de licenças automáticas, baseadas apenas na autodeclaração do empreendedor, para empreendimentos de médio porte e médio potencial poluidor. Esse processo desconsidera análises técnicas prévias e os efeitos futuros da LAC sobre as emissões nacionais de gases de efeito estufa e sobre recursos naturais, incluindo a rica biodiversidade do país. O PL ainda coloca em risco papel constitucional do Estado na prevenção danos ambientais e climáticos, já que o empreendedor será dispensado de grande parte de suas obrigações.
Dispensa de licenciamento para o agronegócio. A exigência apenas de um formulário auto declaratório para a dispensa de licenciamento, sem qualquer verificação sobre impactos ambientais ou compromissos firmados no âmbito dos programas de regularização ambiental, agrava a situação dos biomas já bastante ameaçados, prejudicando, em última análise, o próprio agronegócio. Nesse aspecto, é importante ressaltar que há evidências científicas robustas de que o regime de chuvas no país já sofreu alterações significativas com impactos na produção de alimentos e commodities. Estas alterações vêm sendo provocadas pela mudança global do clima associada a alterações na vegetação nativa que cobrem estas áreas. Dessa forma, o enfraquecimento do licenciamento ambiental, contido no PL recém aprovado, compromete o futuro da agricultura nacional.
Desvinculação do licenciamento da outorga de uso da água. O PL ainda estabelece que o licenciamento ambiental seja desvinculado de outorgas de uso da água, desconsiderando que a outorga é um instrumento da Política Nacional de Recursos Hídricos e de gestão da água fundamental para garantir a segurança hídrica e o acesso à água em qualidade e quantidade. Mantido esse desvinculamento, a análise do licenciamento ambiental ficará completamente prejudicada para empreendimentos que utilizam a água (como por exemplo hidrelétricas, reservatórios de abastecimento público, estações de tratamento de esgotos e de efluentes). Essa desvinculação ainda ignora a progressiva redução de disponibilidade de água no solo devido ao avanço da redução de chuvas em vastas regiões do país. Em alguns biomas, como no Cerrado, por exemplo, mais da metade dos municípios já apresentam redução de cerca de 30% da água superficial e, assim, a desvinculação do licenciamento das outorgas, além de agravar a escassez hídrica, potencializará conflitos pelo uso da água.
Ameaça às Unidades de Conservação (UCs). O texto aprovado estabelece a necessidade de avaliação de impactos e definição de condicionantes somente quando existirem UCs ou zonas de amortecimento nas regiões diretamente afetadas pelos empreendimentos. O PL exclui a necessidade de avaliação de impactos ambientais indiretos em todas as UCs, o que é uma visão distorcida e reducionista, uma vez que ignora a conectividade espacial e funcional entre diferentes regiões com coberturas de vegetação nativa distintas. Ademais, os pareceres dos órgãos de gestão envolvidos (ICMBio e órgãos estaduais e municipais competentes) não terão caráter vinculante, permitindo que os órgãos licenciadores, sem competência legal e capacidade técnica para dispor sobre as temáticas referidas, o façam.
Ameaças a direitos dos povos e comunidades tradicionais. Caso a nova Lei seja sancionada, cerca de 80% dos territórios quilombolas (TQs) e 32,6% das Terras Indígenas (TIs), que são áreas aguardando titulação e homologação, serão ignoradas nos processos de licenciamento ambiental. Não estão previstas medidas de prevenção, mitigação e compensação de impactos socioambientais ou de controle do desmatamento. Isto coloca em xeque, não somente os direitos, mas também o papel que esses povos e comunidades têm na conservação ambiental e na prestação de serviços ambientais. Por exemplo, uma boa parte do regime de chuva e do armazenamento de carbono em vegetação nativa são mantidos por essas populações. Terras indígenas na Amazônia atuam como um grande “ar- condicionado” da paisagem. As temperaturas dentro das TIs chegam a ser entre 2° e 5° C mais baixas do que nos arredores. O PL aprovado não atenta a essas características, pois a atuação das autoridades envolvidas, assim como a análise técnica e a exigência de condicionantes, fica restrita apenas aos casos de impactos diretos nas áreas de influência direta do empreendimento potencialmente degradadores, não considerando impactos indiretos ou na escala da paisagem.
Condicionantes ambientais fragilizadas. O PL limita a responsabilidade do empreendedor diante dos danos causados ou agravados pelo próprio empreendimento, inclusive em casos de grandes obras que pressionam os serviços públicos ou estimulam o desmatamento e a grilagem. Esta falta de responsabilização poderá agravar ainda mais o avanço do desmatamento ilegal e da grilagem, em especial na Amazônia. Atualmente, cerca de 50% do desmate nesse bioma ocorre em terras públicas, em especial nas chamadas “Florestas Públicas não Destinadas”. São aquelas florestas que aguardam, por lei, a destinação, pelos governos federal e estaduais, para a conservação ou uso sustentável de recursos naturais.
Inexistência de uma lista mínima de atividades sujeitas ao licenciamento. Pelo texto aprovado do PL, estados e municípios decidirão, isoladamente, o que licenciar. Isto levará a distorções profundas entre regiões, com atividades semelhantes sendo tratadas de formas distintas, onde o critério técnico- científico poderá ser ignorado, dependendo da pressão política local. O resultado será um sistema fragmentado, ignorante do ponto de vista científico e sujeito à lógica meramente do poder público local e regional. A falta de harmonização das regras também aumentará a insegurança jurídica.
Criação da Licença Ambiental Especial (LAE). O PL ainda transfere ao Conselho de Governo, órgão político vinculado à Presidência da República, o poder de definir diretrizes nacionais e enquadrar projetos como “estratégicos”, sem critérios claros, transparência ou controle social, rompendo com os princípios técnicos e legais do licenciamento ambiental. Aqui, novamente, a ciência será, no máximo, coadjuvante. A LAE será concedida por procedimento monofásico, ou seja, sem a análise prévia, de instalação e de operação em fases distintas. Sem maiores detalhes, a emenda aprovada pode institucionalizar a liberação acelerada de projetos que necessitam de análise mais aprofundada. Inúmeros estudos científicos já demonstraram o grave efeito socioambiental de investimentos em infraestrutura mal planejados, mesmo sob a vigência do sistema atual de licenciamento, que é mais rigoroso do que o agora aprovado pelo Congresso. Sabe-se, por exemplo, que 70% de todo o desmatamento na Amazônia está concentrado ao redor de obras de infraestrutura. A LAE poderá, portanto, agravar essa condição, em especial nas inciativas que buscam a abertura e pavimentação de rodovias (Ex. BR-319) e ferrovias (Ex. Ferrogrão) e a exploração de petróleo e gás em áreas ecologicamente sensíveis (Ex. Margem Equatorial), sem a devida análise técnica de impacto ambiental.
Finalmente, além da clara ameaça a preceitos constitucionais, o PL fere uma série de legislações fundamentais para proteção dos ecossistemas e sua biodiversidade, como a Política Nacional de Meio Ambiente (Lei n° 6938/1981), o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Lei n° 9985/2000), a Lei de Crimes Ambientais (Lei n° 9.605/1998), além de fragilizar o Sistema Nacional de Meio Ambiente (SISNAMA). Assim, a discussão sobre aprimoramentos no licenciamento ambiental precisa ser feita com responsabilidade e ampla participação da sociedade e, em especial, da comunidade científica.
Considerações finais. As alterações introduzidas no sistema de licenciamento ambiental pelo Projeto de Lei n° 2.159/2021 parecem favorecer a interesses particulares ou setoriais, pois ignoram as inúmeras evidências científicas que demonstram a gravidade da crise climática e ambiental em curso no país. A Constituição Federal de 1988 prevê o licenciamento ambiental como matéria para a garantia do meio ambiente ecologicamente equilibrado, direito fundamental, e impõe ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo. O PL desrespeita esse preceito constitucional e ameaça um direito que é de todos os brasileiros – um direito fundamental para um futuro minimamente promissor em um mundo sob estado de “emergência climática”.
Dessa forma, a comunidade científica reunida na Assembleia Geral de Sócios da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, no dia 17 de julho, em Recife-PE, repudia o PL nº 2.159/2021 e solicita que seja vetado pelo Presidente da República, com a devida reconsideração pelo Congresso Nacional visando a manutenção de tão importante veto pela vida.
Recife, 17 de julho de 2025.”
O documento pode ser acessado neste link.
SBPC