EDITORIAL: A memória que se esvai, a irresponsabilidade que cresce

“O enfraquecimento de tratados, o uso político de armas nucleares e o esquecimento do que ocorreu há apenas 80 anos – e cujos impactos continuam vivos e visíveis - exigem de nossa comunidade científica, dos governos e da sociedade civil uma resposta uníssona e definitiva”, escreve Francilene Procópio Garcia, presidente da SBPC, para a editoria especial do JC Notícias desta sexta-feira

WhatsApp Image 2025-08-08 at 16.23.05A memória histórica se dissolve entre guerras cada vez mais desmedidas e lideranças políticas que flertam abertamente com o autoritarismo e o colapso das normas internacionais. Assim completamos esta semana 80 anos do triste e vergonhoso lançamento das bombas atômicas sobre as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki. Oito décadas se passaram, muito se falou de paz. O mesmo conhecimento que serviu à destruição em massa também impulsionou avanços para a qualidade de vida em todo o planeta. Mas chegamos a 2025 em um mundo novamente em guerra, que ainda usa a ameaça nuclear como um símbolo de poder bélico e supremacia. O medo segue sendo a outra face da moeda que pede paz.

A construção da bomba atômica foi resultado de um avanço científico sem precedentes no início do século XX, com a redescoberta do atomismo, a descoberta da radioatividade e a equação E = mc², de Einstein, relacionando massa e energia. O desafio de controlar uma reação nuclear em cadeia foi superado em 1942, quando o físico italiano Enrico Fermi e sua equipe ativaram o reator Chicago Pile-1. A partir daí, com o impulso da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos investiram no famoso “Projeto Manhattan”, que mobilizou centenas de cientistas, muitos deles exilados da Europa sob o nazismo. O projeto, realizado no deserto do Arizona, uniu ciência, engenharia e aparato militar em um esforço coordenado que inauguraria a era da chamada “big science”.

Em 6 e 9 de agosto de 1945, as bombas lançadas pelos Estados Unidos sobre o Japão mataram instantaneamente mais de 130 mil pessoas e condenaram milhares de outras a uma morte lenta por radiação. O horror forçou a rendição do Japão e consolidou a supremacia tecnológica e militar dos Estados Unidos.

A corrida armamentista que se seguiu tornou a Física a ciência central da Guerra Fria. O prestígio acadêmico cresceu, mas a herança era maldita: os próprios físicos passaram a questionar os rumos da ciência que ajudaram a criar. Muitos se reuniram para se manifestar contra o uso bélico do conhecimento, para advogar por uma ciência pela paz. Manifestações como o Göttingen Manifesto (1957), os encontros do movimento PUGWASH (desde 1955, com o manifesto de Bertrand Russel e Albert Einstein) e o Bulletin of the Atomic Scientists (fundado em 1945) se constituíram como trincheiras morais contra a proliferação nuclear. No CERN, na Suíça, criado em 1954, os cientistas buscaram preservar a pesquisa subatômica longe da destruição.

A tecnologia nuclear se desenvolveu envolta em segredo e vigilância. Em 1946, a Lei McMahon proibiu os EUA de compartilharem informações atômicas, mesmo com seus aliados. Formou-se uma geopolítica do átomo baseada no controle de conhecimento e insumos. Ao lado dos EUA, outras potências nucleares emergiram: União Soviética, Reino Unido, França, China, Índia, Paquistão, Coreia do Norte.

O arsenal nuclear global, que chegou a 70.300 ogivas em 1986, foi reduzido, mas continua alarmante: segundo o Instituto Internacional de Estudos para a Paz de Estocolmo (SIPRI), o mundo acumula hoje 12.241 ogivas nucleares. EUA (5.277) e Rússia (5.449) concentram 88% do total. A China, com cerca de 600, acelera sua expansão rumo a mais de 1.000 ogivas até 2030. França (290), Reino Unido (225), Índia (180), Paquistão (170) e Israel (90) completam o cenário de um mundo ainda refém da lógica da dissuasão violenta.

Durante a Guerra Fria, essa lógica se formalizou como MAD — Destruição Mútua Assegurada: o equilíbrio instável entre potências armado com armas suficientes para destruir a humanidade múltiplas vezes. O presidente norte-americano Dwight Eisenhower alertou, em 1961, sobre o poder corrosivo do complexo militar-industrial, que molda até hoje orçamentos, políticas e prioridades de pesquisa. O “sacerdócio nuclear”, composto por milhares de técnicos civis e militares, criou uma cultura de sigilo e paranoia incompatível com os ideais de ciência aberta e democracia.

Nos anos 1950, buscou-se ressignificar o átomo com programas como “Átomos para a Paz”, a criação da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) e projetos de integração como o EURATOM. Surgiram promessas de energia barata e abundante (“too cheap to meter”), e símbolos como o monumento Atomium, em Bruxelas, celebraram essa visão. Mas a separação entre usos civis e militares nunca foi plena: o ciclo do combustível é o mesmo, a tecnologia é dual e os riscos permanecem.

Hoje, com a intensificação de conflitos, a crise climática, o avanço da desinformação e o desprezo por consensos científicos, o mundo volta a flertar com o seu apocalipse. O Relógio do Juízo Final, mantido pelo Bulletin of the Atomic Scientists, marca 90 segundos para a meia-noite — o ponto mais próximo do colapso desde 1947. O mundo vive o maior aumento nos gastos militares desde a Guerra Fria: em 2024, o montante global atingiu US$ 2,72 trilhões, alta de 9,4% em relação ao ano anterior, com EUA, China, Rússia, Alemanha e Índia respondendo por 60% do total. Na Europa, incluindo a Rússia, o crescimento foi de 17% – um ciclo de rearmamento que ameaça deslocar recursos vitais de áreas como saúde, educação e combate às mudanças climáticas.

Enquanto Donald Trump promete ampliar o arsenal norte-americano e desmonta tratados de controle, Vladimir Putin instrumentaliza a ameaça atômica na guerra da Ucrânia e Benjamin Netanyahu, à frente de um dos mais brutais conflitos contemporâneos, mantém a política ambígua de silêncio sobre as ogivas israelenses. Mais que nunca, ignorar o passado é um risco que não podemos nos permitir correr.

O Brasil, embora não possua armas nucleares, desenvolveu um programa robusto de energia atômica para fins pacíficos. É signatário do Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP) e, junto à Argentina, criou a ABACC — Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares — mostrando que é possível manter a soberania tecnológica sem sucumbir à lógica da intimidação. Além disso, o país é um dos signatários do Tratado de Tlatelolco, firmado em 1967 na Cidade do México, que estabeleceu a primeira zona livre de armas nucleares em uma área densamente povoada, cobrindo toda a América Latina e o Caribe — um marco na diplomacia internacional e na defesa do desarmamento.

Em consonância com a política nacional, a SBPC reafirma seu compromisso com a ciência voltada à paz, aos direitos humanos e à sustentabilidade da vida no planeta. O enfraquecimento de tratados, o uso político de armas nucleares e o esquecimento do que ocorreu há apenas 80 anos – e cujos impactos continuam vivos e visíveis – exigem de nossa comunidade científica, dos governos e da sociedade civil uma resposta uníssona e definitiva.

Como lembra a canção “Rosa de Hiroshima”, de Vinícius de Moraes, imortalizada na voz de Ney Matogrosso, o que brota da destruição é apenas silêncio, mutilação e esquecimento. “A rosa radioativa, estúpida e inválida” continua sendo o símbolo de um fracasso coletivo que não podemos repetir. A bomba não é apenas um símbolo do passado — é uma ameaça presente e contínua, até que nossas sociedades exijam de seus líderes que priorizem a paz acima da intimidação.

Francilene Procópio Garcia, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC

Veja as notas do Especial da Semana – 80 anos das bombas de Hiroshima e Nagasaki

BBC, 06/08/2025 – Hiroshima e Nagasaki: como foi o ‘inferno’ em que milhares morreram por causa das bombas atômicas

USA Today, 06/08/2025 – 80 anos após Hiroshima: até quando vamos fingir que armas nucleares nos protegem? (em inglês)

CBN, 06/08/2025 – Hiroshima alerta contra armas nucleares ao relembrar 80 anos da bomba atômica: ‘Visitem e testemunhem’

The Guardian, 06/08/2025 – Aniversário de Hiroshima: prefeito diz que crises na Ucrânia e no Oriente Médio mostram que o mundo está ignorando ‘tragédias’ nucleares (em inglês)

Bulletin of the Atomic Scientists, 06/08/2024 – Reflexões sobre Hiroshima e Nagasaki 80 anos depois (em inglês)

Confederação Sindical Internacional (Ituc-CSI), 06/08/2025 – Oitenta anos após as bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki, a crescente corrida armamentista está nos afastando ainda mais da paz? (em inglês)

Comitê Internacional da Cruz Vermelha, 05/08/2025 – 80 anos após os bombardeios atômicos de Hiroshima e Nagasaki: Um apelo à eliminação das armas nucleares (em inglês)

Greenpeace, 06/08/2025 – 80 anos desde Hiroshima e Nagasaki — tempo para um mundo sem energia nuclear para um futuro pacífico e sustentável (em inglês)

Al Jazeera, 06/08/2025 – Opinião pública está dividida enquanto os EUA celebram o 80º aniversário do bombardeio de Hiroshima (em inglês)

Instituto Humanitas Unisinos, 07/08/2025 – “As armas nucleares criam uma falsa sensação de proteção” 

ELN, 07/08/2025 – Usando as lições de Hiroshima e Nagasaki para promover discursos de desarmamento (em inglês)

G1, 06/08/2025 – 80 anos da bomba de Hiroshima: sobreviventes ainda são vítimas de discriminação

Folha de S. Paulo, 06/08/2025 – Na rendição do Japão, o medo do comunismo foi tão eficaz quanto bombas

El País, 02/08/2025 – Hiroshima, o flash mortal que mudou o mundo (em espanhol)

Deutsche Welle Brasil, 30/06/2025 – Como a América Latina ficou livre de armas nucleares

The Conversation Brasil, 26/06/2025 – Nova corrida nuclear desafia papel histórico do Brasil no desarmamento

BBC Brasil, 12/02/2025 – Por que o Brasil não tem bomba atômica?