EDITORIAL – TWAS 2025: Unir forças com nossos vizinhos

“Aqui mesmo, em nosso entorno, há inúmeras possibilidades de fortalecer um novo eixo de força científica global”, escreve Francilene Procópio Garcia, presidente da SBPC, para editoria especial do JC Notícias desta sexta-feira, que traz a cobertura da 17ª Conferência Geral da Academia Mundial de Ciências, realizada esta semana, no Rio de Janeiro

WhatsApp Image 2025-10-03 at 13.55.14Mais de 300 cientistas de 64 países do Sul Global se reuniram esta semana no Rio de Janeiro para a 17ª Conferência Geral da Academia Mundial de Ciências (TWAS). O encontro foi a afirmação de que a ciência do Sul Global deixou de ser figurante para se tornar protagonista de uma agenda que combina soberania, justiça social e desenvolvimento sustentável.

Mudanças climáticas e inteligência artificial despontam como os grandes vetores e dilemas do nosso tempo. E a eles soma-se outro, a soberania. Porque não há país soberano sem ciência independente, pujante e bem estruturada.

O alicerce de um país justo e igualitário são políticas públicas de longo prazo, políticas de Estado que respondam às necessidades de cada nação e que blindem a ciência das marés eleitorais. E o que se viu no Rio de Janeiro foi um painel impressionante do que o Sul Global, com todas as suas vulnerabilidades, já produz em ciência, tecnologia e inovação: uma ciência resiliente, criativa, pouco conhecida fora de nossas fronteiras, mas absolutamente merecedora de reconhecimento.

Países com trajetórias, línguas e realidades distintas apresentaram soluções enraizadas em suas necessidades, demonstrando que excelência científica também se faz longe dos grandes centros tradicionais. A lista fala por si: África do Sul, Índia, Uganda, Nigéria, Tailândia, Burkina Faso, Tunísia, Gana, Malásia, Guatemala, Angola, Brasil, China.

O Uzbequistão, por exemplo, transformou a crise sanitária da covid-19 em um ecossistema permanente de vacinas. Também vimos mulheres liderando instituições científicas, ministérios, academias. Do continente africano à Ásia, da América Latina ao Caribe, desfilaram nesses quatro dias de evento histórias de países que, com recursos limitados, ou políticas muito bem coordenadas, reinventam-se para produzir conhecimento útil à sociedade. Ouvimos ainda, emocionados, o relato da professora Hala J. El-Khozondar, que continua lecionando, à distância, de Londres, para seus alunos em Gaza, mostrando que a educação, mesmo em meio aos escombros de uma guerra desumana, sustenta a esperança e constrói futuros.

O mundo assiste a uma transição no eixo do poder científico. Ele se move do Norte, sobretudo dos Estados Unidos, para o Sul, onde a China desponta como potência e onde a produção científica cresce em escala e relevância. Esse deslocamento nos abre uma oportunidade rara: unirmos forças com nossos vizinhos, reforçarmos a cooperação regional e aproveitarmos os bons ventos para intensificar nossa agenda científica.

O Brasil vive um momento particularmente propício. Depois de anos difíceis, retomamos a ambição de uma política de Estado para ciência, tecnologia e inovação, ancorada na Estratégia Nacional (ENCTI 2026–2035) e no legado da 5ª Conferência Nacional de CT&I. Temos um governo que declara acreditar na ciência, temos décadas de investimento em formação de recursos humanos que hoje compõem um verdadeiro exército de pesquisadores, temos instituições sólidas e uma biodiversidade incomparável. Faltam-nos ainda recursos consistentes, infraestrutura moderna e uma política estável. Mas estamos no caminho certo.

Cooperação é a palavra. Defendemos parcerias Sul–Sul justas e simétricas, que compartilhem laboratórios, dados e plataformas, e valorizem conhecimentos locais. Em IA, isso significa soberania digital: padrões abertos, governança baseada em direitos humanos, avaliação de risco e impacto, e investimentos que integrem computação com ciências sociais e humanidades. Sem regulação adequada, reproduziremos assimetrias; com ela, abriremos caminho para soluções que atendam a nossas línguas, culturas e economias. No clima, proteger florestas tropicais, agricultura e segurança alimentar exige ciência de fronteira, financiamento climático e inovação que gerem renda, reduzam emissões e preservem vidas — especialmente na nossa Amazônia, que sustenta regimes de chuva e a estabilidade regional.

A 17ª Conferência Geral da TWAS deixou claro que nos beneficiamos enormemente ao conhecer melhor nossos vizinhos mais próximos. Descobrimos afinidades, identificamos complementaridades e percebemos que aqui mesmo, em nosso entorno, há inúmeras possibilidades de alavancar a ciência, a tecnologia e a inovação.

O encontro também nos devolveu algo essencial: a confiança. Ficou evidente que o eixo do poder científico está se deslocando, e que a contribuição do Sul Global é crescente em produção de conhecimento, formação de pessoas e soluções tecnológicas.

Como presidente da SBPC, reafirmo os compromissos que nos unem à missão da TWAS: defender a ciência e a democracia, aproximar universidades, escolas e sociedade, e construir pontes entre pesquisa, educação, inovação e políticas públicas. Soberania não se decreta. Constrói-se com investimento contínuo, com instituições robustas, com cooperação que gere capacidade local e com avaliação rigorosa de resultados. É assim que transformamos ciência em bem-estar, produtividade e dignidade.

Estamos no lugar certo, no momento certo. Cabe a nós transformar esta oportunidade em ação concreta: fortalecer redes científicas do Sul, investir com visão de longo prazo e assegurar que ciência, democracia e justiça social caminhem juntas.

Francilene Procópio Garcia, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC

 

Veja as notas do Especial da Semana – 17ª Conferência Geral da Academia Mundial de Ciências

Jornal da Ciência, 30/0 – “Queremos um sistema global de ciência mais justo”

JC Notícias – “As soluções que buscamos precisam ser colaborativas, guiadas pela ciência e enraizadas na solidariedade”

Jornal da Ciência – O Sul Global tem que conquistar seu espaço na ciência mundial, afirma Marcelo Knobel

JC Notícias – Soberania digital e IA no Sul Global

Science Arena – IA pode ampliar desigualdades no Sul global, alertam cientistas

JC Notícias – Nísia Trindade e George Fu Gao falam dos desafios na saúde global na Conferência da Academia Mundial de Ciências

ABC – TWAS olha para o futuro

Veja, 02/10/2025 – A cientista que há mais de 30 anos está na vanguarda da proteção de meninas africanas contra o HIV

ABC – TWAS e o Brasil: uma história entrelaçada

ABC – Uma ocasião para ciência, história e visão

CNPq – “A ciência fura muros de preconceito e intolerância”, afirma físico Luiz Davidovich, premiado pela Academia Mundial de Ciências

Carta Capital – Um brasileiro no Olimpo

ABC – Em sua abertura, 17ª Conferência Geral da Academia Mundial de Ciências traz panorama das atuais crises do mundo

ABC – “Ciência precisa estar no centro das decisões”, diz Lula em vídeo na conferência da Academia Mundial de Ciências

ABC – Líderes científicos globais reuniram-se no Brasil para a abertura da 17ª Conferência Geral da TWAS

MCTI – MCTI discute em conferência mundial soluções para alcançar os objetivos de desenvolvimento sustentável

ABC – Regulação de IA, mudanças climáticas e segurança alimentar devem ser prioridades globais

Science Arena – Evento discute papel da ciência para enfrentar desafios globais urgentes