Mais de 300 cientistas de 64 países do Sul Global se reuniram esta semana no Rio de Janeiro para a 17ª Conferência Geral da Academia Mundial de Ciências (TWAS). O encontro foi a afirmação de que a ciência do Sul Global deixou de ser figurante para se tornar protagonista de uma agenda que combina soberania, justiça social e desenvolvimento sustentável.
Mudanças climáticas e inteligência artificial despontam como os grandes vetores e dilemas do nosso tempo. E a eles soma-se outro, a soberania. Porque não há país soberano sem ciência independente, pujante e bem estruturada.
O alicerce de um país justo e igualitário são políticas públicas de longo prazo, políticas de Estado que respondam às necessidades de cada nação e que blindem a ciência das marés eleitorais. E o que se viu no Rio de Janeiro foi um painel impressionante do que o Sul Global, com todas as suas vulnerabilidades, já produz em ciência, tecnologia e inovação: uma ciência resiliente, criativa, pouco conhecida fora de nossas fronteiras, mas absolutamente merecedora de reconhecimento.
Países com trajetórias, línguas e realidades distintas apresentaram soluções enraizadas em suas necessidades, demonstrando que excelência científica também se faz longe dos grandes centros tradicionais. A lista fala por si: África do Sul, Índia, Uganda, Nigéria, Tailândia, Burkina Faso, Tunísia, Gana, Malásia, Guatemala, Angola, Brasil, China.
O Uzbequistão, por exemplo, transformou a crise sanitária da covid-19 em um ecossistema permanente de vacinas. Também vimos mulheres liderando instituições científicas, ministérios, academias. Do continente africano à Ásia, da América Latina ao Caribe, desfilaram nesses quatro dias de evento histórias de países que, com recursos limitados, ou políticas muito bem coordenadas, reinventam-se para produzir conhecimento útil à sociedade. Ouvimos ainda, emocionados, o relato da professora Hala J. El-Khozondar, que continua lecionando, à distância, de Londres, para seus alunos em Gaza, mostrando que a educação, mesmo em meio aos escombros de uma guerra desumana, sustenta a esperança e constrói futuros.
O mundo assiste a uma transição no eixo do poder científico. Ele se move do Norte, sobretudo dos Estados Unidos, para o Sul, onde a China desponta como potência e onde a produção científica cresce em escala e relevância. Esse deslocamento nos abre uma oportunidade rara: unirmos forças com nossos vizinhos, reforçarmos a cooperação regional e aproveitarmos os bons ventos para intensificar nossa agenda científica.
O Brasil vive um momento particularmente propício. Depois de anos difíceis, retomamos a ambição de uma política de Estado para ciência, tecnologia e inovação, ancorada na Estratégia Nacional (ENCTI 2026–2035) e no legado da 5ª Conferência Nacional de CT&I. Temos um governo que declara acreditar na ciência, temos décadas de investimento em formação de recursos humanos que hoje compõem um verdadeiro exército de pesquisadores, temos instituições sólidas e uma biodiversidade incomparável. Faltam-nos ainda recursos consistentes, infraestrutura moderna e uma política estável. Mas estamos no caminho certo.
Cooperação é a palavra. Defendemos parcerias Sul–Sul justas e simétricas, que compartilhem laboratórios, dados e plataformas, e valorizem conhecimentos locais. Em IA, isso significa soberania digital: padrões abertos, governança baseada em direitos humanos, avaliação de risco e impacto, e investimentos que integrem computação com ciências sociais e humanidades. Sem regulação adequada, reproduziremos assimetrias; com ela, abriremos caminho para soluções que atendam a nossas línguas, culturas e economias. No clima, proteger florestas tropicais, agricultura e segurança alimentar exige ciência de fronteira, financiamento climático e inovação que gerem renda, reduzam emissões e preservem vidas — especialmente na nossa Amazônia, que sustenta regimes de chuva e a estabilidade regional.
A 17ª Conferência Geral da TWAS deixou claro que nos beneficiamos enormemente ao conhecer melhor nossos vizinhos mais próximos. Descobrimos afinidades, identificamos complementaridades e percebemos que aqui mesmo, em nosso entorno, há inúmeras possibilidades de alavancar a ciência, a tecnologia e a inovação.
O encontro também nos devolveu algo essencial: a confiança. Ficou evidente que o eixo do poder científico está se deslocando, e que a contribuição do Sul Global é crescente em produção de conhecimento, formação de pessoas e soluções tecnológicas.
Como presidente da SBPC, reafirmo os compromissos que nos unem à missão da TWAS: defender a ciência e a democracia, aproximar universidades, escolas e sociedade, e construir pontes entre pesquisa, educação, inovação e políticas públicas. Soberania não se decreta. Constrói-se com investimento contínuo, com instituições robustas, com cooperação que gere capacidade local e com avaliação rigorosa de resultados. É assim que transformamos ciência em bem-estar, produtividade e dignidade.
Estamos no lugar certo, no momento certo. Cabe a nós transformar esta oportunidade em ação concreta: fortalecer redes científicas do Sul, investir com visão de longo prazo e assegurar que ciência, democracia e justiça social caminhem juntas.
Francilene Procópio Garcia, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC
Veja as notas do Especial da Semana – 17ª Conferência Geral da Academia Mundial de Ciências
Jornal da Ciência, 30/0 – “Queremos um sistema global de ciência mais justo”
JC Notícias – “As soluções que buscamos precisam ser colaborativas, guiadas pela ciência e enraizadas na solidariedade”
Jornal da Ciência – O Sul Global tem que conquistar seu espaço na ciência mundial, afirma Marcelo Knobel
JC Notícias – Soberania digital e IA no Sul Global
Science Arena – IA pode ampliar desigualdades no Sul global, alertam cientistas
JC Notícias – Nísia Trindade e George Fu Gao falam dos desafios na saúde global na Conferência da Academia Mundial de Ciências
ABC – TWAS olha para o futuro
Veja, 02/10/2025 – A cientista que há mais de 30 anos está na vanguarda da proteção de meninas africanas contra o HIV
ABC – TWAS e o Brasil: uma história entrelaçada
ABC – Uma ocasião para ciência, história e visão
Carta Capital – Um brasileiro no Olimpo
ABC – Líderes científicos globais reuniram-se no Brasil para a abertura da 17ª Conferência Geral da TWAS
ABC – Regulação de IA, mudanças climáticas e segurança alimentar devem ser prioridades globais
Science Arena – Evento discute papel da ciência para enfrentar desafios globais urgentes