Ter uma casa segura, com acesso a água, esgoto, energia e transporte, é o fundamento da vida digna e o ponto de partida de uma vida digna e o alicerce de qualquer política pública. O artigo 6º da Constituição Federal estabelece a moradia como um direito social, ao lado da educação, da saúde e do trabalho. A precariedade habitacional e a ausência de planejamento urbano expõem, no entanto, a distância entre a norma constitucional e a prática pública. Morar dignamente, base da cidadania, continua sendo um privilégio, um direito ausente nas prioridades orçamentárias, fragmentado entre esferas de governo e substituído por respostas emergenciais a tragédias que se repetem.
Com isso, perpetuamos múltiplas faces da exclusão habitacional. Mais de 335 mil pessoas vivem nas ruas e milhares ocupam moradias precárias, encostas instáveis, várzeas sujeitas a alagamentos ou próximas a barragens em risco. E a crise climática amplifica esse cenário de desigualdades, resultado de décadas de omissão no planejamento urbano. As enchentes no Sul do País, os alagamentos na periferia de São Paulo, deslizamentos de terra no Norte e em Minas Gerais deixam muito clara a ausência de políticas integradas e de longo prazo. Essa ausência de planejamento revela não apenas uma falha administrativa, mas a falta de integração entre conhecimento científico e decisão pública. Reagimos a desastres, mas seguimos sem planejar os territórios com base em conhecimento e prevenção.
O planejamento urbano precisa recuperar seu caráter público e científico, orientado por qualidade de vida, segurança, sustentabilidade e justiça social. Isso exige fortalecer e modernizar continuamente os sistemas de monitoramento e alerta, investir em dados e tecnologias de prevenção e colocar a habitação no centro das políticas intersetoriais que articulem saneamento, transporte, adaptação climática e saúde. Não há sustentabilidade possível em cidades que negam o direito ao abrigo e ignoram a função social da propriedade, princípio que orienta a própria Constituição.
A moradia, além de proteção física, é também um determinante da saúde mental e da coesão social. Pesquisa recente da Habitat para a Humanidade Brasil demonstra que famílias que conquistaram uma casa adequada relatam aumento da autoestima, sensação de segurança e bem-estar familiar. Um lar estável reduz o estresse, previne doenças e cria as condições básicas para uma vida plena.
A política habitacional não pode permanecer subordinada ao calendário eleitoral nem restrita à construção ou reformas das unidades. É necessário requalificar a concepção de moradia, adotar instrumentos de planejamento regional e integrar ações. Traduzir diagnósticos em políticas públicas, com continuidade e coordenação. A omissão diante da precariedade urbana não é apenas uma falha administrativa — é uma violação de direitos e um retrocesso civilizatório.
Nesse sentido, o lançamento do programa Reforma Casa Brasil, R$ 40 bilhões em crédito para reformas, ampliações e adequações de moradias, em parceria entre os ministérios das Cidades e da Fazenda e a Caixa Econômica Federal, reforça o papel do Estado no financiamento da qualidade de vida. Esse tipo de instrumento, que permite não apenas a aquisição, mas a requalificação da moradia existente, dialoga diretamente com a nossa tese de que é necessário colocar a habitação no centro das políticas intersetoriais. Contudo, é preciso que esse programa seja integrado aos planos de urbanização, saneamento e adaptação climática nos territórios vulneráveis para que não se limite a repassar crédito, mas contribua para que as habitações reformadas estejam inseridas em cidades resilientes, conectadas e ambientalmente seguras.
Belém, que sediará a COP30, ilustra, neste momento, esse desafio e oportunidade. Suas “baixadas” amazônicas condensam a desigualdade entre a urgência do discurso ambiental e a lentidão das soluções para quem vive sob risco. Receber o mundo exige demonstrar que o Brasil é capaz de transformar conhecimento científico em políticas que protejam vidas e garantam direitos básicos e façam da Amazônia urbana um modelo de desenvolvimento sustentável, articulando ciência, clima e inclusão.
A ciência e as universidades precisam estar na base dessas políticas, das análises ambientais à engenharia urbana, passando pelas dimensões sociais e sanitárias que sustentam o bem-estar coletivo. Moradia, segurança, saúde e dignidade são dimensões inseparáveis do direito existir com proteção, pertencimento e garantia de poder vislumbrar um futuro melhor. Planejar cidades com qualidade de vida e sustentabilidade é garantir o direito fundamental à moradia e afirmar que o Brasil quer um futuro no qual a dignidade não seja privilégio, mas política de Estado.
Francilene Procópio Garcia, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC)
Veja as notas do Especial da Semana – Moradia
CNN Brasil, 20/10/2025 – Governo Lula lança programa com R$ 40 bilhões para reformas de moradias
Observatório do Terceiro Setor, 20/10/2025 – A moradia é a primeira linha de defesa frente à crise climática
Nações Unidas, 06/10/2025 – Dia Mundial do Habitat 2025 destaca resposta a crises urbanas
Nações Unidas, 07/07/2025 – Moradia Adequada para Todas as Pessoas: Relatório Anual do ONU-Habitat 2024
Observatório das Metrópoles, 23/10/2025 – Impactos das mudanças climáticas e a luta por moradia digna em Belém: desafios e contradições da COP30
Habitat Brasil, setembro/2025 – Relatório de Percepções de Mudanças 2024 mostra como moradia digna protege a saúde mental
Agência Brasil, 18/04/2025 – Mais de 335 mil pessoas vivem em situação de rua no Brasil
G1, 27/08/2025 – Mais de 112 mil pessoas vivem em áreas de risco alto e muito alto de desastres em Manaus, aponta SGB
Piauí, 13/01/2025 – Terror sonoro em Minas
Ciência & Cultura, setembro/2025 – Um direito à moradia escorrendo pelo ralo
Valor Econômico, 23/09/2025 – Quem tem direito à cidade?
Folha de S. Paulo, 21/10/2025 – Enfrentar a pobreza é defender a democracia
Folha de S. Paulo, 29/05/2025 – Diversificar programas é fundamental para destravar habitação no RS após enchentes, diz FGV



