O legado do farmacologista Sérgio Henrique Ferreira – morto no dia 17 de julho – para a ciência brasileira foi tema da conferência de abertura da 31ª Reunião Anual da Federação de Sociedades de Biologia Experimental (FeSBE), que ocorre entre 29 de agosto e 1º de setembro em Foz do Iguaçu, no Paraná.
Em sua apresentação, Krieger destacou os estudos conduzidos por Ferreira, em meados da década de 1960, que abriram caminho para o desenvolvimento dos medicamentos mais usados atualmente para o controle da pressão arterial e da insuficiência cardíaca – os inibidores da enzima de conversão da angiotensina (IECA), entre eles o captopril.
Em parceria com o professor Maurício Rocha e Silva, Ferreira mostrou que no veneno da jararaca (Bothrops jararaca) existem peptídeos capazes de potencializar o efeito anti-hipertensivo da bradicinina – enzima vasodilatadora naturalmente sintetizada pelo organismo.
Em parceria com os pesquisadores Krieger e Lewis Greene, também da FMRP-USP, mostrou que esses peptídeos inibiam a enzima conversora de angiotensina e eram eficazes para baixar a pressão em animais hipertensos.
“Mas ainda eram apenas peptídeos, de curta vida média e injetáveis, não podendo ser utilizados como tratamento. Quem deu o pulo do gato foi David Cushman, pesquisador vinculado à indústria farmacêutica Squibb (atualmente Bristol-Myers Squibb ). Com base nesses peptídeos ele descreveu uma molécula nova: o captopril. Hoje há no mercado 110 produtos para tratar a hipertensão que tem como mecanismo de ação a inibição da enzima conversora de angiotensina – 22 são drogas de referência, 11 genéricos e 77 similares. É um mercado de R$ 1,2 bilhão no Brasil e, claro, Ferreira não ganhou nada com a sua descoberta, pois naquela época não se pensava em patente. Mas dizia sentir orgulho por ter feito uma pesquisa que ajudou a melhorar a vida de milhões de pessoas”, contou Krieger.
O reconhecimento internacional de Ferreira e de Cushman veio em 1983 com o Ciba Award for Hypertension Research – prêmio concedido pela American Heart Association. Em 1990, a Sociedade de Hipertensão Norueguesa instituiu o Prêmio Ferreira, que passou a ser entregue a cientistas que se destacassem na área de hipertensão. No Brasil, ganhou diversos prêmios, entre eles o Prêmio Álvaro Alberto, conferido pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e foi condecorado com a Ordem Nacional do Mérito Científico, na classe Grã-Cruz.
Krieger ainda mencionou os estudos feitos por Ferreira na Inglaterra, em parceria com o ganhador do Nobel de Medicina John Robert Vane (1927–2004), sobre o mecanismo de ação de drogas analgésicas. Foi Ferreira quem sugeriu a hipótese sobre a existência de duas isoformas da enzima ciclooxigenase (COX-1 e COX-2), que é inibida, por exemplo, pelo ácido acetilsalicílico. Isso diminui a produção de substâncias conhecidas como prostaglandinas, que ativam receptores ligados à sensação dolorosa.
Tal descoberta permitiu o desenvolvimento de inúmeros anti-inflamatórios não esteroidais que inibem seletivamente a isoforma COX-2 – mais potentes e menos tóxicos.
De volta ao Brasil, com seu grupo de pesquisa em Ribeirão Preto, Ferreira descobriu o mecanismo de ação analgésica periférica da dipirona e propôs o desenvolvimento de drogas opiáceas de ação periférica. Em 1990, por seus trabalhos em inflamação e analgesia, recebeu o prêmio Scientific Merit Award, pela Interamerican Society for Clinical Pharmacology and Therapeutics.
“O reconhecimento internacional de Ferreira nas duas áreas, hipertensão e dor, foi muito grande. Além da atividade científica, ele sempre foi um líder. Essa liderança se fez nas sociedades científicas”, contou Krieger.
Ferreira presidiu a Sociedade Brasileira de Farmacologia, a FeSBE, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e também foi fundador e editor do Brazilian Journal of Medical and Biological Research.
“Esse é o homem, o cientista, cuja memória estamos homenageando hoje. Criativo, irreverente e contestador, dedicou o melhor de seus esforços à ciência. É um exemplo a ser seguido pelas novas gerações. Demonstrou que primeiramente há que se legitimar como bom, excelente cientista, ao mesmo tempo que, fora do laboratório, participa ativamente na luta pelo desenvolvimento científico do país e suas repercussões na qualidade de vida da nossa gente. Portanto, a melhor homenagem que lhe prestamos, juntamente com os nossos aplausos, é o compromisso, especialmente dos mais jovens, de continuarmos lutando pelo que ele acreditava: a ciência em nosso país e no mundo.”