Na metade da vida, Ciência sem Fronteiras é criticado por má gestão

O técnico em manutenção de aeronaves H.G. já deveria estar no Canadá para um intercâmbio de um ano no CanadoreCollege, na província de Ontário. Mas as sucessivas alterações no edital na chamada 147/2013 do programa Ciência sem Fronteiras, do governo federal, deixaram incerto o futuro dele e dos outros estudantes aprovados. Atrasos e mudanças repentinas no cronograma geraram frustração e desconfiança. "A intenção era viajar ainda em 2013 para poder possivelmente concluir o programa no ano seguinte e continuar o curso no Brasil. Mas vimos novas chamadas serem lançadas e outros alunos embarcarem", conta o aluno que preferiu não se identificar.
O técnico em manutenção de aeronaves H.G. já deveria estar no Canadá para um intercâmbio de um ano no CanadoreCollege, na província de Ontário. Mas as sucessivas alterações no edital na chamada 147/2013 do programa Ciência sem Fronteiras, do governo federal, deixaram incerto o futuro dele e dos outros estudantes aprovados. Atrasos e mudanças repentinas no cronograma geraram frustração e desconfiança.
 
“A intenção era viajar ainda em 2013 para poder possivelmente concluir o programa no ano seguinte e continuar o curso no Brasil. Mas vimos novas chamadas serem lançadas e outros alunos embarcarem”, conta o aluno do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo, que preferiu não se identificar.
 
O edital foi aberto em 23 de maio de 2013 e deveria comunicar os resultados aos candidatos até 14 de novembro passado. Mas as cartas de aceite necessárias para fazer o pedido de visto e outros documentos que o programa precisa emitir aos aprovados só começaram a chegar aos alunos na segunda semana de janeiro de 2014.
 
“Perdi bolsas de auxílio moradia e alimentação que recebia da minha instituição e quase perdi o semestre escolar por faltar às aulas para correr atrás de toda a documentação da viagem. Já estávamos com tudo pronto para embarcar. E agora não sei o que vou fazer”, conta.
 
A carta de aceite diz que o estudante deve estar na universidade canadense até o dia 2 de maio, mas um comunicado da Fundação Capes, uma das agências do governo que gere o programa, informa que os candidatos que possuem proficiência em inglês, como H.G., devem iniciar as atividades acadêmicas apenas no mês de setembro.
 
“É um descaso. O edital simplesmente não foi cumprido. Nenhuma data do cronograma é respeitada desde o ano passado”, lamenta o estudante.
 
Dois anos de estrada
Lançado em 2011 para financiar 101 mil bolsas de estudo a alunos de graduação e pós-graduação, técnicos e professores, o programa Ciência sem Fronteiras passa por episódios crescentes de falhas na gestão.
 
Atrasos no depósito das bolsas, baixo conhecimento de idiomas por parte dos candidatos selecionados, falta de acordo com o setor industrial – um dos principais financiadores privados do projeto -, viagens remarcadas em cima da hora. Todos esses problemas podem comprometer o sucesso do programa que tem o objetivo de quadruplicar, até 2015, o número de brasileiros que estudam no exterior.
 
Autor do artigo Cem mil bolsistas no exterior, o sociólogo Simon Schwartzman, membro da Academia Brasileira de Ciências, já previa, em 2012, os grandes desafios que a Capes e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) teriam pela frente ao gerenciar o projeto ambicioso. Foi naquele ano que os primeiros estudantes começaram a ser enviados.
 
“O programa não foi bem pensado. Foi lançado às pressas. O governo obrigou as agências a implementá-lo, mas não houve uma análise cuidadosa sobre como isso seria feito”, avalia. “Quando, de repente, se cria um programa com metas quantitativas muito altas e se muda de maneira drástica o perfil do aluno beneficiado, surgem os problemas que estão se evidenciando agora.”
 
Dos 45,6 mil bolsistas beneficiados até o momento, 80% são alunos da graduação. De acordo com as exigências feitas pelo programa, os estudantes de graduação devem prestar contas e apresentar um relatório técnico-científico final para ser aprovado pelo CNPq. Para o especialista, falta integração entre o aprendizado adquirido no exterior e o retorno dos bolsistas às universidades no Brasil.
 
“Quando se manda alguém para fora com financiamento público, se espera que ele vá se integrar em um projeto como pesquisador, por exemplo. O programa aparentemente não tem esse lado. Não se sabe o que as pessoas fazem depois que voltam”, critica Schwartzman.
 
Problemas de financiamento
Com a elevação das taxas de câmbio e o pagamento de cursos de idioma no exterior a estudantes que não possuem fluência no idioma estrangeiro exigido, o governo federal retirou 1 bilhão de reais do Fundo Nacional do Desenvolvimento Científico e Tecnológico para custear bolsas de estudo.
 
“Esse fundo não foi desenhado para isso e já é considerada uma fonte pequena de financiamento para a ciência. Foi garantido para a comunidade científica que o Ciência sem Fronteiras teria dotação própria”, argumenta Helena Nader, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). “Os recursos para a ciência são insuficientes e estão aquém do que é investido em países desenvolvidos. Esse dinheiro não deveria ser utilizado para o programa.”
 
O custo estimado do Ciência sem Fronteiras é de 3,2 bilhões de reais. O governo se comprometeu a bancar 75 mil bolsas; as outras 26 mil são custeadas pela iniciativa privada. A Confederação Nacional da Indústria (CNI) e a Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (Abdib), duas das principais entidades industriais do país, deveriam financiar 11 mil bolsas. No entanto, elas ainda não contribuíram com o envio de estudantes para o exterior por não concordar com o atual modelo.
 
A CNI argumenta que as bolsas deveriam ter caráter profissionalizante e outro tempo de duração. Já a Abdib, que reúne construtoras como Camargo Corrêa e Odebrecht, alega falta de recursos. Outras seis empresas e entidades, como a Petrobras e a Federação Brasileira de Bancos (Febraban), têm cumprido as metas até o momento, de acordo com levantamento feito pela DW Brasil.
 
Apesar de o Ciência sem Fronteiras consumir boa parte do financiamento existente para o setor, a SBPC acredita que o programa irá gerar um impacto positivo para o país. “É um incentivo ao intercâmbio e à troca de novos conhecimentos. Em alguns anos, acredito que iremos ver bons resultados”, diz Nader.
 
Barreira do idioma
Os primeiros bolsistas do Ciência sem Fronteiras começaram a embarcar em 2012 para intercâmbios de um ano, no caso da graduação. No decorrer do programa, ficou evidente que muitos estudantes não tinham condições de assistir às aulas e participar de atividades de estágio ou laboratório por não ter o nível mínimo de idioma estrangeiro exigido.
 
Como manobra para contornar o problema, bolsistas foram realocados para Portugal. Isso gerou um excesso da demanda e o Ministério da Educação resolveu tirar, em abril do ano passado, as universidades portuguesas da lista de instituições de graduação do programa com o objetivo de estimular o aprendizado de outras línguas.
 
“Aprendi inglês, mas a graduação ficou parada. Eu tenho amigos que foram obrigados e refazer a prova de proficiência. Eles nem sabem se vão poder continuar aqui depois de abril”, relata um estudante de ciências da computação realocado de Portugal para o Canadá.
 
Devido ao grande número de estudantes que não conseguiram a proficiência em inglês, a nota mínima no exame Toefl, exigido nos Estados Unidos, passou de 72 para 42 pontos, numa escala que vai de 0 a 120. A nota do IELTS, que testa o nível de inglês britânico, caiu de 5,5 para 4,5. Os alunos que não conseguem atingir esse patamar mínimo ganham cursos de idiomas de três ou seis meses de duração. Apenas depois de serem aprovados no exame podem iniciar o curso acadêmico.
 
Um estudante da Universidade de Brasília (UnB) teve de voltar para o Brasil por não ter conseguido atingir o nível de proficiência em inglês, mesmo após ter realizado o curso de idiomas no exterior. “São casos isolados. A grande maioria dos alunos tem obtido êxito”, diz Marcelo José de Mello Rezende, coordenador institucional do programa Ciência sem Fronteiras na UnB. “A maioria volta e cria a expectativa de fazer pós-graduação no país onde estudou.”
 
Para o sociólogo Simon Schwartzman, estudantes mal preparados acabam não se encaixando na rotina da universidade. “Se o aluno não domina a língua, não domina os conteúdos. O que se faz com ele? Do ponto de vista do estudante, ter um subsídio para passar um ano no exterior é sempre muito agradável e útil, mas do ponto de vista de uma política de formação científica e técnica para o país eu acho que não faz muito sentido”, avalia.
 
O especialista defende que o Brasil envie mais pesquisadores para realizar programas de doutorado no exterior. De acordo com ele, o governo poderia aumentar os recursos para intercâmbio dos bons departamentos de pesquisa de pós-graduação do país que tenham condições de fazer parcerias internacionais. “A área de pós-graduação sabe como fazer isso. Se o governo estivesse interessado, poderia dar mais recursos.”
 
Questionada a respeito das críticas à gestão do Ciência sem Fronteiras, a Capes não se manifestou.
 
(Kárina Gomes/Portal DW.DE) –