Aos 86 anos, o ex-ministro e ex-reitor da USP José Goldemberg fala de sua trajetória científica e de seu empenho em favor das fontes não convencionais de energia
”A experiência pela qual eu passei, muitos físicos no mundo todo também viveram”, explica José Goldemberg, 86 anos, sobre sua conversão de físico nuclear para especialista em fontes não convencionais de energia. Ex-ministro, ex-secretário, ex-reitor da USP, ex-diretor do Instituto de Física da USP, ex-presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e vencedor do Blue Planet Prize em 2008, o professor atualmente se dedica às aulas na pós-graduação do Instituto de Energia e Ambiente (IEE) e às pesquisas sobre etanol produzido a partir de material celulósico e sobre mudanças climáticas e acordos internacionais.
Pode-se dizer que a trajetória científica de Goldemberg começou ainda no colégio, em Porto Alegre, onde os professores identificaram nele uma curiosidade especial por ciência. Nascido em Santo Ângelo (RS), filho de judeus russos emigrados, o então estudante chegou a São Paulo decidido a entrar na USP, mas no curso de Química. Acabou ficando na Química somente por um ano porque, interessado na estrutura dos átomos, descobriu que sua área de estudos era mesmo a física. Nesta entrevista, o professor conta um pouco sobre sua trajetória profissional.
Jornal da USP – O senhor se recorda de alguma experiência específica que o formou como cientista?
José Goldemberg – Sim. Quando fiz o curso de Física, tive contato com o professor Gleb Wataghin, que tinha vindo em 1934 da Itália. Lá, ele havia sido assistente do Enrico Fermi, um grande cientista ganhador do prêmio Nobel de Física. E eu assisti às aulas do professor Wataghin no último ano em que esteve aqui, antes de voltar à Europa. Ele teve uma influência grande em mim porque foi a primeira vez que tive um professor que não só ensinava física, mas que era ele mesmo um investigador de vanguarda.
JUSP – Como alunos, vocês participavam das pesquisas do Wataghin?
Goldemberg – Ele foi embora e logo comecei a participar de pesquisas com o professor Marcelo Damy de Souza Santos, que era um físico nuclear. Foi a direção que acabei seguindo.
JUSP – Como foi transição da física nuclear para ambiente e energia?
Goldemberg – Isso foi muito mais recente. Eu me formei em 1950, fiz estágios no exterior, trabalhei em várias universidades fora e durante 20 anos fui simplesmente um pesquisador em física nuclear. Depois, por razões pessoais, decidi continuar a carreira no Brasil e acabei me tornando um cientista atuante na Sociedade Brasileira de Física (SBF) e na SBPC. A finalidade das sociedades era a defesa da ciência e dos cientistas, o que naquela época tinha um significado diferente do que tem hoje. Não era a defesa do salário. Era a defesa contra o regime autoritário. Aí ocorreu algo interessante. Em 1975, o regime militar decidiu iniciar um programa nuclear que tinha características parecidas com o programa nuclear que o Irã está desenvolvendo hoje. Ou seja, um programa que nominalmente era desenvolvido para fins pacíficos, para geração de energia, mas que se suspeitava ter como finalidade a preparação de armas nucleares. Fui solicitado a fazer uma avaliação desse programa, e o que ficou evidente é que energia nuclear no Brasil não era a melhor das opções. Acabei tendo que estudar outras fontes de energia para poder avaliar corretamente qual era a importância da energia nuclear. Essa é uma experiência pela qual não só eu passei, como muitos físicos passaram no mundo todo. Por terem desenvolvido a bomba atômica, eles sempre tiveram a consciência pesada. Muitos se tornaram religiosos ou ambientalistas. Eu não me tornei um militante ambientalista, mas um especialista em outras fontes de energia.
JUSP – Fale um pouco sobre as suas experiências dentro do governo.
Goldemberg – A experiência que mais me ajudou na vida foi a de dirigir a Companhia Energética de São Paulo (Cesp) no governo Montoro, em 1982, onde eu realmente aprendi sobre energia. Não só como cientista, mas como um dirigente de estatal. Outra experiência que tive e que foi a melhor da minha vida foi ser reitor da USP, de 1986 a 1990. Eu acredito que vários professores da USP não lembrem esse período com tanta saudade, pois eu tenho a reputação de ter sido um reitor extremamente exigente. Acontece o seguinte: eu jamais exijo dos outros mais do que exijo de mim mesmo. O pesquisador é uma pessoa que tem a sensação de ser um soldado na frente de batalha. Na frente de batalha, o soldado está numa trincheira diante do desconhecido e precisa descobrir o seu caminho. Essa é a sensação que um cientista tem quando trabalha na vanguarda da ciência. Como reitor da Universidade, tentei estimular esse tipo de comportamento.
JUSP – Quais os maiores obstáculos nas áreas de energia e ambiente no Brasil?
Goldemberg – Em primeiro lugar, há os interesses criados, porque energia é produzida geralmente pelos métodos convencionais, usando petróleo, carvão e gás, e as empresas que vendem petróleo não querem perturbações de gente que diz “Não pode usar petróleo”. E as preocupações com o ambiente praticamente não existiam antes de 1980. Além disso, os dirigentes das empresas estatais, sobretudo no governo federal, eram atrasados. Eles tinham feito escolas de engenharia que não eram muito boas, e há muitos anos. Não estavam a par dos desenvolvimentos modernos. Quando se começou a introduzir energias renováveis no Brasil – não hidrelétricas, hidrelétrica se faz há muito, mas a eólica e outras –, de modo geral esses engenheiros acharam que isso era tudo coisa de Professor Pardal. Loucuras de cientistas. E que não teriam aplicações práticas nem econômicas. Bom, basta ver o que está acontecendo hoje no mundo. Na Dinamarca, 30% da energia que é usada vem de moinhos de vento. Havia uma mistura de interesses criados e conservadorismo cultural.
JUSP – E quais são gargalos atuais na matriz energética brasileira?
Goldemberg – O Brasil prepara, de tempos em tempos, uma matriz energética nacional. A tradição é prepará-la para 20 anos depois. O governo está agora trabalhando em uma matriz para 2050. É por isso que existem muitas discussões no Brasil hoje sobre a matriz energética nacional, sobre qual é a matriz energética que queremos. Até agora ela foi dominada por petróleo e por energia hidrelétrica. Mas a energia hidrelétrica está ficando mais difícil, porque os aproveitamentos fáceis do Sudeste do País já foram feitos e os novos empreendimentos são na Amazônia. E na Amazônia há problemas ambientais. E tem o petróleo. O atual governo aposta todas as fichas no petróleo do pré-sal e há dúvidas sobre isso também. Há dúvidas se o petróleo vai permanecer como uma fonte importante de energia nas próximas décadas. Além disso, o petróleo do pré-sal é caro.
(Silvana Salles/Jornal da USP)- http://espaber.uspnet.usp.br/jorusp/?p=37277