O Comitê de revisão da Instrução Normativa do Decreto 6.640, que prevê a classificação das cavernas brasileiras em graus de relevância, encerrou bruscamente seus trabalhos neste mês, com a apresentação de um “Relatório final com as proposições para o aprimoramento das regras técnicas existentes”. O texto não agradou a todos os envolvidos, entre eles, Eleonora Trajano, professora titular aposentada do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP), atualmente professora sênior, pesquisadora com 35 anos de experiência em Biologia Subterrânea, e representante da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) junto a esse comitê. “Além do documento ter sido finalizado antes de reuniões já marcadas, ele é muito fraco, não contemplando toda a discussão realizada anteriormente pelos grupos”, critica a pesquisadora.
Eleonora disse que o Comitê estava em sua quinta reunião em maio, quando foi marcado cronograma prevendo mais duas, que aconteceriam em julho e setembro, para dar continuidade às discussões, que para ela não haviam sido concluídas em virtude da complexidade do tema. “A sexta reunião foi mudada para agosto, mas como eu tinha uma reunião científica na Costa Rica marcada há vários meses, não pude comparecer, e nem tampouco minha suplente”, conta.
Assim, segundo ela, a reunião aconteceu sem a presença da representação da SBPC. “Isso nos surpreendeu totalmente, pois a pauta previa claramente a continuidade das discussões”, diz. “O grupo presente à reunião decidiu, no meio do processo de revisão da IN e antes mesmo do início da etapa mais importante e decisiva, que é a definição dos conceitos relativos aos critérios de relevância, simplesmente finalizar os trabalhos do Comitê, com a elaboração de um relatório contendo as propostas de alteração da IN e um prazo de apenas 10 dias após a sua divulgação para manifestações dos seus membros. Para agravar a situação, a comunicação foi feita por e-mail – que, diga-se de passagem, é um meio não oficial -, no ultimo dia 16.”
Além disso, de acordo com Eleonora, até dia 23, véspera do prazo estabelecido na reunião, a Memória do encontro, contendo os motivos para tal decisão assim como o contexto em que foi tomada, documento fundamental para a análise do relatório final, não havia sido encaminhada. “Ora, mesmo que tal relatório tivesse sido bem feito, o que está muito longe da realidade, e que a memória da reunião tivesse sido distribuída quando devido, tal prazo é um verdadeiro absurdo em vista da importância do assunto”, critica. “Ele tem forte repercussão sobre a preservação de alguns dos ecossistemas mais singulares e frágeis de todo o planeta, que são os subterrâneos, dentre os quais se destacam, por sua riqueza, os brasileiros, ameaçados que estão pelo Decreto 6.640 e sua atual IN, eivada por graves falhas conceituais, lógicas e metodológicas.”
Eleonora diz que tinha muita esperança no trabalho do Comitê. “Mas este golpe, indigno de qualquer órgão que se diz ambiental, mostra que nunca houve uma real intenção de aprimorar de fato a legislação”, acusa. “Foi apenas uma cortina de fumaça para desviar a atenção dos espeleólogos e preparar algo ainda mais ameaçador para o patrimônio espeleológico brasileiro que o Decreto 6.640.”
Em contrapartida, Jocy Brandão da Cruz, coordenador do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Cavernas/Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (CECAV/ICMBio), explica que a finalização do documento aconteceu, porque os presentes na reunião de agosto entenderam que as propostas para aquele momento estavam esgotadas. “O cronograma das reuniões eram decididas a cada encontro”, conta. “Todos os membros presentes concordaram que era preciso mais discussões sobre o assunto, mas achamos que para o momento atual as propostas que deveríamos fazer já estavam contempladas neste documento, que não é final. Inclusive mudamos a nomenclatura para o ′momento atual′.”
Brandão disse ainda que mesmo tendo quórum, o Comitê nunca estava completo em todas as reuniões por conta de agenda dos membros. “Finalizamos o trabalho do comitê, mas todos os participantes acreditam que a discussão não se esgotou”, diz. “Só que colocamos no relatório o que podemos no cenário atual.”
Na opinião do geólogo Felipe Barbi Chaves, especialista em Recursos Minerais e Chefe da Divisão de Proteção de Depósitos Fossilíferos do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), o documento foi finalizado porque o ICMBio queria ver os resultados das reuniões já realizadas. “Penso que a dificuldade logística de movimentar todos os membros do Comitê, associada ao insucesso na promoção das oficinas técnico-científicas com especialistas da área de espeleologia (questões de conciliação de calendários) não ligados ao grupo, desgastaram o trabalho e fez com que se repensasse a sua continuidade nos moldes estabelecidos”, diz.
Documento
Para Eleonora, no entanto, o documento apresentado para análise pelos membros do Comitê conta com propostas justificadas de forma superficial, sem embasamento bibliográfico, algumas até sem justificativa elaborada. “Isso nada mais é do que manipulação política, que atende a interesses econômicos poderosos, em nome das chamadas ′janelas de oportunidade′, que não passam de um eufemismo para a ganância pelo lucro rápido, contrário ao verdadeiro interesse público, que é a manutenção de um ambiente saudável para as gerações futuras”, critica.
Eleonora contou que o Comitê vinha fazendo reuniões bimestrais, que se arrastavam por falta de conhecimento científico na área de espeleologia por parte de vários integrantes. “Até maio, houve cinco reuniões e todas foram lentas porque tínhamos que explicar questões básicas para membros do grupo, que foram indicados para defender interesses de setores econômicos e não atendiam aos requisitos esperados de um comitê de cunho técnico consultivo”, conta. Eleonora informa ainda que, há meses, ela e outros especialistas com conhecimento na área de espeleologia encaminharam propostas que foram tratadas de maneira extremamente superficial no relatório do Comitê, sendo necessário um tempo considerável para incorporar todo esse material em um documento sólido, com base científica robusta e bem calçado em dados empíricos e na literatura disponível.
Diante da situação, Eleonora pediu a Cruz, coordenador do Comitê e também do CECAV, a extensão do prazo até o dia 20 de setembro, para enviar uma proposta em nome da SBPC condizente com o assunto, a qual teria sido encaminhada à Diretoria de Pesquisa, Avaliação e Monitoramento da Biodiversidade do Instituto Chico Mendes. Mas, segundo a representante da SBPC, Cruz de imediato comunicou recusa por parte da Diretoria, que teria alegado “compromissos assumidos”. No dia 27, o prazo foi ampliado para o dia 2 de setembro. “Continuou pouco, não adianta ir jogando 4-5 dias à frente”, diz Eleonora. “O primeiro prazo pedido pela SBPC foi 20 de setembro, mas, após uma leitura detalhada do documento verificamos que as lacunas são ainda maiores do que imaginávamos inicialmente, de modo que solicitamos nova extensão, para dia 31 de outubro. É um trabalho sério, aprofundado, que toma tempo, temos responsabilidade, respostas para dar à sociedade.”
Segundo Cruz, prazos foram dados para aqueles que não participaram da última reunião. “Infelizmente faltaram algumas pessoas por questão de agenda, mas que solicitaram um prazo para mandarem uma proposta, que foi dado”, diz. “Algumas propostas, inclusive, já foram enviadas e outros prazos prorrogados. Mas é preciso cravar uma data para finalizarmos o documento para enviarmos para o Ministério do Meio Ambiente.”
O decreto
O Decreto 6.640, de 7 de novembro de 2008, foi editado pelo governo após ter sido pressionado pelo setor de mineração, que reclamava que a legislação “engessava” a atividade, proibindo a exploração de riquezas minerais em grutas ou áreas próximas a elas. “Essa lei não favorece nem a comunidade científica, nem aos empresários, por isso a criação do Comitê”, explicou Eleonora. O Decreto prevê a classificação das cavernas em quatro níveis de relevância: máximo, alto, médio e baixo, pela aplicação de critérios, de acordo com a Instrução Normativa MMA nº 2, de 20 de agosto de 2009.
De acordo com a Eleonora, a discussão no Comitê parou quando os dois pontos mais sensíveis, que mais incomodam o empresariado, entrariam em pauta. O primeiro deles é o tempo requerido para estudos visando à classificação de cavernas naqueles graus de relevância, já que, para que as amostras possam ser consideradas representativas, são necessários pelo menos três anos de amostragem realizadas a determinados intervalos, assim como testes que demonstrem sua suficiência. Sem isso, não é possível dizer se uma caverna não é de máxima relevância, podendo ser destruída. “Em um estudo de curta duração, insuficiente, a presença de atributos de máxima relevância pode passar despercebida e a caverna ser classificada falsamente como não de máxima relevância, sendo destruída, em desacordo com a própria legislação e o interesse da conservação”, explica.
O segundo ponto, segundo Eleonora, é a questão da compensação. O Decreto 6.640 prevê que as cavernas de relevância alta poderão ser destruídas desde que a empresa responsável preserve outras duas que tenham configurações similares de atributos. O empreendedor também pode acabar com as de média importância, desde que apoie ações de conservação em outras áreas. Para as cavernas de relevância baixa nem isso: elas podem ser simplesmente destruídas sem nenhum tipo de compensação ambiental.
De acordo com Eleonora, o governo publicou uma IN provisória que permite a compensação da destruição de cavernas de alta relevância por recursos financeiros. “O que é um absurdo, pois a IN atual está em vigor”, diz a pesquisadora da USP. “Mas é plenamente compreensível, a IN provisória atende muito bem aos interesses dos empresários, que querem mudar a IN nº 2 nesse dispositivo, um dos seus poucos aspectos realmente positivos. Exatamente quando começaríamos a discutir, entre outros assuntos polêmicos, como definir o que seriam configurações similares, um ponto importante para a compensação da eliminação de cavernas de alta relevância através da preservação de outras consideradas similares, mas que não interessa ao empresariado, o Comitê conclui seus trabalhos. Mero acaso?”
O Comitê
Como os dispositivos previstos na nova norma não haviam sido submetidos a testes de aplicação antes de sua publicação, criaram o comitê técnico consultivo, sob coordenação do CECAV/ICMBio, para fins de acompanhamento e avaliação da aplicação deste ato normativo nos processos de licenciamento ambiental, com a finalidade de propor ao Ministério do Meio Ambiente o aprimoramento das regras técnicas previstas.
Eleonora afirma, ainda, que a criação deste Comitê não aconteceu de forma transparente. “Em nenhum momento o comitê foi formado para ter uma ótica científica, haja vista que não chamaram especialistas das melhores instituições em pesquisa espeleológica”, diz. “Não havia nenhum representante da USP, da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), do Instituto Geológico de São Paulo, entre outros, que contam com especialistas com tradição nessa área. Eu praticamente me convidei a participar do Comitê, procurando a SBPC. Em nenhum momento, eu ou qualquer dos espeleólogos que conheço fomos consultados sobre interesse em participar do Comitê, sequer sabíamos de sua existência até que a Portaria instituindo o mesmo fosse publicada. O interessante é que, quando questionei sobre a ausência da USP e de outras instituições com pesquisas importantes na área espeleológica entre as representadas no Comitê, foi-me respondido que não houve interesse – bem, difícil, quando não há transparência, e apenas alguns são informados.”
Além da SBPC, o comitê é formado por representantes das seguintes instituições: Diretoria de Pesquisa, Avaliação e Monitoramento da Biodiversidade do Instituto Chico Mendes (DIBIO/ICMBio); CECAV/ICMBio; Diretoria de Licenciamento Ambiental do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (DILIC/Ibama); Serviço Geológico do Brasil (CPRM); Secretaria de Geologia, Mineração e Transformação Mineral do Ministério de Minas e Energia ( SGM); Associação Brasileira de Entidades Estaduais de Meio Ambiente (Abema); Universidade Federal de Lavras (UFLA); Sociedade Brasileira e Espeleologia (SBE); Redespeleo Brasil; Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram); Associação Brasileira dos Investidores em Autoprodução de Energia (Abiape); DNPM.
Além de representantes de setores ligados a interesses econômicos, há membros do Comitê que prestam regularmente serviços de consultoria ambiental na área de espeleologia, produzindo relatórios com a classificação de cavernas em graus de relevância de acordo com a IN ora em vigor, e que o Comitê tem a atribuição de revisar. “Novamente, configura-se conflito de interesse, e estas pessoas deveriam ter declinado de sua participação no Comitê, pois estão diretamente envolvidas por conta de suas atividades profissionais” afirma Eleonora. “Além disso, o CECAV reiteradamente convida donos e empregados dessas empresas para qualificar os que analisam tais relatórios, é o mesmo que chamar donos de supermercados e restaurantes para elaborar a legislação e qualificar os fiscais sanitários. Não estamos falando de recursos renováveis. Mas, infelizmente, ficou claro que o interesse maior não estava na preservação da natureza para as futuras gerações.”
(Vivian Costa)