Feitas pela USP, a descoberta da bradicinina e a identificação dos efeitos terapêuticos do veneno da jararaca – que levaram à produção de remédios contra a pressão alta e beneficiam milhões de pessoas no mundo – são uma das maiores conquistas da Universidade em seus 80 anos de existência
Começou em 1949 a história de uma sequência de descobertas científicas que acabaria por causar profundo impacto na indústria farmacêutica e no tratamento da hipertensão e doenças cardíacas. O primeiro ato se passa no Instituto Biológico, instituição voltada à pesquisa e ligada ao governo estadual de São Paulo. Foi naquele ano que o pesquisador carioca Maurício Oscar da Rocha e Silva (1910-1983) publicou um artigo que descrevia uma molécula a que deu o nome de bradicinina – uma conjunção das palavras gregas para “movimento” e “lento”.
A bradicinina é uma substância formada por uma cadeia de aminoácidos que tem uma função hipotensora e atua em vários órgãos e tecidos, inclusive como mediadora de inflamações. Faz parte da atividade fisiológica do corpo humano. É um vasodilatador, que age no sentido de reduzir a pressão dos vasos arteriais. Nos anos 40, Rocha e Silva estudava a histamina, outra substância vasodilatadora. O futuro professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP e seus colaboradores descobriram a bradicinina em um experimento que utilizou uma cobaia e amostras de veneno de jararaca (Bothrops jararaca).
Eles observaram que a resposta à ação do veneno não tinha a ver com a histamina, uma vez que tinham utilizado anti-histamínicos no experimento. Em alguns dias de trabalho, o novo princípio era desvendado. A primeira comunicação sobre a descoberta da bradicinina foi publicada na edição inaugural da revista Ciência e Cultura, da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), e no American Journal of Physiology.
Enigma
O segundo ato começa em 1957, ano em que Rocha e Silva se transfere da Seção de Bioquímica e Farmacodinâmica do Instituto Biológico para a USP, onde assumiria o Departamento de Farmacologia da FMRP. Em Ribeirão Preto, o grupo formado pelo agora professor Rocha e Silva passou a trabalhar em diferentes aspectos da bradicinina. Coube a um de seus discípulos, o então estudante Sérgio Henrique Ferreira, procurar uma substância capaz de inibir a destruição da molécula de bradicinina – é que a bradicinina sintética, quando injetada na corrente sanguínea, ocasiona uma queda de pressão muito fugaz, pois é rapidamente destruída ao passar pelos pulmões. Com um efeito mais duradouro, ela poderia ter uma aplicação para o controle da pressão.
Ferreira retornou ao veneno da jararaca para buscar a resposta para seu enigma. Ele verificou que o veneno possuía um conjunto de substâncias que potencializava o efeito da bradicinina, prolongando a ação sobre a pressão arterial. O assunto foi o tema da tese de doutorado em Farmacologia do pesquisador.
Os estudos continuaram. Ferreira então foi para a Inglaterra, para o laboratório de John R. Vane, farmacologista que seria agraciado em 1982 com o Prêmio Nobel de Medicina. O brasileiro mais uma vez utilizou o veneno da jararaca em uma preparação coração-pulmão e percebeu que, além de potencializar o efeito da bradicinina, o veneno inibia a conversão de angiotensina-1 em angiotensina-2. Isso foi importante para a medicina porque a angiotensina-1, quando chega ao pulmão e entra em contato com a enzima conversora, se transforma em uma substância que contrai os vasos sanguíneos e estimula a absorção de água e sódio pelos rins, aumentando a pressão arterial.
Depois da Inglaterra, Ferreira partiu para o Brookhaven National Laboratory, nos Estados Unidos, onde Lewis Greene tinha um laboratório de química importante, que trabalhava com proteínas. Juntos, os dois pesquisadores conseguiram isolar os peptídeos potenciadores da bradicinina e sintetizá-las a partir do conhecimento bioquímico.
A última parte das pesquisas de Ferreira sobre a bradicinina aconteceu de volta a Ribeirão Preto, no laboratório dedicado à hipertensão experimental. Junto com Greene, Antonio Camargo, John Morrow Stewart e Eduardo Moacyr Krieger, ele demonstrou de que forma os potenciadores da bradicinina poderiam funcionar como remédio para casos de hipertensão. “Eles trouxeram um pentapeptídeo, o BPP5a, e demonstramos pela primeira vez como a infusão em um rato com hipertensão severa revertia o quadro clínico ao normal e assim o mantinha durante toda a sua duração”, lembra Krieger, professor aposentado da FMRP, ex-presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e atualmente diretor executivo da Comissão de Relações Internacionais da Faculdade de Medicina da USP.
Problema – O trabalho foi publicado no Lancet em 1971, mas ainda havia um problema a ser resolvido para que os peptídeos potenciadores da bradicinina (BPP) tivessem aplicação clínica. “O pentapeptídeo tem curta duração, então não servia para a terapêutica da hipertensão. Depois sintetizaram o nonapeptídeo, com uma duração um pouco maior, de uma a duas horas. O BPP5a durava segundos”, explica Krieger, que é especialista em regulação da pressão arterial.
O nonapeptídeo chegou a ser utilizado em testes clínicos, mas a grande virada ocorreu apenas quando os cientistas David Cushman e Miguel Ondetti, da farmacêutica Squibb, conseguiram compor uma nova engenharia para a molécula, de forma que o BPP pudesse ser administrado oralmente aos pacientes, em um medicamento com efeito de seis horas de duração: o captopril, a primeira substância conhecida como inibidora da enzima conversora para efeito terapêutico da hipertensão. Desde então, longe dos laboratórios da Universidade, foram criadas diferentes moléculas derivadas do modelo desenvolvido por Ferreira, com maior ou menor duração, maior ou menor potência.
Em 1982, ao lado de Cushman e Ondetti, o professor Sérgio Henrique Ferreira recebeu o Ciba Award de hipertensão – uma das grandes honrarias da área médica no mundo – pelo trabalho que levou à produção de medicamentos que hoje tratam tanto essa quanto outras condições de risco cardíaco.
“Não posso deixar de ter orgulho”
Aos 80 anos, o professor Sérgio Henrique Ferreira, aposentado da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP, vive em sua casa, no bairro do Jardim Sumaré, em Ribeirão Preto, ao lado da esposa, Clotilde Rossetti Ferreira, que é Professora Emérita da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP), também da USP. “Não posso deixar de sentir orgulho por ter feito uma coisa que acabou tendo importância para milhões de pessoas”, disse o professor ao Jornal da USP, por telefone, de sua residência.
“Ele era muito chato”, brinca Ferreira, referindo-se ao professor Maurício Oscar da Rocha e Silva, citando uma de suas características: “Ele estava sempre pegando no nosso pé, cobrando coisas atrasadas, coisas que não tínhamos feito”. Ferreira lembra ainda que Rocha e Silva, com sua tradição de pesquisa, era “um grande estímulo” para os jovens pesquisadores. “Ele teve uma atitude muito bonita, que foi reconhecer a importância do meu trabalho para o desenvolvimento do captopril”, acrescenta Ferreira. “Para um pesquisador em início de carreira, como eu era na época, isso representou um grande impulso.”
(Roberto C. G. Castro/Jornal da USP) – http://espaber.uspnet.usp.br/jorusp/?p=39113