Ecléa Bosi: Narrativas sensíveis sobre grupos fragilizados

Ecléa Bosi, professora emérita de psicologia social da USP, lida com temas de pesquisa que não figuram entre os mais explorados dentro dos estudos acadêmicos brasileiros: as leituras de operárias e as memórias de velhos, por exemplo, para ficar em apenas dois de peso decisivo em seu trabalho. Com frequência, Ecléa dirige seu olhar para grupos sociais fragilizados: pobres, mulheres trabalhadoras de baixa renda, idosos que, imersos na transformação contínua da metrópole, vão perdendo a contragosto as referências de seus percursos familiares, cotidianos, e penetrando num tempo de certo esmaecimento da consciência de sua identidade. Dos objetos escolhidos mais as personagens encontradas no processo de pesquisa, ambos aludindo ao precário e ao vulnerável e trabalhados sobre sólido chão teórico, ela construiu uma vigorosa, singular e reconhecida obra em seu campo.
Ecléa Bosi, professora emérita de psicologia social da Universidade de São Paulo (USP), lida com temas de pesquisa que não figuram entre os mais explorados dentro dos estudos acadêmicos brasileiros: as leituras de operárias e as memórias de velhos, por exemplo, para ficar em apenas dois de peso decisivo em seu trabalho. Com frequência, Ecléa dirige seu olhar para grupos sociais fragilizados: pobres, mulheres trabalhadoras de baixa renda, idosos que, imersos na transformação contínua da metrópole, vão perdendo a contragosto as referências de seus percursos familiares, cotidianos, e penetrando num tempo de certo esmaecimento da consciência de sua identidade. Dos objetos escolhidos mais as personagens encontradas no processo de pesquisa, ambos aludindo ao precário e ao vulnerável e trabalhados sobre sólido chão teórico, ela construiu uma vigorosa, singular e reconhecida obra em seu campo.
Faz parte dessa singularidade expressar o vigor dos achados e das reflexões em tom suave, delicado, que ajuda a dotar as narrativas de Ecléa Bosi de uma particular dimensão literária. Relatos de pesquisa empírica e ensaios teóricos ganham muitas vezes corpo de bela prosa poética. Mas, simultaneamente, parecem fazer parte do vigor, da força vital do trabalho de pesquisa de Ecléa, seu desbordamento para o campo da militância institucional, política. É assim que se torna fácil compreender seu esforço pela criação e desenvolvimento da Universidade da Terceira Idade da USP, que, aos 21 anos completos, já levou para o campus da maior instituição universitária pública brasileira mais de 100 mil idosos, a maior parte detentora de precária educação formal. Ou ainda sua militância ecológica, que inclui de forma privilegiada em sua visada as operárias grávidas que, sem saber, podem estar sendo submetidas a agentes tóxicos nas fábricas em que trabalham.
Casada com o professor Alfredo Bosi, respeitado crítico e historiador de literatura brasileira, mãe de Viviana Bosi, professora de teoria literária, e de José Alfredo Bosi, professor de economia, e avó de dois netos, Ecléa Bosi, que se mantém em contínua atividade apesar de formalmente aposentada, concedeu a Pesquisa FAPESP, numa manhã de tempo incerto cortada por palavras luminosas, no Instituto de Psicologia da USP, a entrevista cujos principais trechos publicamos a seguir. Livros e alguns antigos recortes postos na mesa à sua frente, logo observou que sempre foi bem tratada em sua vida profissional, mas algo que a tocara como poucas outras coisas foi ver incluído, numa lista do Ministério da Educação de 100 obras que seguem para milhares de bibliotecas escolares do país, seu livro que escrevera com mais empenho, o Memória e sociedade – Lembrança de velhos.
Vejo nesses retalhos impressos de sua memória notícias de seus trabalhos, lutas e prêmios.
Sim, acho que me empenhei muito na vida. Aqui estão coisas da militante de ecologia.
Uma vida militante além de acadêmica.
Participei na implantação do Parque Ecológico Chico Mendes. Temos aqui memória dos dois anos sucessivos da Semana da Ecologia que organizei na USP, antes da fundação do curso de Ciências Ambientais, em 1974. Apelei tanto para deputados, senadores, gente importante, para que ajudassem na luta contra a usina nuclear e, como as respostas não chegavam, decidi escrever a alguém que eu admirava mesmo: Carlos Drummond de Andrade. Ele estudou a questão e escreveu um artigo lindo intitulado “Se eu fosse deputado”, publicado no Jornal do Brasil. Mais recente é a luta contra Angra 3.

E este livro em destaque?
É uma coisa que fiz com grande prazer, o último livro que escrevi, Velhos amigos, histórias verdadeiras para crianças e adolescentes. Esse outro documento é um artigo que fiz sobre um velho professor já falecido, da USP [José Severo de Camargo Pereira]. Era professor temido. Um dia, vi que estava uma confusão na Maria Antônia, fila na porta, gente para cá e para lá, a Maria Antônia era uma caixa de ressonância da política nacional. Cuba tinha sido invadida e as pessoas estavam ali para se inscrever para lutar e defender a ilha. Aquela gente nunca tinha pegado em armas e ia enfrentar o Exército norte-americano, imagine!
Era a invasão da Baía dos Porcos, em 1961?
Exatamente. Foi então que ouvi uma voz atrás de mim dizendo que se sabia idoso, mas perguntava se aceitavam sua inscrição. Era o professor Severo. Mas quero lhe mostrar os documentos de um projeto que tem 21 anos [a Universidade Aberta da Terceira Idade]. Quase sempre os programas trazem na capa pessoas que tiveram vidas sofridas, que vieram do quase nada e estão aqui brilhando na USP.
E na capa dessa outra memória, um velho remando…
A minha obra começa com Leituras de operárias. Por que leituras e por que operárias? Depois vem Memória e sociedade, – Lembrança de velhos; Tempo vivo da memória; Simone Weil: a condição operária; e Velhos amigos.
Procuraremos fazer esse percurso, mas antes preciso lhe perguntar: de onde a senhora é?
De São Paulo, a infância vivida em Pinheiros. Nasci na Maternidade São Paulo, na rua Frei Caneca.
Seus pais tinham que formação?
Eram muito simples, mas lembro que ambos escreviam poesia. Meu pai era funcionário público, minha mãe, dona de casa. Estudaram pouco. E eu tinha dois irmãos, mais novos.
Como era sua vida de criança?
Eu era uma leitora voraz. Os livros não me foram dados, não vivi rodeada de livros, foram conquistados. Como? Andando a pé. Um livro custava 12 passagens de ônibus. Eu estudava num casarão lá nos Campos Elísios, aí atravessava toda a São João, na volta, atravessava toda a Consolação, toda a Rebouças e chegava lá na rua Mello Alves, onde morávamos. E 12 passagens de ônibus economizadas equivaliam a um livro. Então fui conquistando minhas leituras.
Quem eram seus autores preferidos?
Com 13 ou 14 anos já estava mergulhada em Dostoievski, Tolstoi, Tchecov, mas também em Romain Rolland, Emily Brontë. Depois li Hemingway, Sinclair Lewis, muita poesia. Traduzi mais tarde Ungaretti, Leopardi, Montale, Rosalía de Castro (para jornais e livros).
Sua escola era pública?
Não. Era um colégio que não existe mais, chamado Stafford, rodeado por um parque. Era um casarão enorme na alameda Nothman. Nas caminhadas entre a casa e a escola eu fui me instruindo sobre as desigualdades sociais. Via mansões, casas humildes e meditava, sem que ninguém me dissesse nada, sobre a desigualdade social. Também aprendi a conviver intimamente com a cidade. Depois, quando fui estudar na Maria Antônia, nós, alunos, vivíamos nas livrarias, bibliotecas, nos bares. A cidade era muito próxima de nós.
A Maria Antônia surge em sua vida em tempos fervilhantes. Como foi viver aqueles anos justamente ali?
Em primeiro lugar, havia os grandes mestres. Adorávamos nossos mestres: [João]Cruz Costa, em filosofia, Ruy Coelho, professor notável de sociologia,Gioconda Mussolini, da antropologia, Dante Moreira Leite, que foi meu orientador, uma pessoa extraordinária, na psicologia social, dona Anita Castilho Cabral, que fundou o curso de psicologia.
Como a senhora se encaminhou para o curso de psicologia?
Quem sabe foi por causa da literatura! Quem lia o que eu lia… Dostoievski procura olhar dentro do ser humano, e tudo levava a me interessar a olhar dentro do ser humano. E esses grandes professores que eu tive foram grande inspiração. É importante perceber que a USP se entende não através das instituições, mas dos mestres. Ela tem famílias espirituais. A presença do mestre amado está em nossa obra, dirige o nosso olhar. Estamos falando de uma época áurea da USP. Ali estavam Mário Schönberg, Florestan Fernandes, Antonio Candido…
Como dentro da Psicologia se definiu o rumo de seus estudos?
Fui para a psicologia social porque era uma época muito politizada, de uma densidade política enorme. Minha classe era pequena, umas 12 pessoas, e foi quase toda dizimada pela ditadura. Fui colega de classe de Iara Iavelberg, o que me marcou muito. Lembro-me da colega como uma moça muito bonita, muito inteligente e que cantava muito bem. Gostava de Ponteio, de Edu Lobo, também de Disparada [de Geraldo Vandré]. Era muito boa em estatística, disciplina do professor Severo, e íamos à casa dela para estudar. A Iara histórica todos lembram, mas foi a perda da colega que acompanhei e vi o quanto nossa turma sofreu com isso. Também lembro de Aurora Maria do Nascimento Furtado, a Lola, aluna inesquecível. Quando o general Fiúza de Castro escreveu suas memórias, perguntaram se ele se lembrava dos subversivos que tinha capturado, e ele disse que sim. Lembrava de uma mocinha muito valente chamada Aurora. Morreu com a “coroa de Cristo” [instrumento de tortura], com o crânio apertado, esmagado, uma morte muito heroica, porque não abriu a boca. Foi presa em Parada de Lucas, no Rio de Janeiro, em 1972. Nunca me esqueci dela, nem posso – fundei na Psicologia uma “sala Aurora”, com fotografias dela e com esse depoimento do general sobre sua valentia. Sobre Iara, gostaria de dizer ainda que dona Anita a convidou para ser professora de psicologia social e ela chegou a ser docente, mas logo partiu para a clandestinidade. Lembro-me dela fazendo análise de conteúdo dos discursos do Fidel Castro. Nunca terminou esse trabalho, porque desapareceu em seguida. Mas nos deixou um belo artigo sobre linguagem e comunicação que saiu numa revista da SBPC e eu tive o prazer de dá-lo a meus alunos para que o lessem.
Então, sua proximidade com a luta política teve alguma influência em seu direcionamento para a psicologia social?
Sim, me marcou. O que escolhi para a minha tese de doutorado? As operárias. Por que leitura? Porque é uma área problemática. As operárias, aliás, todos nós somos colhidos pelos fluxos da televisão e dos outros meios de massa. Mas a leitura exige uma vontade, uma opção de escolha. É um ato mínimo de vontade, mas esse passo precisa ser dado. E, no caso das operárias, envolve um grande empenho pessoal, porque não há livrarias nos bairros populares. O que impede a leitura da operária? A jornada longa e extensa, a dupla jornada de trabalhadora e de mãe de família, com todos os trabalhos caseiros. A moradia distante, a falta de centros culturais, o salário gasto na sobrevivência.
Embora as operárias entrevistadas em sua tese sejam mais jovens e entre elas se encontrem várias solteiras e sonhadoras.
Você toca em algo que acho notável. A operária solteira tem um tipo de mentalidade, a operária casada, mãe de família, outra: é militante. Ela não falta quando precisa reclamar ou ter uma ação política, sempre está na frente.
Pelo compromisso dela com os filhos, provavelmente.
Isso, o salário dela é muito importante para a família. Colhi depoimentos dessas operárias. Otto Maria Carpeaux fez o prefácio do livro e ele diz, “mas que pesquisa desoladora, que mentes seduzidas e exploradas”. Mas eu quis dar um passo à frente: constatei o que a operária lia e procurei saber o que ela gostaria de ler. Entrei no universo do possível.
E a diferença entre o que ela lia e o que gostaria de ler abarca um abismo?
Não, mas é diferente. A comunicação de massa é dupla: no terreno da propaganda, procura mostrar o que há de mais avançado na técnica; no terreno do imaginário, explora uma mentalidade pré-industrial que sobrevive na cultura do homem pobre e que seria a literatura de folhetim. Como é a literatura de folhetim que a operária tanto amava? Em geral, traz a situação da mulher e da criança que sofrem violência social. A mulher vive o desequilíbrio, a situação de vitimismo. Esse é o romance que a operária lê. E se reequilibra, quando a história termina bem, através do matrimônio, intervenção do destino.
No folhetim-livro ou nos enredos das revistas?
Na revista e no folhetim, no enredo romântico a mulher e a criança são vítimas não da sociedade, mas do destino. E essas histórias não são datáveis, são eternas: carregam o sentimento de exclusão do mundo, de evasão, a fantasia compensatória com que tanto Freud se preocupou… Umberto Eco tem uma expressão bonita para isso: estruturas da consolação. E Gramsci as nomeia complexo de inferioridade social ou devaneios de compensação. Gramsci lamenta muito que os intelectuais não se preocupem com as leituras populares. Assim, não criaram um humanismo moderno capaz de alcançar os mais humildes.
Entre a visão de Carpeaux, a visão de Gramsci e a sua própria, parece-me que uma diferença sensível, entre outras, é a verdadeira proximidade com que a senhora trata o grupo que estuda.
Antes, deixe-me lhe dizer, esses romances românticos, de que tratam? A meu ver, a operária se impressiona com questões essenciais ligadas à justiça, à culpa, ao castigo, à transgressão, à revolta, ao suplício imerecido. Mas não é disso mesmo que trata a grande literatura? Os temas são os mesmos. Os olhos do leitor alcançam e tocam esse drama humano. Os clássicos tratam disso e o leitor trabalhador manual, se tivesse oportunidade de ler os clássicos, provavelmente se sentiria em casa.
Nesse sentido, entre o que eles poderiam ler e o que leem, senão um abismo, há uma distância.
Veja bem, há livrarias nos bairros operários? Vi que as operárias compravam livros de kombis que rondavam as fábricas. Fui entrevistar os livreiros – aí é que Carpeaux choraria se os ouvisse – e eles me contaram que vão às livrarias e editoras, compram os refugos e os encadernam (ou encadernavam, na época de minha pesquisa) lindamente. A operária que dedicou horas e horas, às vezes dias, para comprar um livro assim bonito vai pôr esse volume na sala e guardar para os filhos. São caros, muito caros os livros. Veja como é decisivo o passo em direção à leitura.
Quanto tempo foi gasto em todo o seu trabalho de pesquisa da tese?
Levei dois anos nessas conversas com 52 mulheres. Só uma estudava, mas, exausta, estava em via de abandonar os estudos. Devo lembrar aqui alguns antecedentes dessa história de investigar leituras operárias: a escritora francesa George Sand [1804-1876] entrevistou trabalhadores para saber o que liam e concluiu que a história oficial, a cultura, não seria completa se não se incluíssem as fantasias e desejos daqueles leitores. A escritora e filósofa Simone Weil [1909-1943] contou as tragédias de Sófocles para as operárias de uma metalúrgica. Elas vibravam com a narrativa e Simone Weil percebeu que a ficção pode ser uma fuga, uma evasão – mas também uma revelação.
Em sua leitura, as leituras das operárias tinham mais de fuga ou de estratégia para sobreviver mantendo certa sanidade?
Isso é um triunfo da cultura de massa sobre a cultura operária – que faz parte da cultura popular e também da cultura de massa, mas são diferentes. Quando o operário se evade, lendo, e procura a fantasia, ele não está criando uma cultura operária, porque essa tem que ter um elemento de militância. A cultura operária pergunta: quem somos nós, o que são as pessoas como nós? Qual é o significado do nosso trabalho, qual o valor do nosso trabalho para a sociedade? Por isso Gramsci quis criar em Turim as universidades operárias, onde dava aula. Por isso Simone Weil, que foi operária metalúrgica, dava aula para os ferroviários, para os mineiros. Penso que Simone, Gramsci e outros pertencem a uma vanguarda enraizada, expressão de Alfredo Bosi que eu aceito e admiro.

E qual o sentido aqui da palavra “enraizada”?
O enraizamento é viver intensamente a cultura popular. Mariátegui, Simone Weil e Gramsci viviam intensamente a cultura popular e fizeram com que seus estudos se alimentassem dela. Não há melhor alegria no mundo do que fazer um estudo para uma universidade e ver que ele tem repercussão numa política pública. No caso de Leituras de operárias, tive a alegria de trabalhar na prefeitura na gestão de Luiza Erundina [1989-1993], na Secretaria de Obras, com Lucio Gregori, na Secretaria da Cultura, com Marilena Chauí, na criação de bibliotecas populares – ela estava muito interessada em formar comunidades de leitores – e também fui convidada por Paulo Freire para trabalhar na Secretaria da Educação. Foi uma época de militância que resultou de Leituras de operárias. Mas o que mais apreciei ter feito na vida, nesse âmbito de políticas públicas, foi ter ido à Organização Internacional do Trabalho [OIT], na ONU, em Genebra, e ter feito a denúncia do trabalho operário feminino no seguinte aspecto: todo ano aparecem agentes químicos novos, nocivos, e não estudados de maneira alguma quanto à repercussão no organismo feminino. No caso das fábricas que trabalham com radiação, esta afeta o tecido embrionário nos três primeiros meses de gravidez, fase em que em geral a operária não sabe que está grávida. A criança vai sofrer os efeitos dessa radiação em sua saúde anos mais tarde. E os culpados ficam impunes. O que seria preciso fazer? Estudar os agentes nocivos nas fábricas em que a mulher trabalha.
A denúncia teve alguma consequência prática em termos de políticas gerais?
Naquela época houve a denúncia do amianto e muitas nações ali presentes o proibiram. O Brasil não quis assinar.
Antes da memória, dado que fiquei muito interessada na expressão “vanguarda enraizada”, pergunto-lhe se não há por parte de muitos intelectuais um tratamento excessivamente condescendente – a ponto de soar irritante e até ofensivo – ao examinar hábitos, comportamentos, modos de vida de representantes das classes mais pobres etc., quando não têm qualquer vínculo efetivo com essas comunidades.
Quando um intelectual vai à periferia colher informações, ele está recebendo. Ali, o doador é o pobre. Ele vai colher informações para fazer tese, subir na carreira acadêmica, e quem lhe deu tudo fica vivendo sua vida precária, sem esperança. E o intelectual sobe à custa desses doadores, sem formar com eles – numa expressão que me é caríssima – uma comunidade de destino. São destinos divergentes e ele tem que ter consciência disso. Aliás, na pesquisa é fundamental a pessoa perceber que uma coisa é registrar informações e outra coisa é escutar. Se o pesquisador tem o dom da escuta, a palavra “dom” já inclui a amizade. Não existe amizade temporária. Não existe simpatia fácil pelo sujeito da pesquisa, pela classe desfavorecida. Existe engajamento responsável da vida inteira. Isso é amizade.
Podemos voltar então ao trânsito das leituras para a memória.
Todo ano dou curso sobre memória e oriento as pesquisas dos alunos que também vão estudar memória. No estudo Memória e sociedade colhi a memória biográfica, mas também veio junto a memória do tempo, do espaço, a memória política, a memória do trabalho e a memória cultural. Quais eram as características desses velhos entrevistados? Eram sensíveis às transformações urbanas. Eles foram percebendo como a cidade foi mudando e como isso se refletia em cada passo da biografia. Os urbanistas têm que escutar essas memórias, saber o que essa cidade significa e o que as transformações da cidade significaram na vida de seus cidadãos. O que os velhos me contaram das suas cidades? Contaram histórias que ouvimos de nossos avós, a passagem do cometa Halley, em 1910. Todos descreveram o cometa Halley, descreveram os mata-mosquitos de Oswaldo Cruz nos bairros varzeanos, descreveram a gripe espanhola, as peripécias do ladrão Meneghetti, que era um ladrão muito simpático, que tirava dos ricos para dar aos pobres. Aliás, as histórias do Meneghetti são extraordinárias. Ele comprava discos de ópera, porque aqueles bairros operários, como o Bixiga, eram bairros italianos, e como era o único que tinha vitrola, colocava bem alto, para todos ouvirem. Eram todos loucos por ópera. Mas a memória dos velhos rema contra a maré, porque a cidade não permite a visitação de um velho a outro. Eles perdem o grupo recordador das mesmas lembranças. Esse grupo recordador é testemunha e intérprete dessas lembranças. Quando isso se perde, as memórias se dispersam e precisa muito esforço para colhê-las. O anarquismo do início do século XX, a revolução do Isidoro, aliás quanta criança se batizou com nome de Isidoro depois… A Coluna Prestes, a revolução de 1932, as duas grandes guerras, Getúlio e o trabalhismo, lembrados de maneira comovente. Na morte de Getúlio, me contou um velho, foi lançado gás lacrimogênio para que os operários não se reunissem, mas eles se reuniram mesmo assim e choraram por causa do gás, só depois souberam por quê. Eu entrevistei uma professora comunista que subia nos andaimes e jogava pedras quando havia passeata de integralistas e entrevistei um velho integralista que recebia as pedradas quando se construía a Catedral. Os pontos de vista são diferentes, mas as suposições constituem a história igualmente, seja qual for nosso ponto de vista. Outra lembrança interessante são as de jovens e adultos que lembram de noites, no tempo da ditadura, em que escutavam cochichos, camas arrastadas, lugares improvisados. E essas confusões domésticas eram para esconder militantes que se refugiavam nessas casas. Entendemos que centenas de famílias esconderam revolucionários, simpatizando ou não com suas ideias. Acho impressionante. Quantas donas de casa não esconderam jovens perseguidos pela polícia? Salvaram a vida deles, sem conhecer a ideologia desses jovens? As lembranças do espaço e dos acontecimentos políticos e históricos começam, em primeiro lugar, na casa materna, que é o centro geométrico do mundo. A cidade parte da casa materna em todas as direções. Dali partem as ruas, as calçadas onde a vida se desenrolou. Eu colhi os pregões dos vendedores, as cantilenas que atravessavam os bairros. Gravei pauta musical dos bairros e aprendi que a cidade não é só um mapa visual, é um mapa sonoro e ele faz parte da nossa identidade, da nossa integridade. Se você pensar, a rua tem uma trilha sonora. Se você começar a gravar, desde uma porta que se abre, a vassoura na calçada, as lojas que se abrem… É muito bonito o paulistano descrevendo a cidade, porque ele fala “ali na Penha” e aponta a palma da mão.

Ele tem a cidade na palma da mão.
É um mapa afetivo da cidade. Quais são os lugares da memória paulistana? O viaduto do Chá, a Catedral, a Penha, porque as crianças que eram batizadas eram levadas na Penha e os noivos iam peregrinar na Penha depois do casamento. O Museu do Ipiranga, o Jardim da Luz, a Cantareira e o Teatro Municipal. Os velhos memorialistas diziam “desci os 84 degraus…”, como se todos soubessem que tem 84 degraus. Esse pessoal do Brás e da Mooca botava as melhores roupas e vinha para a porta do Municipal. Desfilava a elite paulistana, seguia para seus lugares. Depois o bilheteiro escolhia daquele pessoal os que estavam mais bem-vestidos e dizia para entrar. Então o que eles faziam? Ficavam nas galerias e batiam palmas na hora certa, porque conheciam a ópera. Quando começavam a bater palmas na galeria, a elite sabia que era um momento importante. Se um tenor desafinava, por exemplo, a galeria ficava em silêncio, diziam “stonato il tenore”, e não batiam palma. E tinha uma figura extraordinária em São Paulo, que era um preto que tinha uma risada inesquecível. Então ele era sempre convidado a entrar de graça, claro. Quando ele ria, a risada dele contagiava todo o auditório. Eu tinha um tio que era claque e ele me ensinou a bater palma, como a claque devia bater palma, fazendo um eco. E as várzeas: da Barra Funda, do Glicério, do Limão, da Casa Verde, quantos campos de futebol ali existiam? Só conhecemos o futebol de estádio quando as indústrias tomaram as várzeas para usar o rio como canal de seus dejetos.
Essas memórias são todas da primeira metade do século XX?
Sim, mas isso não quer dizer que eles não continuaram lutando até o fim. Já lhe conto da dona Jovina Pessoa, uma grande militante que entrevistei. Os bairros de São Paulo, quando descritos pelos velhos, têm uma biografia, assim como nós. Têm infância, juventude, maturidade e velhice. E a velhice é a quadra mais bela dos bairros, porque ali se constituiu já a sua memória. A fisionomia do bairro amadurece, acompanha a respiração dos moradores. As nossas histórias se misturam com a história do bairro e vamos enxergar na rua aquilo que nunca vimos, mas que nos contaram. Quando a fisionomia do bairro se humanizou e amadureceu, ela pode continuar vivendo, mas pode ser golpeada de morte. Golpeada pelas imobiliárias e urbanistas que não têm nenhum interesse na memória, na sobrevida dos moradores. O caminho familiar entre a casa e os lugares que se costuma ir não é um privilégio do ser humano, mas do ser vivo. O bairro é uma totalidade estruturada, comum a todos, que vamos percebendo pouco a pouco e traz um sentido de identidade ao morador. É terrível perder o caminho de volta, é o retorno do caminho familiar se ele ainda existe. Os velhos ficam acuados quando as quadras do bairro são arrasadas. Para onde vão? Tentam resistir, mas em geral perdem a parada. A mudança e a morte se equivalem para as pessoas. Os urbanistas devem escutar os velhos moradores que têm a memória de cada rua e de cada bairro. Os conselhos de bairros têm direito de veto? Teoricamente sim, mas será que são escutados?
Seu trabalho sobre a memória seguiu-se às Leituras de operárias, portanto, as entrevistas com os velhos ocorrem nos anos 1980?
Isso mesmo. E depois dessa tese floresceram os estudos sobre memória no Brasil, muitos. Há uma causa profunda para eles e acredito que seja decorrência da necessidade de enraizamento.

Afinal, vivíamos num país que estava tentando extirpar um pedaço da memória por razões políticas, não é?
Os trabalhos de memória e sociedade têm um selo de nostalgia, um sabor agridoce. Porque a pessoa, enquanto conta a vida e a cidade, faz uma das operações mais difíceis para a mente humana, que é aceitar o irreversível, o que se perdeu. Quando conta, dá seu consentimento a essa perda, com graça e com liberdade. Instruída por esses bravos recordadores, pensei neles e na velhice na sociedade industrial. Como esta sociedade é maléfica para a velhice! Por causa das mudanças históricas que se aceleram, o sentimento de continuidade da pessoa é rompido.
E foi aí que veio seu projeto da Universidade da Terceira Idade?
Sim, abrimos a universidade. Afinal, não são os impostos dos velhos trabalhadores que nos sustentam? Então é natural que venham. E quem vem? Pessoas que nunca conseguiram estudar. E sentam-se na classe junto com os alunos de graduação. É a primeira vez que nosso aluno estuda ao lado de um trabalhador manual, um pedreiro ou uma doméstica que não estão a serviço dele. Essas pessoas estão participando da paixão pelo conhecimento e alguns tomam três conduções para ir à USP. Às vezes uma delas lava toda a roupa do cortiço onde mora para comprar uma revista especializada que o professor pediu. Falei trabalhadores manuais porque eles são a glória do projeto, mas podem vir também alunos que têm mais cultura que o professor, como a dona Neuza Guerreiro, bióloga, uma pessoa de grande cultura. Mas em geral são pessoas que não puderam estudar e elevam o nível das aulas, porque foram testemunhas da história. O aluno não sabe o que sofreu uma pessoa exilada e perseguida pela ditadura e o aluno de terceira idade a seu lado pode ter sido essa pessoa. Nem sempre o mais jovem tem a visão mais avançada. Quer um exemplo? Uma aluna que nunca teve estudo universitário é mãe de dois arquitetos que estão desenhando a planta da nova casa. Ela vira-se para os filhos e diz que não concorda com a planta, embora esteja muito bonita, porque o tamanho do quarto de empregada é minúsculo e, ela explica, no curso de psicologia social aprendeu que o espaço do trabalhador tem que ser mais respeitado. E os arquitetos refazem a planta de novo. A Universidade da Terceira Idade vai muito além de um projeto acadêmico porque reaproxima o idoso da comunidade.

Mas eles não podem ser vítimas de um certo preconceito por parte dos alunos?
Logo o preconceito se desfaz. Um velho operário, ante a classe reclamando do excesso de bibliografia para a prova, levanta-se e diz que foi operário a vida inteira, mas que agora, por causa da idade, só consegue trabalho quando os operários saem e ele vai lavar as máquinas e o chão. Comenta, “que trabalho pesado”, pede um livro a um colega, segura, mostra para a classe e diz: “Como o livro é leve!”. Isso comove a classe toda. Como o livro é leve perto do trabalho de um metalúrgico discriminado porque está velho! Coisas inesquecíveis.
A cada ano, quantos estudantes da terceira idade entram na USP?
Varia, mas nos anos recentes em geral têm entrado 10 mil. Já tivemos mais de 100 mil matrículas em 21 anos. Eles vêm de toda parte e se espalham pelos diferentes cursos e departamentos. À não especialização do velho, corresponde também a não especialização do professor. Assim, o professor de mineralogia dá aula de dança folclórica, de roda. O professor de engenharia química dá aula de cinema. Porque o professor tem aí uma responsabilidade enorme, dá aula para um aluno que já estava interrogando as estrelas antes de ele ter nascido. O professor é consciente do passado desse aluno e por isso se prepara muito mais para dar essa aula.
Como chegaram os primeiros alunos à Universidade da Terceira Idade?
Muito tímidos. Eu queria lembrar dona Santinês, vendedora ambulante, cozinheira, que teve uma vida muito sofrida. Eu estava dando uma aula dizendo que o tempo é vivido diferentemente conforme a classe social. A classe estava com dificuldade para apreender isso e ela, semialfabetizada – só tinha lido mesmo a Bíblia – se levantou e começou a citar versículos bíblicos que sabia de cor. Ela dizia assim: “Todas as coisas têm seu tempo debaixo do sol. Há tempo de nascer e de morrer, tempo de plantar e tempo de colher, tempo de chorar e de sorrir, tempo de rasgar e de costurar, tempo de buscar e tempo de perder, tempo de abraçar e de se separar; tempo de calar e tempo de falar”. Os alunos compreenderam na hora e ficaram tocados, porque ela mesma tinha chegado ao tempo de falar – falar em público, se expressar.
Ouvir sobre sua trajetória acadêmica me traz a sensação de que ela é atravessada por um componente mais íntimo muito poderoso. Permita-me perguntar, o que lhe move à visão generosa de inclusão social?
Talvez o meio em que vivi meus primeiros anos. E a imensa simpatia que tenho por essas pessoas humildes que me deram tudo me faz achar que devo estar a serviço delas enquanto eu viver. Na verdade, estou a serviço da Universidade da Terceira Idade, não fico à vontade se você diz que eu a criei ou que a dirijo – estou a serviço.
Pergunto por conta de seu longo trajeto marcado por esse sentido de serviço ao outro. Aí vejo a expressão de um exercício cristão ou de outro campo religioso similar, a expressão de uma dimensão utópica na prática da vida cotidiana, enfim… As pessoas generosas são muito movidas por crenças profundas.
E você quer coisa mais bonita que o serviço? Qual foi o primeiro milagre de Cristo? Transformou água em vinho numa festa para tomar com os amigos. Foi um primeiro serviço muito humano e daí foi em frente.
Quem são os seus mestres em psicologia social?
Falo dos que são próximos, muito presentes quando escrevi meus trabalhos. Em teoria da Gestalt, Anita de Castilho Marcondes Cabral, em teorias sobre o tempo, Henri Bergson. Também Maurice Halbwachs [1877-1945], a quem dediquei meu livro, psicólogo social que morreu no campo de concentração de Buchenwald. E na hora da interpretação minhas ligações são com Adorno, Marx, Hannah Arendt… Gosto especialmente do fundador da ecologia política, Andre Gorz [1923-2007]. Figura linda. E o último livro dele, Cartas a D., que são cartas de amor que escreve para a mulher, foi traduzido a meu pedido. A edição brasileira é mais bonita que a edição francesa.
Como é sua prática diária na universidade?
Eu oriento trabalhos de memória. Encontrei Simone Weil em meu caminho, hoje coordeno o Laboratório Simone Weil, que já tem 11 anos. É interdisciplinar e reúne pesquisadores que só estudam a obra de Simone Weil. Daí nasceram pesquisas admiráveis baseadas em seu conceito de enraizamento. Coordeno a Universidade da Terceira Idade e dou aulas na graduação e na pós. E plantei quatro pomares.
Vamos contar essa história dos pomares.
O paulistano é um migrante urbano. Entrevistei umas 140 pessoas e só uma vivia na casa em que nasceu. Eu mesma mudei muito de casa, e em cada casa que morei plantei um pomar, mas não cheguei a colher frutos a não ser na casa de Cotia, onde vivi por 40 anos e da qual saí há alguns meses. Sinto muita falta das minhas árvores. A vida é um pouco isso, plantar árvores frutíferas, pedindo a Deus que alguém esteja lá depois saboreando os frutos.