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Especialistas discutem como conciliar saberes tradicionais e pesquisas científicas

Como conciliar a Ciência e o uso de saberes tradicionais para o desenvolvimento do País? O ponto de interrogação é de especialistas e representantes indígenas que discutiram ontem (25) o tema central da 64ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) na mesa-redonda "Saberes Tradicionais e pesquisa científica – desenvolvimento de produtos e processos para enfrentar a pobreza". Realizado na Universidade Federal do Maranhão (UFMA), em São Luís, o evento encerra amanhã.

Como conciliar a Ciência e o uso de saberes tradicionais para o
desenvolvimento do País? O ponto de interrogação é de especialistas e
representantes indígenas que discutiram ontem (25) o tema central da 64ª
Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência
(SBPC) na mesa-redonda “Saberes Tradicionais e
pesquisa científica – desenvolvimento de produtos e processos para
enfrentar a pobreza”. Realizado na Universidade Federal do Maranhão
(UFMA), em São Luís, o evento encerra amanhã.

Na discussão, os especialistas destacaram a
importância de investimentos em Educação, alinhados a investimentos em
pesquisas científicas, a fim de explorar o potencial da biodiversidade
brasileira. Reconheceram o uso de saberes tradicionais como “uma fonte
valiosa de investigação científica e tecnológica para a criação de
produtos”. Consideraram também o potencial brasileiro para o
desenvolvimento de medicamentos, por exemplo, já que o País
historicamente acumula déficit bilionário na balança comercial de
fármacos. Assim, contribuir para o desenvolvimento do País.

A tendência é de uma mudança no atual modelo
internacional de desenvolvimento econômico, uma vez que os saberes
tradicionais passam a ser reconhecidos no avanço de uma nação. Nas
palavras do antropólogo Alfredo Wagner Almeida, presidente do Programa
Nova Cartografia Social da Amazônia, na primeira década do século XXI há
uma significativa movimentação internacional para o reconhecimento de
saberes tradicionais no processo de desenvolvimento.

O ponto de partida para esse cenário, analisou o
antropólogo, é a Convenção da Diversidade Biológica (CDB). Fruto da
Eco-92, conferência internacional realizada em 1992 no Rio de Janeiro, a
Convenção já foi assinada por 175 países, dos quais 168 a ratificaram,
incluindo o Brasil, via o Decreto Nº 2.519 de 16 de março de 1998. Em
linhas gerais, a CDB propõe regras para assegurar a conservação e uso
sustentável da biodiversidade e a justa repartição dos benefícios
provenientes do uso econômico dos recursos genéticos.

“Um ponto importante
é o reconhecimento internacional da igualdade jurídica da expressão
cultural entre diferentes povos e comunidades. Esse é o ponto central.
Hoje temos a igualdade jurídica”, disse o antropólogo, também
conselheiro da SBPC, que participou do debate de ontem.

A mesa de discussões foi dividida com a presença
de Vanderlan da Silva Bolzani, professora titular do Instituto de
Química da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e membro da
coordenação do Projeto Biota-Fapesp. E da advogada Fernanda Kaingang,
dirigente do Instituto Indígena Brasileiro para Propriedade Intelectual
(Inbrapi).

Ao fazer a abertura do evento, a
secretária-geral da SBPC, Rute Andrade, também pesquisadora do Instituto
Butantan (SP), avaliou que o debate deverá “contribuir muito” para o
avanço da sociedade brasileira. Ela intermediou a mesa de discussão
ontem.

Novos horizontes – Até então, o tema sobre os
saberes tradicionais, segundo o antropólogo, limitava-se ao movimento
indígena proposto pela Universidade e pelo Estado. Hoje, porém, a
questão do uso dos conhecimentos milenares de vários povos foi ampliada:
é um tema das universidades e dos movimentos sociais pautado em uma
relação estratégica empresarial.

Benefícios da química verde – Por sua vez, a
pesquisadora da Unesp, Vanderlan, considerou os benefícios econômicos
provenientes da química verde de produtos naturais, como as plantas.
Reconhecendo a importância do uso de saberes tradicionais, os atribuiu a
“uma ferramenta útil” utilizada nas pesquisas sobre a ciência de
plantas e no desenvolvimento tecnológico de produtos com alto valor
agregado. Nesse caso, ela considera fundamental o investimento em
pesquisa e em educação nos usos tradicionais para agregar valor aos
conhecimentos milenares de vários povos. “Não se pode falar de um novo
conhecimento e de inovação sem citar a Educação”, alertou.

Como um exemplo bem sucedido sobre a apropriação
da ciência nos conhecimentos tradicionais, Vanderlan citou o caso da
planta Taxus brevifolia (Taxaceae) – nativa da costa ocidental da
América do Norte (Ocorrência do Alasca à Califórnia). Era usada na
medicina popular pelos nativos americanos como produtos “para dar
força”, induzir a transpiração, em tratamento de ferimentos internos e
para a cura doenças pulmonares. Pela sua resistência, a planta é usada
tradicionalmente na elaboração de remos de canoa, molduras de quadro,
marcenaria.

Resultado de 15 anos de pesquisa acadêmica,
estimada em US$ 400 milhões, Vanderlan relatou que os cientistas
descobriram que essa planta pode ser usada para tratamento de câncer de
mama. Assim, em 1994, esse conhecimento científico foi aprovado pela FDA
(agência reguladora de produtos alimentícios e farmacêuticos nos
Estados Unidos) para o tratamento dessa doença.

“Isso mostra a
importância da pesquisa científica de excelência sobre saberes
tradicionais no desenvolvimento de produtos e processos”, declarou a
cientista da Unesp. Ela destacou que os saberes tradicionais dessa
planta é um processo contínuo de desenvolvimento.

Potencial brasileiro – Vanderlan analisou o
cenário atual do mercado mundial de produtos derivados de plantas e
citou o potencial da biodiversidade brasileira que pode ser explorada
pela pesquisa científica no processo de desenvolvimento de medicamentos,
por exemplo. Com base em dados internacionais, Vanderlan disse que os
gastos internacionais com a saúde são estimados em US$ 179 bilhões este
ano.

A apresentação de Vanderlan revela que as
espécies de plantas de uso tradicional utilizadas pelos índios da
Amazônia “inspiraram” o desenvolvimento de uma classe de medicamentos
anestésicos. Um exemplo é o Atracurium (Tracurium), um dos derivados
sintéticos fundamentados na estrutura de Tubocurarina. A pesquisadora
lembrou que a “introdução de tubocurarina na prática anestésica, por
Griffith e Johnson, em 1942, provocou alterações profundas na
anestesiologia.”

Com base em estudo do Ministério de
Desenvolvimento, Indústria e Comércio (MDIC), Vanderlan declarou que
agregação de valores da cadeia produtiva de plantas medicinais é
substancialmente maior do que a da soja. Segundo o estudo, o coeficiente
de agregação de valor calculado para a cadeia de plantas medicinais é
de 16,24, contra 2,22 da cadeia da soja.

Análise indígena – Ao avaliar as discussões, a
dirigente do Inbrapi, Fernanda, reiterou o fato de os indígenas serem os
protagonistas da conservação da biodiversidade brasileira, ao
responderem hoje por mais de 13% do território nacional. Em uma alusão
às empresas multinacionais que exploram a biodiversidade brasileira, a
advogada disse faltar repartir os benefícios “com quem conserva os
conhecimentos científicos”. Ela chamou de “biopirataria” a exploração do
conhecimento tradicional sem a contrapartida. A indígena também
considerou fundamental promover a discussão sobre aplicação da “ética
nas pesquisas” na comunidade acadêmica.

Desafios brasileiros – A indígena defendeu o
avanço na tramitação da Medida Provisória (MP) 2.186-16, de 23/08/01,
segundo a qual dispõe sobre o acesso ao patrimônio genético, a proteção e
o acesso ao conhecimento tradicional associado, dentre outros normas
que podem preservar o uso dos saberes tradicionais. A MP também prevê a
repartição de benefícios e o acesso e a transferência de tecnologia para
sua conservação e utilização.

O debate foi elogiado pela plateia – composta
por dezenas de alunos, pesquisadores, professores e cientistas – que
aplaudiu as discussões e contribuiu para esquentá-las. Um alerta partiu
de um participante da plateia sobre testes de empresas que vêm ocorrendo
na Amazônia para exploração de petróleo.

Ao final do debate, o secretário regional da
SBPC no Maranhão, Luís Alves, recomendou a comunidade acadêmica a
trabalhar com os elementos apresentados ontem. “Ela tem de mostrar que o
bem comum tem de ser respeitado”, disse ele, também médico patologista e
professor da UFMA.

Alfredo Wagner também sugeriu ampliar o debate
sobre como conciliar o uso de saberes tradicionais com as pesquisas
científicas. “O consenso é mal porque ele é burro”, disse ele,
parafraseando Nelson Rodrigues e descartando o consenso nas discussões
de ontem.

(Viviane Monteiro – Jornal da Ciência)