A defesa da qualificação da educação básica foi a tônica das exposições do segundo dia do 3º. Encontro Preparatório para o Fórum Mundial da Ciência, que acontece em Manaus, no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA). O assunto foi tratado unanimemente como questão inicial para que se pense na qualidade dos futuros doutores do Brasil e a integração das populações tradicionais. Nessa linha, no dia anterior, durante a abertura do evento, o professor Adalberto Ramón Vieyra, da Academia Brasileira de Ciências, já havia destacado a importância da valorização de uma educação básica de melhor qualidade no País e a integração de populações indígenas para que as decisões sejam tomadas em diálogos com esse grupo social.
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A palestra que abriu o segundo dia da programação do evento teve como tema “Trópico úmido: singularidades, potencialidades, demandas para seu desenvolvimento e o papel da ciência”, com a participação de Philip Fearnside, Maria Teresa Fernandez Piedade, ambos do INPA, e Sylvio Mario Puga Ferreira, da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). O tema serviu como pano de fundo para as mesas redondas que aconteceram ao longo do dia. As exposições trataram dos aspectos relevantes do Trópico úmido, com foco na Amazônia, identificando o que pode ser considerado fundamental para os interesses humanos, os indicadores socioeconômicos para mostrar o estágio de desenvolvimento de seus habitantes e o papel que a ciência pode ter para ampliar as expectativas por um desenvolvimento com sustentabilidade.
O professor Philip Fearnside destacou que, em geral, as demandas de pesquisa na Amazônia são no sentido de maior produção e, portanto, maior lucro, mas que as pesquisas precisam priorizar e seguir as necessidades da sociedade. “Nem sempre a resposta em pesquisa é para o aumento da produção; eu mesmo já pesquisei e a resposta não foi essa, ou seja, às vezes, chegamos a conclusões que não são bem-vindas”, explicou. “A questão da sustentabilidade da pesquisa na região amazônica também precisa ser levada em conta, além do que as pesquisas não são feitas para atender a demandas; a parte criativa do pesquisador não funciona assim.”
Outro ponto tratado pelo pesquisador foi o da antipesquisa. O aumento da crença da população de que a ciência é uma grande fraude está aumentando, segundo Fearnside, especialmente antes da realização da Conferência Rio+20. Esse problema tem sido ampliado pela grande imprensa no Brasil, que tem aberto amplo espaço para céticos se pronunciarem, sem dar oportunidade para que cientistas contrários a essa ideia tratem do assunto. “Nem todos os pesquisadores estão debatendo com os céticos e acho um erro não responder a isso para não polemizar”, diz Fearnside. “Se as pessoas não acreditam nas mudanças climáticas, não fazem nada para mudar e não temos muito tempo para esperar.” Ele reforça que é fundamental estar ativo nesse debate e em todas as discussões acerca do tema.
A pesquisadora Maria Teresa Fernandez Piedade tratou das áreas amazônicas alagáveis, explicando que estas são ambientes nos quais a água predomina por tempo suficiente para selecionar comunidades adaptadas específicas. As áreas úmidas existem em todos os biomas no Brasil. “Elas proporcionam estocagem e limpeza da água, regulagem do clima local, manutenção da biodiversidade aquática e terrestre, e subsídios para as populações humanas tradicionais”, explicou a professora.
A construção de hidrelétricas foi apontada por Piedade como uma questão extremamente preocupante porque estas interferem diretamente nessas áreas úmidas, que chegam a 1,5 milhão de quilômetros quadrados na Amazônia. Consequentemente, essa situação interfere na vida de ribeirinhos, por exemplo, que são adaptados a essa dinâmica na região. Segundo os números apresentados, essas construções atingem os cerca de 60% da população rural da Amazônia, formados por aproximadamente 2 milhões de pessoas.
Piedade destacou as atividades de pesca, pecuária e silvicultura nessa região, destacando que “as áreas alagadas amazônicas oferecem diversos serviços ambientais altamente valiosos para o homem”. Ela também chamou a atenção para algumas preocupações recentes, como o conjunto de cheias mais intensas e secas mais extremas registradas nos últimos anos, provocando maior isolamento das populações. A professora lembrou que as ações anteriores às catástrofes são muito importantes e mais baratas que remediar as consequências. “É muito mais caro pagar pelos efeitos das catástrofes do que preveni-las”, disse. “Os conhecimentos científicos e tecnológicos já existentes referentes às áreas alagáveis não estão sendo valorizados”.
Painéis – A mesa redonda “Florestas tropicais, mitigação e adaptação a mudanças climáticas” contou com a participação de Foster Brown, da Universidade Federal do Acre (UFAC), Niro Higuchi e Philip Fearnside, do INPA, e Celso Azevedo, da Embrapa Amazonas, unidade da Empresa Brasileira de Pesquisas Agropecuárias. As discussões trataram do risco de as grandes áreas de floresta tropical não sobreviverem às mudanças de clima projetadas para cenários sem mitigação do efeito estufa e a importância dos esforços para controlar o desmatamento, como parte de uma estratégia para mitigar a mudança de clima nas próximas décadas. As mudanças de clima ameaçam a biodiversidade dessas florestas, os povos tradicionais e outros que dependem das florestas para seu sustento.
O professor Foster Brown defendeu a necessidade de se saber medir melhor os retrocessos e os impactos sociais na questão das mudanças climáticas. “É importante envolver mais cientistas sociais”, disse. ”Precisamos discutir como fazer mais com menos, como fazer o bonito barato, porque o desenvolvimento negativo não vai ajudar. Temos que medir e desenvolver soluções para o desenvolvimento negativo.”
Para Niro Higuchi, a adaptação das florestas às mudanças climáticas depende da frequência e da intensidade em que ocorrem os eventos. “El Niño, por exemplo, causou todo tipo de estrago na Amazônia e a adaptação dela vai depender da frequência desse tipo de evento.”
Brown compartilhou a opinião de Higuchi, lembrando que no Acre, em 2005, um grande número de florestas pegou fogo, sendo que não foi a pior seca da história (que, segundo ele, aconteceu em 1925). “Podemos ter um desastre na Amazônia de grandes proporções”, alertou. “Precisamos pensar em como reduzir o fogo, combinando ciências naturais e sociais.”
Educação e cultura
Sob o tema “Educação e cultura para formação de cientistas e inovadores nos trópicos”, última mesa-redonda do dia foi integrada por Ana Carla Bruno, do INPA, Arminda Mourão, da Universidade Federal do Amazonas, Nilza Pereira Araújo, da Universidade Federal de Roraima, e Niomar Pimenta, da Fundação Centro de Análise, Pesquisa e Inovação Tecnológica. Os expositores identificaram aspectos relevantes para que o sistema educacional propicie formação para crianças, jovens e adultos comprometida com as demandas do universo científico, no contexto das sociedades localizadas no Trópico úmido.
A pesquisadora do INPA, Ana Carla Bruno, iniciou sua fala atentando para a diversidade étnica, linguística e social “ignorada na região”. Segundo ela, o estado do Amazonas tem 64 etnias indígenas, com 29 línguas ainda sendo faladas. A professora chamou a atenção para o fato da busca por ensino de qualidade por parte dessa população. “Eles querem entender, por exemplo, como os cientistas do INPA categorizam os peixes, como é o fazer científico do Instituto”, informa. “Esses grupos não estão mais em redomas, mas eles leem o que escrevemos sobre eles e querem refletir e colaborar com o que escrevemos sobre eles.” Ela destacou que é preciso estar atento para lidar com as diversidades a região e que os cursos de graduação e pós-graduação precisam estar preparados para lidar com esses alunos e suas diferenças.
Ana Carla Bruno também tratou do papel da mídia na percepção que a população tem da ciência. “O papel do jornalismo científico é fundamental, mas a mídia ainda confunde e desinforma a população”, avalia. “No caso das terras indígenas, o agronegócio forte ainda é o que pauta e manipula a mídia. Nos últimos anos, os antropólogos brasileiros estão sendo atacados por essa bancada ruralista, que diz que a ciência antropológica é medieval, e isso pode ser exemplificado no caso dos índios guarani-caiová, do Mato Grosso do Sul.” Para a professora, é importante agir na educação básica e na interdisciplinaridade para diminuir o preconceito que existe com as questões indígenas. “Se não formos interdisciplinares, não teremos condições de nos atentar para esses problemas e essas realidades.”
A professora Arminda Mourão destacou em sua fala que os institutos de pesquisa precisam se preocupar com a qualidade da educação básica. “O Brasil precisa repensar o sistema educacional, a organização do trabalho dentro das escolas e das universidades, levando em conta as mudanças na sociedade”, declarou. “Estamos formando professores que não querem ser professores, e o que leva a isso é o tripé salário-carreira-formação.” Ela também defendeu a integração das diferentes áreas do conhecimento e a conservação dos saberes tradicionais. “É preciso mudar a nossa mentalidade para mudar as práticas.”
Ciência sem Fronteiras
Depois de participar de um dos painéis, o professor Niro Higuchi, que fez parte da equipe do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, na sigla em inglês), que recebeu em 2007 o Prêmio Nobel da Paz, conversou com o Jornal da Ciência e destacou a importância do programa Ciência sem Fronteiras para a região amazônica. “É um programa fantástico e que permite a integração com cientistas de outras regiões. O problema do qual estamos falando hoje é um problema de todos, não tem o mais ou menos responsável. Todos são responsáveis, o que talvez diferencie um pouco é o grau de responsabilidade. Na hora em que acontecer alguma coisa catastrófica, vai ser para todo mundo e não para o mais ou menos desenvolvido.”
Para Higuchi, procurar culpados nesse momento é muito complicado e o programa Ciência sem Fronteiras dará oportunidade para que pesquisadores de fora tenham uma melhor noção do que é a região amazônica e sua diversidade, bem como contribuam nas questões mais complexas. “Acho que todo mundo tem que fazer um esforço e o programa Ciência sem Fronteiras permite isso, que cidadãos de fora deste País – e até mesmo brasileiros – venham, porque também é interessante colocar brasileiros de outras regiões para entender um pouco mais essas florestas aqui e qual o papel delas nas mudanças climáticas”, avalia. “No caso desses dois eventos (a tempestade de 2005 e o El Niño de 2009), eu acho que a Amazônia foi vítima de um processo global de emissões de gás de efeito estufa e isso tem que ser avaliado num todo.”
O professor comentou que a vinda de cientistas de fora vai permitir mais estudos e reflexões sobre o assunto. “A região está absolutamente aberta para o Ciência sem Fronteiras, nós somos muito poucos e esse é um grande problema nosso: precisamos de muita gente, não são 10, 20, 50 pessoas; precisamos de milhares de pessoas, e que todos sejam bem-vindos.”
Evanize Sydow, do Jornal da Ciência