Conselho de ética alega que trabalha para diminuir gargalos burocráticos
Médicos e antropólogos divergem sobre o polêmico tema “ética e pesquisa envolvendo seres humanos”, em debate realizado ontem, 25 de julho, na 66ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em Rio Branco, Acre.
Especialistas da medicina querem destravar os nós que barram as pesquisas clínicas no Brasil, que tradicionalmente perde mercado para países que estimulam essa atividade de olho na produção de novos medicamentos e de tratamentos para a saúde humana. Por outro lado, antropólogos alegam que a ética adotada nas pesquisas clínicas fere os direitos humanos.
O debate polêmico reuniu o coordenador da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), vinculada ao Ministério da Saúde, Jorge Alves de Almeida Venâncio, que assumiu o posto em junho do ano passado. Ele revelou que vem realizando reestruturação no órgão na tentativa de simplificar os processos de análises dos protocolos de pesquisas clínicas encaminhados ao órgão, com a contratação de pessoal, e de minimizar gargalos burocráticos da Casa. A medida atende aos anseios da comunidade científica.
Diante das medidas adotadas, Venâncio revelou que houve redução de mais de 50% no estoque de pesquisas clínicas protocolados em apenas seis meses – de 800 processos, em setembro do ano passado, para 388 em março deste ano. O tempo médio de tramitação das análises dos estudos clínicos que era de 118 dias caiu para 90 dias de tramitação. A intenção é chegar a 60 dias.
Tal resultado reflete os ajustes realizados na legislação das pesquisas clínicas. A Resolução nº 196 foi alterada para o nº 466, flexibilizando mais os critérios dos protocolos, ainda que a legislação seja alvo de crítica da comunidade científica pela dificuldade de aprovar os estudos. A Conep é subordinada diretamente ao Conselho Nacional de Saúde (CNS).
O debate reuniu também o antropólogo Luiz Fernando Dias Duarte, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e ex-presidente da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), Charles Schmidt, pediatra, professor da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo (FCMSCSP), diretor da Associação Brasileira de Medicina Farmacêutica e membro de uma organização representativa de pesquisa clínica internacional. O encontro foi mediado pela diretora da SBPC, Regina Markus, professora titular de Fisiologia da Universidade de São Paulo (USP).
Perda de oportunidade
Conforme o pediatra Schmidt, o Brasil deixa de receber cerca de US$ 150 milhões por ano de capital estrangeiro para bolsas de estudo e pesquisas para inovação em decorrência do ambiente negativo para o desenvolvimento de pesquisas. Segundo ele, esses investimentos poderiam chegar a US$ 200 milhões. Vale destacar que tradicionalmente, o Brasil acumula déficit de cerca de US$ 12 bilhões na balança comercial da indústria farmacêutica.
Schmidt disse que os laboratórios farmacêuticos internacionais têm procurado os países dos Brics (Brasil, Russia, Índia, China e África do Sul) com interesse de fazer grandes investimentos em pesquisa, mas o que encontram é dificuldade para os negócios. “Uma das razões é que os patrocinadores dos estudos encontraram grande dificuldade de se relacionar com os aspectos regulatórios e a corrupção é muito peculiar nesses países”, analisou.
Segundo ele, no Brasil o número de estudos vem caindo muito, diante da dificuldade de aprovar estudos clínicos. Enquanto isso, a China continua se destacando na área, ocupando o segundo lugar, com 5 mil estudos clínicos por ano, atrás dos Estados Unidos, com 50 mil, em razão do acesso ao mercado farmacêutico sob a influência da demanda. Estima que o Brasil nos próximos anos deverá se tornar o maior consumidor farmacêutico mundial. “Ninguém quer perder esse mercado.”
Violações aos direitos humanos
Por sua vez, o antropólogo da UFRJ, Duarte, destacou os riscos de “vulnerabilidade das populações afetadas por pesquisas em seres humanos”.
“As ciências médicas têm trágicos históricos de experiências negativas de violações gravíssimas aos direitos humanos. As pesquisas em ciências humanas e sociais não acarretam os danos que podem ser previstas em certas circunstâncias das pesquisas biomédicas, que intervêm na corporalidade humana. A maioria das ciências humanas e sociais não interfere na corporalidade humana – as interferências são nos procedimentos relacionais e dialogais”, disse.
Na tentativa de ouvir a área de ciências humanas e sociais, a Resolução 446 prevê a criação de um grupo de trabalho para acompanhar o julgamento dos projetos de pesquisas clínicas dentro do sistema do CNS que faz tais procedimentos. A intenção dos antropólogos é criar uma legislação específica. “Houve um atendimento de nossas demandas na resolução 446 prevendo a criação de um GT para produzir uma resolução específica para ciências humanas e sociais no tocante à ética em pesquisa em seres humanos. Isso vem sendo trabalhado há um ano”, informou o antropólogo.
Apesar de elogiar a atuação de Jorge na coordenação da Conep, Duarte criticou o conflito e tensão nas relações. “Do ponto de vista dos profissionais de ciências humanas é um absurdo básico, uma situação esdrúxula básica, de ter de discutir as condições éticas, da realização de pesquisa em ciências humanas dentro do guarda-chuva da Saúde. Isso nos causa grandes dificuldades, não é a toa que há um ano estamos discutindo essa possível resolução”, disse Duarte.
O coordenador da Conep fez questão de frisar que a função do sistema brasileiro que analisa e aprova os protocolos de pesquisa clínica é de defender os direitos dos participantes dos ensaios clínicos. “Nosso compromisso com essa visão de fundo é integral.”
Segundo Venâncio, a preocupação com a ética nas pesquisas com seres humanos deriva de experiências negativas nas pesquisas com humanos no período da segunda guerra mundial, principalmente no decorrer do nazismo alemão. Naquela ocasião, começou a se adotar uma série de critérios fundamentais e de respeito aos direitos humanos nas áreas de pesquisas no mundo.
Transparência
Já o médico Schmidt buscou esclarecer que a ética dos comitês de pesquisas está relacionada à competência dos órgãos em fazer as análises dos projetos encaminhados pelos pesquisadores. “Isso não significa certificar a ética de cada comitê. O que se trata da ética nos comitês é de processos. Se o comitê de ética segue os processos que ele mesmo determinou para análises dos protocolos de pesquisas”, disse.
Dessa forma, Schmidt disse que quanto mais transparência nos ensaios clínicos da pesquisa, melhor é o resultado do julgamento.
Apesar de elogiar a atuação de Venâncio na Conep, Schmidt disse que o Brasil não é atrativo para os estudos clínicos em razão também da burocracia e de atitudes políticas. Ele criticou o fato de o País precisar passar por dois órgãos – CEP e Conep – para julgar os procedimentos. Segundo ele, os CEPs têm capacidade de realizar os estudos sem precisar submetê-los à Conep.
“No Brasil, os gargalos não se limitam apenas ao tempo. Há também questões internas e políticas.”
(Viviane Monteiro/ Jornal da Ciência)