“A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens.” A frase de Hannah Arendt em seu livro “A Crise na Educação”, de 1957, ainda ecoa nos dias atuais. Em tempos de debate sobre reformas educacionais e a ameaça da adoção de modelos retrógrados nas escolas – cujo maior exemplo é o projeto “Escola Sem Partido” –, a educação foi debatida no último dia de palestras da 69a Reunião Anual da SBPC, nessa sexta-feira, 21, no painel “Escola Sem Pensamento Crítico, é isso que queremos para o futuro?”.
A citação de Arendt foi trazida pela professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Jaqueline Moll, reconhecida especialista em educação integral, que lembrou que uma renovação educacional positiva para a sociedade só pode ser feita ouvindo o que esses jovens têm a dizer. E este foi o espírito da última mesa da SBPC ao trazer para o debate Ana Júlia Pires Ribeiro, a estudante que comoveu o País com seu discurso na Assembleia Legislativa do Paraná em outubro de 2016 em defesa da ocupação das escolas secundárias e contra a reforma do Ensino Médio.
“Quando falamos sobre ter essa mesa, nós pensamos que tinha que ter a juventude. E, na minha cabeça, essa pessoa para representar os jovens só podia ser a Ana Júlia”, ressaltou a presidente de honra da SBPC Helena Nader. E a apresentação da estudante superou as expectativas, emocionando muitos presentes.
Escola pra quê? Escola pra quem?
O lema dos estudantes com seu “Ocupa Escola” é o saudável questionamento “Escola pra quê? Escola pra quem?”. “A escola que está aí tem servido para reforçar os dogmas da sociedade. Ela não vem para inovar, ela vem para manter”, criticou a jovem de 16 anos. Quando o assunto é o PL 867/2015, o “Escola Sem Partido”, a manutenção desses dogmas se reflete em violência. Ana Júlia contou que pesquisou os dados de violência homofóbica na base de dados da Secretaria de Direitos Humanos. E os números que encontrou reforçaram para ela a necessidade de se discutir cada vez mais a diversidade nas escolas.
Segundo os dados de 2012, 61% das vítimas de violência homofóbica tinham entre 15 e 29 anos. E 27% dos agressores estão nessa mesma faixa etária. “Esses dois grupos se encontram dentro da escola. Aí eu percebi que quem está praticando essa violência deveria estar aprendendo dentro da escola que isso não se pratica”, analisou Ana Júlia. “Como alguém ainda tem coragem de levantar um projeto de Escola Sem Partido em uma sociedade tão promíscua e preconceituosa como a nossa? Escola Sem Partido, na verdade, é escola de um partido só, onde se mantém os preconceitos”, atacou.
A escola ideal
Ana Júlia pode ser jovem, mas conhece bem as bases pedagógicas que há muito norteiam os defensores de uma escola moderna e inclusiva. De que a escola deve ser um lugar de respeito, de resistência, de dividir saberes e de transformação social. De que a escola não serve para formar operários, mas sim cidadãos. “Ela nos deu aqui as bases da reforma do ensino médio”, disse Jaqueline Moll após a fala de Ana Júlia.
Moll criticou o que chamou de “gerontocracia” nos debates sobre ensino, que têm mantido os modelos escolares cada vez mais distantes dos desejos da juventude. “Vocês jovens, meninos e meninas desse País, estão gritando para nós que não querem mais essa escola”, respondeu a professora. A criação de um espaço real de diálogo e de troca de experiência entre professores e alunos, respeitando a cultura e as visões de mundo de ambos é o que faz uma escola um ambiente de crescimento social na visão da educadora. “Ler e escrever fora do mundo, da realidade desses indivíduos, não faz nenhum sentido. Só se for para formar operariozinhos”, criticou.
Para ela, a iniciativa do Escola Sem Partido vai contra o que há de moderno na pedagogia. “Tinha é que chamar Escola Com Mordaça.” A professora disse ainda que está na hora de o Brasil fazer as pazes com seus grandes pensadores na área da educação como Paulo Freire, Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro. Moll contou que, certa vez, em uma viagem à Finlândia – país considerado o detentor do melhor sistema de ensino do mundo – ouviu dos educadores locais: “Não sei porque vocês vêm aqui buscar o nosso sistema se a nossa base é Paulo Freire”.
Retrocesso
Para Daniel Cara, coordenador-geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação (CNDE), é preciso encarar com seriedade os riscos de um projeto de retrocesso no sistema educacional, como o Escola Sem Partido, seguir adiante. “A gente tem que dar muita atenção porque este é um movimento que está crescendo no País”, alertou. Para ele, parte da força dessas ideias retrógradas está no fato de haver pouco diálogo entre a academia e os defensores de tais projetos. “Eu sei que é difícil, mas tem que dialogar”, afirmou Cara, lembrando que só assim é possível descontruir os argumentos usados por esses grupos. “Eu sempre pergunto para eles o que é educação. E o mais gostoso é que eles não sabem o que é, não têm uma resposta”, lembrou, com ironia.
O alerta de Cara é que, ainda que o projeto de lei não seja aprovado, há uma grande presença dos defensores do Escola Sem Partido nas escolas e universidades, pressionando os professores a seguirem suas visões. Casos de confrontos, inclusive físicos, entre professores e pais já foram comunicados até mesmo à Organização das Nações Unidas (ONU) e à Organização dos Estados Americanos (OEA). A ONU, inclusive, já se posicionou contra o projeto Escola Sem Partido. “Existe um ovo do fascismo na sociedade brasileira e a gente não pode deixar ele ser chocado”, avisou Cara, que classificou esses movimentos de reforma do ensino como uma “estratégia nazista”. “Para eles, pedagogia é igual à doutrinação”, protestou o coordenador do CNDE.
No que depender da mobilização dos estudantes secundaristas, projetos que cerceiem a liberdade de pensamento nas escolas não passarão. “O Escola Sem Partido nos humilha e nos amordaça sim. E quem diz que não, está querendo nos convencer a ser amordaçados”, resumiu Ana Júlia.
Mariana Mazza, para o Jornal da Ciência