A professora Ângela Soligo, pesquisadora do Departamento de Psicologia Educacional da Unicamp, defendeu, durante a Reunião Regional (RR) da Sociedade Brasileira para o Progresso da
Ciência (SBPC) em Rio Verde (GO), que os cientistas pratiquem uma ciência comprometida com a humanidade, a sociedade e as pessoas. Essa prática, segundo a psicóloga, precisa se colocar em oposição às ideias e ideologias que nos oprimem, silenciam e nos afundam nas desigualdades neste tempo de retrocessos por qual passa o País.
O apelo foi feito durante a conferência “Família, as relações de gênero e a sexualidade”, proferida na quinta-feira, 17 de maio, no salão social do Auditório Goiano do Instituto Federal. A fala de Soligo foi feita para um auditório lotado com quase 150 pessoas e mediado pelo professor Elias de Pádua Monteiro, da reitoria do IF Goiano.
A apresentação de Soligo seguiu uma ordem na qual a pesquisadora apresentou os três conceitos do título da conferência para em seguida mostrar como as questões se entrelaçam. A conferência foi concluída sob muito debate e aplausos à pesquisadora.
Esmiuçando os conceitos, a professora argumentou que a família, enquanto instituição, pressupõe uma representação social, ou seja, um modo conformado pela cultura, que nada mais é que uma representação da realidade. Para melhor explicar, a pesquisadora utilizou o exemplo de uma visita da modelo brasileira Gisele Bündchen com o ator hollywoodiano Leonardo Di Caprio, em 2004, a uma comunidade no Parque Indígena do Xingu, no Pará.
“As pessoas que moravam lá (na comunidade do Xingu) diziam que eles (Bündchen e Di Caprio) eram muito feios; ela muito magra e ele muito branco”, lembrou Soligo. “O que é isso?”, seguiu, “isso nada mais é que uma clara referência de grupo cultural. Afinal, os dois famosos, para nós que vivemos nas cidades, somos marcados pelos modelos dominantes de beleza e estamos interconectados, são exemplos de beleza e para aquela comunidade que se relaciona quase que exclusivamente entre si, eles nada têm de bonito, com padrões totalmente opostos ao que aquela comunidade compartilha em sua cultura local”, explicou.
A professora da Unicamp seguiu discursando contra o Estatuto da Família, projeto da Câmara Federal que define regras para determinar quais grupos podem ser considerados uma família perante a Lei. A proposta, que exclui, por exemplo, a possibilidade de casais homoafetivos constituírem família foi aprovada em 2015 pela Casa.
Segundo Soligo, o projeto exclui as muitas possibilidades de ser família e compreende o termo apenas como o modelo hegemônico forjado na Revolução Burguesa, no século XIX, que, na visão da professora, é um modelo excludente e higienista. “Família sempre foi algo que mudou de configuração ao longo dos tempos. Na Idade Média, por exemplo, era totalmente diferente do que temos hoje como modelo tradicional de família, que deve ser entendida como um lugar de afeto, segurança e acolhimento que implica necessariamente experiências plurais – se constituem e se organizam de diversas maneiras. O que caracteriza uma família, então, é a diversidade e sempre foi muito além dos laços sanguíneos”.
“Mas o fato”, continua explicando Soligo, “é que várias configurações de família sempre existiram e coexistiram e você adotar uma única configuração como modelo para toda a sociedade é excludente e higienista, por que você passa a elaborar políticas públicas apenas para determinado grupo, colocando outros à margem e deixando-os como alvo de preconceitos.”, explica.
Gênero e sexualidade
Sobre o conceito de gênero, a professora tratou de dissocia-lo do sexo: “sexo é biologia, fisiologia, é o seu órgão genital; gênero é a construção social, é identidade, como a pessoa se sente e o que ela é no mundo, e isso vai muito além do sexo biológico. É também extremamente errado falar em opção sexual. Ninguém opta por ser homossexual e sofrer as opressões que a sociedade impõe, as pessoas o são, simplesmente. É como ser destro ou canhoto”, exemplifica.
A pesquisadora aproveita o exemplo para expor erros históricos de nossa sociedade. “Na Idade Média, as pessoas, por serem canhotas, algo tão pueril em nosso tempo, poderiam ir parar na fogueira, pois a mão esquerda era considerada a mão do demônio. Até a década de 60, algumas escolas brasileiras amarravam a mão esquerda de alunos canhotos a fim de que eles aprendessem a escrever com a mão direita, exemplo clássico de opressão e coerção. Hoje vemos que isso era um equívoco sem tamanho e eu espero que as pessoas enxerguem esse erro também com os gêneros.”
A professora criticou duramente o projeto de lei conhecido como “Escola Sem Partido”, que avança na Câmara Federal. Entre outras coisas, a proposta proíbe o uso do termo gênero e da expressão orientação sexual em sala de aula. Soligo explicou que o termo “ideologia de gênero”, abominado pelos deputados que se orientam e defendem posturas religiosas fundamentalistas, academicamente falando, se trata de um equívoco. “Ideologia, segundo diversos autores, define formas de mascaramento da realidade, a tentativa de apresentar uma realidade definindo-a como única, quando a realidade é diversa. Falar de diversidade e de possíveis identidades é, na verdade, contra-ideológico.”
Para a professora, o projeto “Escola Sem Partido” almeja uma educação que não promova a reflexão crítica e a criatividade. “Em resumo, é um projeto de escola sem pensamento, porque escola sem reflexão é sem pensamento. É um projeto de uma sociedade sem diversidade, porque se nós não discutirmos a diversidade das mais variadas formas, essa diversidade vai ficar oculta, reprimida, silenciada”, avalia. “Vai proibir gênero literário também?”, provoca a docente da Unicamp.
“Nós, mulheres e homens da ciência, precisamos colocar os nossos conhecimentos, nossos saberes, a nossa produção acadêmica contra todos esses equívocos. Porque não são equívocos de ignorância, são equívocos de má intensão. Nós precisamos ter um compromisso com a ciência para a humanidade, com a comunidade. A ciência não é do cientista, a ciência não é da universidade, nem dos governos. A ciência é da humanidade e para a humanidade.”
Soligo apontou que nossa sociedade é marcada pela desigualdade de gênero: salários, posições de decisão no mundo do trabalho e na política. “E qual o papel da ciência nisso?”, questiona a pesquisadora. “É realizar estudos que evidenciem essas disparidades que nos mantêm no atraso. Aliás, os estudos têm sido feitos. Agora precisamos de mais, de divulgar amplamente. Não adianta publicar um artigo em uma revista acadêmica que ninguém vai ler. Nós precisamos saber dialogar com a sociedade, saber falar com as pessoas e ocupar outros espaços que nos coloquem para fora dos muros acadêmicos.”
Atividade perigosa
“Claro que fazer esse tipo de ciência hoje é perigoso”, alerta. “Nesses momentos, a ciência precisa saber qual o seu papel. E, às vezes, o papel da ciência é, sim, perigoso. Se olharmos na Idade Média, Giordano Bruno foi morto pela Inquisição, Galileu Galilei quase foi à fogueira e teve de negar, diante da inquisição, aquilo que sabia. A ciência, quando existe para emancipar, é uma atividade perigosa mesmo.”
Na visão da docente da Unicamp, todos esses conceitos se entrelaçam e esses problemas são frutos da sociedade patriarcal em que vivemos, sedimentada pelo racismo perpetrado por anos e anos de escravidão e marcante desigualdade social, de gênero e raça articulados à divisão de classes.
Para a professora, outros caminhos devem ser trazidos ao debate e é dever da ciência evidenciá-los: “Nosso papel como cientistas é produzir e trabalhar com outras formas de saber, e mostrar outras interpretações de mundo possíveis através do rigor científico”, defendeu.
Marcelo Rodrigues, estagiário da SBPC, para o Jornal da Ciência