O conhecimento científico é cada vez mais relevante para a formulação, execução e monitoramento de políticas públicas mais apropriadas, consistentes e sustentáveis, mas na prática as evidências científicas nem sempre são usadas na tomada de decisões políticas.
No Brasil, as informações científicas foram “relevantes e claramente comunicadas” pela comunidade científica durante o processo de construção de duas políticas ambientais: o Código Florestal e os agrotóxicos, mas não tiveram influência nas decisões políticas, segundo artigo publicado na revista Science and Public Policy.
O primeiro caso analisado por esse estudo foi a reformulação das leis de preservação florestal, o ‘Código Florestal Brasileiro’ em 2012, que impactou as áreas de preservação florestal e a restauração obrigatória de áreas desmatadas ilegalmente em propriedades privadas.
As modificações da legislação incluíram mudanças nos requisitos mínimos para a preservação da área ribeirinha em propriedades particulares, que foram reduzidas da faixa inicial de 30 a 500 metros (dependendo do tamanho do rio) para 8 a 100 metros (dependendo do tamanho da propriedade). Da mesma forma, todos os desmatamentos ilegais ocorridos antes de julho de 2008 e cujos proprietários usavam as áreas para outras atividades estavam isentos de exigências de restauração.
O segundo caso abordou mudanças nas políticas de pesticidas. O Brasil é líder mundial no consumo de pesticidas e o setor é regulamentado no país desde 1989. Desde o início dos anos 2000, no entanto, os controles previamente estabelecidos se enfraqueceram e com a nova lei sobre agrotóxicos (um projeto de Lei de 2002) que ainda precisa da aprovação do Senado, mudanças são promovidas para estimular o uso de pesticidas.
Essas mudanças incluem isenções fiscais para pesticidas, expansão dos tipos de pesticidas permitidos e a introdução de procedimentos de autorização menos exigentes para o registro de novos produtos.
Para a autora do artigo, Flavia Donadelli, cientista política brasileira e professora de política e gestão pública na Universidade Victoria de Wellington, Nova Zelândia, o Brasil caracteriza-se por ser um país com pouca abertura e participação popular na tomada de decisões e com uma necessidade reduzida de consenso para aprovar leis, o que propicia “uma tendência a ignorar a ciência para a tomada de decisões”.
“Mesmo que exista oposição popular e pelos congressistas à aprovação de alguma lei, o que conta nas decisões legislativas é a maioria dos votos. As coalizões dominantes do Congresso (referência a grupos religiosos, ruralistas e pró-armas representadas no atual Congresso) têm muito poder e não precisam se comprometer com outras coalizões para aprovar seus projetos”, afirmou ao SciDev.Net.
“Os dois casos analisados aqui demonstram que a evidência científica pode ser ignorada quando contradiz os interesses dominantes em sistemas políticos majoritários e relativamente fechados como no Brasil”, conclui a autora.
Em sua opinião, isso reforça a tese de que os países com baixos níveis de abertura política e pluralismo são os que geralmente colocam mais barreiras na formulação de políticas baseadas em evidências científicas e na busca de requisitos de consenso.
Ildeu Moreira, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), é menos pessimista que Donadelli. Moreira indica que o estudo publicado na revista Science and Public Policy é importante, pois fornece elementos relevantes para analisar o processo de formulação de políticas públicas no Brasil, mas discorda da conclusão “tão peremptória”.
“A SBPC atuou intensamente em um dos casos analisados [no estudo], o do Código Florestal, e certamente várias propostas importantes defendidas pelos pesquisadores não foram levadas em consideração. Mas outros foram, ou conseguimos reverter propostas ainda mais prejudiciais ”, diz ele.
Ele concorda com Donadelli que, em geral, no Brasil, dados e conhecimentos científicos em políticas e gestão pública não são levados em consideração. “Mas o fato dessa tendência ser forte não significa que ocorra em todos os casos e que as evidências científicas sejam sempre ignoradas, tanto nos níveis federal e estadual quanto municipal”, enfatiza.
Moreira lembra que o processo de construção de uma legislação é complexo. “A atuação da comunidade científica no Congresso é uma luta política em que, em geral, predominam os interesses dos setores dominantes e mais poderosos do país, o que acontece, de fato, em todas as áreas da vida social e econômica. Mas, em várias ocasiões foi possível aprovar uma legislação mais apropriada coletivamente ou evitar novos contratempos”, afirma Moreira ao SciDev.Net.
Um exemplo bem-sucedido de que as organizações científicas conseguiram ser ouvidas aconteceu no ano passado, quando pediram ao Congresso Nacional que o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) – uma das mais importantes agências de apoio à pesquisa científica – não fosse desmontado.
Outro bom exemplo da interação entre a comunidade científica e o parlamento foi sua participação no debate público para a aprovação do chamado Marco Legal da CT&I, entre 2008 e 2009 (sancionado em 2016).
Como resultado, em 2015, foi aprovada a alteração do artigo 218 da Constituição brasileira, que estabelece que “o Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa, a capacitação científica e tecnológica e a inovação”, e cuja subseção 1 declara: “A pesquisa científica básica e tecnológica receberá tratamento prioritário do Estado, tendo em vista o bem público e o progresso da ciência, tecnologia e inovação”.
Precisamente, a SBPC e a comunidade científica realizam uma série de ações para aumentar a participação da comunidade científica brasileira na tomada de decisões.
Por exemplo, no ano passado, foi lançada a Iniciativa para Ciência e Tecnologia no Parlamento (ICTP.br), com a participação de mais de 60 organizações científicas, para engajar parlamentares na recuperação do orçamento para CT&I e na valorização das universidades públicas.
Segundo Moreira, “é importante continuar defendendo o pensamento crítico, a racionalidade e a ciência da qualidade, em todas as suas áreas, como elementos importantes para o desenvolvimento sustentável do país e para superar a crise em que estamos”.
E acrescenta: devemos continuar atuando de maneira integrada e articulada com outros setores sociais, como empreendedores progressistas, trabalhadores e também com movimentos sociais.