Movimentos antivacina existem desde que elas foram inventadas no século XVIII. E se hoje os imunizantes estão ultrapassando as fronteiras da tecnologia, o discurso antivacina segue à sombra destes avanços, utilizando multimídias e as redes sociais para espalhar desinformação, medo e rejeição aos tratamentos.
Esses movimentos se apoiam em teorias conspiratórias e informações falsas, cuja influência sobre a disposição das pessoas já foi comprovada em vários estudos. O mais recente deles, conduzido por pesquisadores do Imperial College London, da London School of Hygiene and Tropical Medicine, no Reino Unido, e da Universidade Washington, nos Estados Unidos, foi publicado em março na Nature Human Behaviour.
Os pesquisadores selecionaram 8.001 participantes, entre britânicos e norte-americanos, e os entrevistaram para saber o quanto estavam dispostos a receber ou não a vacina contra a covid-19. Após uma primeira rodada de perguntas, os participantes foram divididos em dois grupos. O primeiro, composto por 6.001 pessoas, foi submetido a uma bateria de informações falsas sobre as vacinas. O segundo, com 2.000 indivíduos, teve contato com fatos e informações verdadeiras sobre os imunizantes.
Na sequência, as mesmas perguntas sobre a disposição para receber as vacinas contra a covid-19 foram repetidas. O resultado foi que o número de participantes que “definitivamente” tomaria a vacina caiu 6,2% no Reino Unido e 6,4% nos Estados Unidos no grupo que recebeu informações falsas, indicando a relação direta das fake news sobre a disposição para a vacinação.
As mídias sociais potencializaram o alcance das teorias da conspiração. A pesquisadora Dayane Machado, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) analsou a disseminação de desinformação sobre imunizantes em uma das mais populares redes sociais, o Youtube. Em um trabalho realizado com os pesquisadores Alexandre Fioravante de Siqueira, da Universidade da Califórnia, e Leda Gitahy, da Unicamp, Machado utilizou ferramentas de coletas de dados no Youtube para localizar como se dá esse processo.
No período entre fevereiro e março de 2020 – pouco antes, portanto, da pandemia de covid-19 chegar ao Brasil – os pesquisadores localizaram 158 vídeos sobre vacinas com mais de 10 mil visualizações, interações e conexões com algum outro vídeo da rede. Destes, um total de 52 continham desinformação. Mais da metade (53%) afirmava que as vacinas contêm ingredientes perigosos e muitos acumulavam desinformação, como o apelo à defesa da liberdade de escolha, a promoção de serviços de saúde alternativa e acusações falsas relacionando o surgimento de doenças aos imunizantes.
Um artigo sobre o estudo, intitulado “Natural Stings: Selling Distrust About Vaccines on Brazilian YouTube”, foi publicado em outubro na revista Frontiers in Communication.
“Queríamos saber quem são essas pessoas que espalham desinformação, como vivem, entender as táticas utilizadas”, explicou Machado.
O trabalho mostrou que quem está por trás da desinformação não são apenas pessoas desinteressadas exercendo seu direito de dúvidas sobre algum procedimento médico ou científico.
Trata-se de um movimento organizado, que se beneficia do cenário de confusão e ansiedade alimentado pelos boatos. São pessoas que colocam em dúvida não apenas a segurança e a eficácia das vacinas, mas também de outras rotinas de saúde pública comprovadamente benéficas como, por exemplo, o flúor na água.
“Descobrimos que são sempre as mesmas pessoas, o clássico é dizer que as vacinas não são seguras”, relatou a pesquisadora. São o que a historiadora da ciência Naomi Oreskes chama de “Mercadores da Dúvida”, empreendedores dedicados a ganhar dinheiro colocando em dúvida a ciência. Seus vídeos e posts nas redes sociais têm milhões de seguidores e com esse “mercado” de mentes e corações dos incautos, eles vendem livros, palestras, cursos, organizam eventos, etc.. “Eles vivem de falar mal das vacinas, de atacar programas de saúde, de difamar cientistas sérios. É uma profissão, eles são influencers”, disse Machado.
O sociólogo Fabrício Neves, professor da Universidade de Brasília (UnB), que pesquisa sociologia e história da ciência, destaca os interesses econômicos por trás dos movimentos negacionistas, não só da vacina, mas também das mudanças climáticas e da ciência como um todo. “O negacionismo sempre esteve aí, talvez ele apareça mais em momentos específicos, como é o caso da vacinação em massa, ou quando algum consenso científico se consolida e se coloca em oposição a modelos de desenvolvimento, como é o caso das mudanças climáticas”, afirmou.
Existe uma tendência a acreditar que o negacionismo tem origem nas religiões, mas não é assim, diz o sociólogo. Mesmo quando se origina na religião, a motivação pode ser econômica, como já foi constatado em igrejas católicas e evangélicas, onde padres e pastores oferecem coisas como “feijões milagrosos” para o combate a doenças. “Tem menos a ver com aspectos religiosos e mais com o mercado da fé, como temos visto com pastores contrários ao fechamento dos templos, o que tem mais relação com a reprodução material da própria igreja que com o espiritual”, diz Neves.
O que mais surpreende, diz o sociólogo, é que em todos esses momentos de reações aos consensos relativos da ciência, a crítica negacionista se utiliza da democracia. “São as pessoas reivindicando falar, dar sua opinião. Usa-se o regime democrático para atacar a ciência.”
Alyne Costa, professora de filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) e pós-doutoranda do Fórum de Ciência e Cultura da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), se dedica a entender o motivo da adesão das pessoas ao negacionismo cientifico. Estudiosa das implicações das mudanças climáticas e do chamado colapso ecológico pela lente da Filosofia, Costa tem uma visão um pouco diferente. Ela afirma que creditar o fenômeno à ignorância da população e à campanha de desinformação financiada por certos grupos políticos e econômicas é perder de vista a complexidade do fenômeno.
Por um lado, diz, é preciso, sim, rastrear a rede de profissionais da negação, aqueles que lucram ao disseminar a tese de que o aquecimento global não existe, que a cloroquina vai resolver a pandemia. Mas para além disso, é preciso compreender o contexto em que o negacionismo pôde prosperar. “As campanhas negacionistas só são bem-sucedidas porque são disseminadas em um meio no qual as pessoas têm razões para desconfiar da neutralidade da ciência”, afirma.
Segundo ela, sobretudo desde o pós- -guerra, quando a ciência passou a ser fortemente financiada por empresas e governos, as pessoas passaram a desconfiar da alegada objetividade e neutralidade da prática científica. O maior emaranhamento no tecido social trouxe ganhos de escala para a ciência, mas ao mesmo tempo abriu o flanco para os teóricos da conspiração e mercadores da dúvida.
“Todos sabemos que, como toda instituição, a ciência é atravessada por política, mas isso não quer dizer que a ciência não seja confiável. A tarefa dos cientistas hoje é mostrar para a população que vale a pena confiar na ciência, e isso não será feito apelando para a neutralidade da ciência e acusando as pessoas de ignorantes ou obscurantistas. E se o que costumamos chamar de ‘sentimento anticiência’ for, na verdade, o desejo por uma ciência mais democrática, mais participativa, que engaje mais as pessoas na produção, circulação e uso do conhecimento? ”, pergunta Costa.
O GURU DOS ANTIVACINA
O Brasil nem é o pior lugar de negacionismo. Na verdade, até a covid-19 chegar havia uma forte “cultura” de vacinação baseado na bem-sucedida história do Programa Nacional de Imunizações (PNI) e do Sistema Único de Saúde (SUS). Quem tem mais de 30 anos, em geral, vai lembrar que tomou todas as vacinas gratuitamente nos postos de saúde pública, sem questionamentos sobre a marca ou a procedência do imunizante. Mas nos EUA e outros países onde não existe um sistema de saúde público, as pessoas não estão acostumadas a tomar todo tipo de vacina e como não recebem nada gratuito do governo, desconfiam quando a possibilidade aparece, explica Dayane Machado.
Esse é o ambiente onde os negacionistas mais prosperam e foi nos EUA que a personalidade mais famosa do movimento, o ex-médico britânico Andrew Wakefield, encontrou abrigo. Se o negacionismo científico tem uma cara, é a de Wakefield, que nos anos 1990 publicou um artigo na mais respeitada revista científica do mundo, a Lancet, defendendo a tese de que a vacina tríplice viral estaria por trás do surgimento de casos de autismo.
Se valendo de canal tão respeitável para divulgação de sua tese, Wakefield provocou um debate na comunidade médica do Reino Unido que durou até ser desmascarado. Seu estudo, além de falso, continha um conflito de interesses, pois, como foi comprovado posteriormente, ele era dono de patentes de medicamentos. O artigo foi retirado da Lancet, que pediu desculpas pelo erro. Wakefield perdeu a licença para praticar medicina e acabou migrando para os EUA. Mas já era tarde, e hoje ele ainda tem milhares de seguidores.
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Janes Rocha