O verbo “representar” possui diversos significados. Em várias línguas, ele descreve quem age em nome de alguém que não está presente, como um advogado ou despachante que representa seu cliente. É o procurador. Mas aplica-se também à política, onde o representante eleito atua em nome do cidadão, seja no parlamento ou no poder executivo. Em português, temos ainda um terceiro e forte sentido — o teatral, quando um ator interpreta um papel numa peça ou filme. Neste último caso, outras línguas usam verbos diferentes — no inglês, “to play”, no francês, “jouer” e no alemão, “spielen” — termos que remetem tanto a brincar quanto a atuar.
O importante é que a representação política tem elementos de teatralidade, uma característica visível desde o Antigo Regime, especialmente na França dos séculos XVII e XVIII. O apogeu desse regime ocorreu entre Luís XIV e a Revolução Francesa. O absolutismo, forma política em que o rei tem poder absoluto se beneficiando do impasse entre uma aristocracia em declínio e uma burguesia emergente, requer uma encenação da política.
Luís XIV soube transformar a vida na corte num grande show. Não foi o primeiro a usar a política como teatro — exemplos disso vêm desde a Antiguidade. Lembrem, os cinéfilos, a maravilhosa aparição de Cleópatra, representada por Elizabeth Taylor, no filme de 1963 sobre a rainha egípcia. O Rei-Sol — Luís XIV — cultivava uma etiqueta minuciosa, na qual cada gesto era calculado para expressar seu poder absoluto. O auge na vida de corte era quando o rei, sozinho, dançava. Seu sucessor, Luís XV, fazia de seu desjejum dominical um espetáculo para os burgueses, que vinham de Paris a Versalhes admirar sua destreza ao decapitar, de um só golpe, os ovos quentes.
Mas essa ideia de exibição não ficou só no passado. Na sociedade atual, ela se evidencia na busca por visibilidade e reconhecimento, especialmente nas redes sociais. Celebridades e subcelebridades — ou influenciadores — vivem da exposição pública — não por acaso, o Instagram cresceu tanto, em detrimento do Facebook, que é mais de textos. Tanto a admiração quanto a crítica aos exibidos não trazem nada de novo: apenas repetem padrões milenares. Aliás, a ideia de vaidade, que tem origem na palavra “vã” (algo vazio, sem conteúdo), é central nesse contexto. Curiosamente, desde que a psicologia se constitui modernamente como ciência, ela dá pouca atenção a esse tema, recorrente desde pelo menos o Eclesiastes, que celebrizou a expressão “vanitas vanitatum omnia vanitas” (vaidade das vaidades, tudo é vaidade). Mas a teatralidade não se limita às redes sociais: ela permeia a política contemporânea.
PAIXÕES NEGATIVAS
Tal como na corte de Luís XIV, a política moderna é, em boa medida, uma encenação. No passado, o rei se apresentava presencialmente para seus súditos. Hoje, com a televisão e a internet, a exibição política atinge um público muito maior. A representação política moderna frequentemente se converte em um espetáculo no qual o político representa, para seus eleitores, papéis que os fascinem. Pablo Marçal foi o exemplo mais bufo, e eficaz, desse personagem. As paixões negativas, como o ódio e o medo, têm-se mostrado mais poderosas do que as positivas, como o amor e a amizade, numa sociedade do virtual. Amizades se rompem devido a uma postagem, o que seria mais difícil de acontecer num encontro presencial, cara a cara.
Para impactar o público, é essencial atingir suas emoções. Embora a escolha de representantes devesse ser um processo racional, a emoção frequentemente prevalece. A política jamais foi puramente racional. A crença de que as escolhas dos cidadãos possam ser inteiramente racionais é uma ilusão tipicamente moderna, curiosamente partilhada por cientistas ou analistas supostamente racionais, que têm dificuldade em identificar ou reconhecer esse papel da desrazão. Estes anos e meses, vi muitos proclamarem, como se novidade ou descoberta fosse, que os eleitores se movem pela emoção mais do que pela razão. Não é nada de novo isso, daí por que faço questão de apontar as raízes remotas da teatralização na política.
Ah, um “disclaimer”: reconhecer a dimensão emocional da política não significa aplaudir suas manifestações, mas apenas compreender como funcionam e como se pode lidar com elas.
EMOÇÃO E RACIONALIDADE
A classe ruralista brasileira oferece um exemplo claro dessa dinâmica. Embora ela tenha se beneficiado do aumento do consumo de carne nos governos Lula, e embora as ameaças climáticas ponham em risco seus negócios, muitos membros seus se mantêm negacionistas e na extrema-direita. Em vez de apoiarem políticas que preservem tanto o meio ambiente quanto o poder aquisitivo dos mais pobres, eles seguem pautas ideológicas baseadas em valores não racionais.
Esse caso, entre muitos, ilustra as limitações da razão nas decisões políticas.
Mas o que devemos enfatizar é que, se os seres humanos se movem mais pelos afetos do que pelo intelecto, na política o uso do afeto tem uma vasta tradição histórica e não acontece por acaso. Falou-se muito no Gabinete do Ódio, no governo passado. Foi um caso extremo, mas que deixou sequelas. Precisamos entender e apontar como se dá a manipulação das imagens, produzindo um manejo dos afetos e, por aí, das decisões numa democracia.
Finalmente, é importante, numa sociedade marcada pelo afeto autoritário – que líderes de direita como Maluf e Antônio Carlos Magalhães tão bem utilizaram – contribuirmos para dar, aos valores do respeito ao outro e do apreço pelo bem comum, uma base afetiva, o que depende, antes de mais nada, de fortalecermos, na educação desde a tenra infância, a cooperação, mais que a competição. Em suma, contra o afeto autoritário a melhor saída não é o apelo ingênuo à razão, mas a construção de um afeto democrático.
Referências:
RENATO JANINE RIBEIRO, 1) A etiqueta no Antigo Regime; 2) O afeto autoritário.
NORBERT ELIAS, A sociedade de corte.
PETER BURKE. A fabricação de Luís XIV.
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Renato Janine Ribeiro, presidente da SBPC