Recentemente, notas em redes sociais e artigos de colegas do meio acadêmico tem apresentado posicionamentos fortemente negativos à chamada Lei da Biodiversidade (Lei 13.123/2015). Alguns textos levantam também com certa exaltação dúvidas sobre a participação de outros colegas em atividades de esclarecimento sobre a referida Lei e sobre a representação e o papel da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) junto ao Conselho da Gestão do Patrimônio Genético (CGEN).
Compreende-se que em face às restrições orçamentárias severas que afetam a ciência brasileira e ao passado conflituoso que envolveu o marco legal sobre o acesso ao patrimônio genético e conhecimento tradicional associado no Brasil, a implementação do novo marco legal gere ansiedade e desconfiança. No entanto, muitas preocupações e afirmações levantadas em textos recentes não necessariamente encontram respaldo na situação presente e estão ancoradas, em grande parte, em um conhecimento ainda incipiente da Lei 13.123 e suas repercussões para a academia.
Um artigo de opinião recente teve como título “A quem interessa a Lei 13.123/2015?” Cabe aqui então começar respondendo a essa questão.
A Lei 13.123/2015 interessa ao Brasil não só como país megadiverso e portanto detentor e responsável por extraordinário patrimônio genético mas também como país que é usuário da biodiversidade de outros países. Interessa também a outros 104 países mais a União Europeia que já ratificaram o Protocolo de Nagoya. O Protocolo de Nagoya é o acordo internacional que regulamenta o chamado “Acesso a recursos genéticos e a Repartição justa e equitativa dos Benefícios advindos de sua utilização” (Access and Benefit Sharing – ABS, na sigla em inglês). Ou seja, estabelece as diretrizes para a regulação da pesquisa e relações entre o país provedor de recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados e aquele que vai utilizá-los, abrangendo pontos como repartição de benefícios, pagamento de royalties, estabelecimento de joint ventures, direito a transferência de tecnologias e capacitação. O acordo foi criado pela Conferência das Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), em sua décima reunião (COP 10), que ocorreu em 29 de outubro de 2010, em Nagoya, no Japão, e entrou em vigor em 12 de outubro de 2014.
Ou seja, há um marco global para as questões que foram abordadas na Lei 13.123 que é fruto de debates no âmbito da Convenção sobre Diversidade Biológica que nos é tão cara em vários aspectos. Assinada por 150 líderes governamentais na Cúpula da Terra no Rio de 1992, a Convenção sobre Diversidade Biológica se dedica a promover o desenvolvimento sustentável com a conservação da biodiversidade e hoje já conta com 195 países signatários, além da União Europeia.
Cabe lembrar que as regras de ABS e a CDB em última instância são um desdobramento natural dos princípios gerais estabelecidos pelas Nações Unidas, destacando-se o reconhecimento pela Carta das Nações Unidas de 1945 dos princípios da soberania das nações e da não ingerência em assuntos internos de cada país, e ainda o reconhecimento nos princípios da Conferência da ONU sobre o Meio Ambiente Humano, realizada em Estocolmo em 1972, da soberania das nações sobre os seus recursos naturais (incluídos aí os recursos biológicos e os recursos genéticos). Trata-se de um movimento que reconhece o direito dos países em desenvolvimento, saídos da condição de colônias de impérios, que buscam uma relação internacional mais simétrica e justa.
Quando a CDB foi aberta para negociações no início de 1990, os países em desenvolvimento, liderados por Índia, Malásia, Filipinas, Indonésia, Etiópia, Quênia, África do Sul, México, Colômbia, Peru e Brasil, manifestaram a rejeição de uma convenção dedicada apenas à conservação da biodiversidade, como proposta originalmente pelos EUA, e defenderam seu interesse em promover o uso sustentável dos componentes da biodiversidade e exigiram a inserção do objetivo e princípio da repartição de benefícios resultantes do acesso e uso dos recursos genéticos.
Outro aspecto central da CDB é o respeito e a proteção dos direitos associados aos conhecimentos tradicionais de povos indígenas e comunidades locais (comunidades tradicionais como tratado na legislação brasileira), inclusive o direito ao consentimento prévio informado e o direito à repartição justa e equitativa dos benefícios resultantes da sua utilização. Portanto, a CDB e o Protocolo de Nagoya regulamentam as regras globais de respeito aos direitos das nações e dos povos indígenas e comunidades locais.
É importante destacar a dimensão desse debate no cenário internacional muitas vezes desconhecida no âmbito da academia brasileira (não é incomum ouvir que isso é coisa só do Brasil…) mas plenamente reconhecida em setores importantes de nossa economia. Por exemplo, no final de 2017 a Confederação Nacional da Indústria (CNI) lançou um estudo sobre o tema (Acesso e repartição de benefícios no cenário mundial: a lei brasileira em comparação com as normas internacionais, disponível em http://www.portaldaindustria.com.br/). Trata-se de um guia que traz o passo a passo para empresas implementarem a Lei 13.123/2015. O estudo detalha ainda os principais pontos de legislações internacionais de mais de cem países (incluindo vários países megadiversos como o Brasil). De acordo com a CNI, o intuito da publicação foi apoiar empresas na tomada de decisão de negócios baseados em análise do cenário internacional e de tendências sobre pesquisa e desenvolvimento com base em recursos genéticos.
A necessidade de reformulação do marco legal vigente entre 2001 e 2015 por meio da Medida Provisória No 2.186-16 de 2001 era fundamental em função de suas inegáveis deficiências. A SBPC trabalhou continuamente no tema e participou dos debates no Congresso Nacional representando a ciência brasileira. A Lei 13.123/2015 foi o resultado possível de uma negociação que envolveu vários setores do governo, da sociedade civil (empresas, detentores de conhecimento tradicional associado e academia) e do congresso e assim a expressão de todas as forças políticas, sociais e econômicas que tinham interesse no tema.
Portanto, na avaliação do novo marco legal é importante ter em mente que ele não se refere somente às atividades acadêmicas, e que propostas de alteração exigem novo entendimento entre todos os setores acima mencionados. Lembremos que a atual lei é resultado de 20 anos de negociações desde que o projeto de lei foi inicialmente protocolado no Congresso. Propor a mera revogação da Lei é uma bandeira pouco realista e simplista para um tema complexo com várias partes interessadas. Tentar levar a posição da Ciência em um congresso que tem considerado muito pouco esse setor da sociedade (vide o exemplo do Código Florestal…) já não foi simples em 2015 e as perspectivas são praticamente inexistentes no Brasil de 2018.
No âmbito da Lei 13.123, houve uma reformulação crucial da composição do CGEN. A academia não tinha assento do CGEN (éramos somente convidados) e hoje temos três assentos (SBPC, ABC e Associação Brasileira de Antropologia) e uma Câmara Setorial (com a participação de representantes de várias sociedades científicas) exclusiva para debater e propor melhorias para o setor acadêmico. Quando necessário, grupos de trabalho são também formados para discutir e definir algumas questões precisas. A SBPC terá ainda assento no Comitê Gestor do Fundo Nacional de Repartição de Benefícios dando oportunidade para a expressão e defesa dos interesses da ciência e suas instituições, lembrando que os recursos do fundo deverão, inclusive, promover pesquisa e a conservação das coleções ex situ.
Além de sua enorme biodiversidade, o Brasil também alberga enorme diversidade social associada a um conhecimento ancestral sobre a biodiversidade moldado ao longo de inúmeras gerações. Tal conhecimento merece o reconhecimento da sociedade brasileira e seus detentores o respeito e as condições para manutenção de seus modos de vida. Havia uma dívida referente à participação dos povos indígenas e comunidades tradicionais que hoje também estão representados no CGEN. A Lei 13.123 avançou no reconhecimento do conhecimento tradicional sobre a biodiversidade e os direitos associados a esse sistema de conhecimento.
A Lei 13.123 retirou a obrigatoriedade de solicitação de autorização prévia de pesquisa como havia no marco anterior e dessa forma, eliminou os excessivamente morosos trâmites burocráticos (até 8 anos!) associados à obtenção das autorizações. Hoje a exigência limita-se a um cadastro autodeclaratório no Sistema Nacional de Gestão do Patrimônio Genético e do Conhecimento Tradicional Associado (SisGen). O importante, agora, seria que a comunidade científica massivamente fizesse o cadastro para tentar encontrar todos os seus potenciais problemas e encaminhar as soluções através de suas instâncias representativas, ou individualmente. Aqui cabe também uma demanda para que as administrações das instituições de ensino e pesquisa se informem sobre o processo e apoiem seus pesquisadores.
Hoje, com aproximadamente cinco meses de funcionamento do SisGen, a maioria dos cadastros é de atividades de pesquisas com pesquisadores e instituições de todo o Brasil (com exceção de Roraima e Acre). Até o momento, as instituições com maior número de registros são Embrapa, UFMG, Fiocruz, Unicamp e UFRRJ. Há também registros provenientes de 15 países diferentes.
Frequentemente, questiona-se na comunidade acadêmica sobre o credenciamento que anteriormente permitia ao CNPq receber as solicitações de autorização de pesquisa. É natural que a academia considere o CNPq seu interlocutor preferencial. No entanto, é justamente porque agora trata-se de um cadastro e não mais um sistema de autorização de pesquisa que o sistema do CNPq foi desativado. Há entendimento entre o CNPq e o MMA para que todas as informações que entraram via CNPq referentes ao antigo marco legal irão migrar para o SisGen. O mesmo se aplica aos processos que entraram via Ibama e via Iphan. Nesses casos, os pesquisadores irão receber o comunicado de que os dados foram migrados para o “pré-cadastro”, e deverão apenas conferir, completar o realizado no período e enviar. As representações da academia no âmbito do CGEN também solicitaram que haja integração entre o SisGen e o SisBio do ICMBio, o que facilitaria muito para os pesquisadores que investigam a fauna brasileira. Se a solicitação for atendida, as informações que já estão no SisBio poderiam migrar também para o SisGen. Novamente, há um esforço das equipes técnicas para que a integração de sistemas facilite o cadastro de pesquisas, em particular para a ciência básica.
Resoluções encaminhadas pela Câmara Setorial da Academia, após o recebimento de demandas e sugestões de solução por parte da comunidade científica , e recentemente aprovadas pelo plenário do CGEN facilitarão o preenchimento do cadastro no SisGen para ciência básica, e sobretudo a remessa de amostras. Por exemplo, uma das resolução permitirá que o pesquisador que identifica milhares de organismos possa registrar no SisGen os níveis taxonômicos mais altos e não as espécies, reduzindo milhares de registros para talvez dezenas de registros ou até menos. No caso de pesquisas envolvendo metagenômica, outra resolução permitirá que seja indicado apenas o nível taxonômico de domínio. Quanto à localização geográfica, quando houver mais de 100 registros, a indicação será apenas de município e não de coordenadas geográficas do local onde cada grupo taxonômico foi coletado. Quanto à remessa, não será mais necessário ter um termo de transferência de material (TTM) assinado para cada remessa quando o destinatário no exterior for a mesma instituição (o novo modelo de TTM foi criado a partir de sugestões da academia, em especial de representantes das coleções biológicas). Outra resolução também facilitará o registro de grandes quantidades de amostras no caso de regularização em relação a antiga legislação (Medida Provisória 2.186, de 2001), neste caso alcançando todos os tipos de pesquisa.
Vale também ressaltar que atualmente está sendo discutido no âmbito da CDB e do Protocolo de Nagoya a questão do uso das informações de sequências digitais, um aspecto já abordado na Lei 13.123/2015.
Todos os debates sobre o tema são importantes para esclarecer e fortalecer a participação da academia. No entanto, a avaliação do novo marco legal pela academia se beneficiará dos mesmos instrumentos que usamos no nosso dia-a-dia como pesquisadores e formadores de recursos humanos. Seja engajada em ciência ou na avaliação de políticas, a capacidade de fazer boas perguntas e definir claramente os problemas é essencial para todos. Colegialidade, respeito, cooperação e trabalho em equipe que são termos que frequentemente usamos para descrever o ambiente que permite superar barreiras e trabalhar eficientemente na obtenção de resultados positivos devem ser também a base do nosso debate. Temos o dever de contribuir para a construção de soluções que atendam não apenas aos interesses da academia mas também dos outros setores da sociedade, inclusive dos detentores de direitos sobre recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados.
Mercedes Bustamante – Departamento de Ecologia da Universidade Brasília, representante da SBPC no CGEN
Laila Salmen Espindola – Departamento de Farmácia da Universidade Brasília, representante da SBPC no CGEN
Manuela da Silva – Fiocruz, Coordenadora da Câmara Setorial da Academia no CGEN
Fábio Vaz Ribeiro de Almeida – Instituto Sociedade, População e Natureza, representante da Associação Brasileira de Antropologia no CGEN
Bráulio Dias, Departamento de Ecologia da Universidade Brasília, ex- Secretário-Executivo da Convenção sobre a Diversidade Biológica das Nações Unidas.
PS: Registramos a participação presencial ou remota via RNP, de mais de 400 pessoas no Seminário sobre SisGen realizado em Brasília, em 06 de abril de 2018. Pesquisadores e estudantes oriundos de instituições federais, estaduais, privadas de todo território brasileiro, ou indústrias e embaixadas tiveram a oportunidade de ouvir sobre a Lei 13.123, fazer perguntas e obter esclarecimentos. Cadastros no SisGen foram preenchidos na parte da tarde durante a oficina.