Verdade seja dita: não se pode acusar o atual governo federal de discriminar alguma área ou órgão ligado à ciência do Brasil. Todos são tratados indistintamente com descaso e ataques. Autarquias como o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e o próprio Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) já sofreram interferências indevidas e cortes de recursos.
Agora chegou a vez da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) passarem por uma crise sem precedentes, com a renúncia de mais de uma centena de pesquisadores e servidores técnicos nos últimos meses.
Desde o início do atual governo, os dois órgãos vêm sendo enfraquecidos, com interferências e trocas frequentes de dirigentes. No caso do Inep, que é o principal responsável pelas avalições – como o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) – e indicadores da educação brasileira, os problemas se agravaram no início de novembro.
No dia 1 de novembro, a menos de um mês da realização da prova do Ensino Médio, o coordenador de Exames para Certificação, Eduardo Carvalho Sousa, pediu demissão. Três dias depois, servidores do Inep realizaram uma assembleia-protesto, na qual acusaram a direção do órgão de assédio moral e denunciaram um desmonte na sua estrutura. Outra causa de insatisfação foram duas portarias nas quais o presidente da autarquia, Danilo Dupas Ribeiro, delega a tomada de decisões que deveriam ser dele a seu chefe de gabinete.
No dia 5 de novembro, foi a vez do coordenador da Logística de Aplicação do órgão, Hélio Júnio Rocha Morais, pedir demissão. Além do Enem, ele e Sousa eram responsáveis pelo Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade) e o Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja). No dia 8, mais 33 servidores pediram para deixar o órgão.
Em declarações para a imprensa, feitas preservando suas identidades, colegas que permaneceram no órgão disseram que os pedidos de demissão foram feitos por causa de discordância quanto a decisões do atual presidente do Inep – o quarto desde o início do governo – que não são consideradas de caráter técnico, e por supostos casos de assédio moral.
Bem antes disso, no dia 28 de abril, sete ex-ministros da Educação – Tarso Genro, Fernando Haddad, Cid Gomes, José Henrique Paim e Aloizio Mercadante (nos governos do PT, Lula e Dilma), Mendonça Filho e Rossieli Soares (no governo de Michel Temer) – divulgaram uma carta aberta, na qual alertavam que o Inep está “em perigo” no governo Jair Bolsonaro. De acordo com eles, o órgão “vem sendo gravemente enfraquecido e isso coloca em risco políticas públicas cruciais para gestores educacionais, professores, alunos, familiares, além de governantes de todos os níveis”.
Depois de discorrerem sobre a importância da autarquia para as avaliações, e indicadores, tomada de decisões e distribuição de recursos na área de educação, os ex-ministros fazem um “apelo”: “Nós, que tivemos a honra de comandar esse ministério em algum momento da história recente do país, sentimos compelidos a fazer um apelo ao governo e à sociedade: respeitem, valorizem e reconheçam o papel de Estado desta instituição”.
Ele reiteram ainda que “o Inep é fundamental para a produção de dados sobre a educação brasileira. Por ser tão técnico, seu trabalho talvez não seja suficientemente conhecido pela população, mas asseguramos que é um pilar de sustentação da maior parte das ações do MEC. Sem um Inep capaz de cumprir suas funções, não haverá gestão responsável na educação do Brasil”.
Capes
No caso da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, que já está em seu terceiro presidente no atual governo, a crise começou a se alastrar no final de novembro. No dia 29, 52 pesquisadores renunciaram a seus mandatos na fundação. Pediram desligamento os coordenadores das áreas de avaliação de Matemática/Probabilidade e Estatística e de Física e os dois subcoordenadores de cada uma, além de 28 consultores ad hoc da primeira e 18 da segunda. Nos dias seguintes, eles foram seguidos pelos seus colegas das áreas de Química e Engenharia III (Engenharia Aeroespacial, Engenharia Mecânica, Engenharia Naval e Oceânica e Engenharia de Produção).
Entre as várias razões para a renúncia dos pesquisadores está, de acordo com eles, a falta de empenho da direção da Capes para reverter a decisão da Justiça que, em 29 de setembro, suspendeu, por meio de liminar, a avaliação quadrienal dos programas de pós-graduação de todo o Brasil (veja aqui). O órgão demorou cerca de dois meses para recorrer da decisão.
Além disso, os demissionários alegaram pressão da presidente da Capes, Cláudia Queda de Toledo, para a criação apressada de novos programas de pós-graduação. Para isso, foi lançado um edital de Apresentação de Propostas de Cursos Novos (APCN). Os pesquisadores que se desligaram dizem que a avaliação quadrienal deve preceder a APCN, já que os parâmetros para julgamentos de cursos novos dependem dela.
A pós-graduação na modalidade de ensino a distância (EaD) foi outro motivo da renúncia coletiva. Numa carta aberta, os pesquisadores da área de Matemática/Probabilidade e Estatística e de Física reclamam que, na discussão sobre a APCN, a presidência da Capes também trouxe à baila o assunto do EaD. “Fomos instados a escrever novos documentos a respeito em um prazo de dois dias úteis, depois estendidos em mais uma semana”, escreveram. “No entanto, estabelecer parâmetros para a expansão com qualidade do EaD não é tarefa para uns poucos dias de trabalho”.
Segundo eles, a área pela qual eram responsáveis pode se gabar de uma experiência pioneira e extremamente positiva com programas semipresenciais em escala nacional. “Não obstante, o EaD definitivamente não é a modalidade de ensino dos melhores programas de pós-graduação no mundo”, ressalvam. “O fato de as áreas não terem aprovado programas nesta modalidade na última APCN, apontado pela presidência da Capes como problema, parece-nos justo e prudente”.
Para o presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), o filósofo Renato Janine Ribeiro, professor titular da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), as atuais gestões dos dois órgãos deixam a desejar. “A do Inep, segundo se lê na imprensa, se omite, o que levou à demissão de funcionários de carreira, que deixaram seus cargos de confiança, por não estarem sendo atendidos, porque a sua presidência nem toma conhecimento do que é para ser feito”, critica.
No caso da Capes, diz ele que a comunidade científica tem insistido para que haja um diálogo maior entre a presidência e os coordenadores de área: “Parece-me que a questão principal é que eles dialoguem mais e que a presidência atenda às demandas deles”.
Veja o texto na íntegra: Revista Questão de Ciência
A Revista Questão de Ciência não autoriza a reprodução do seu conteúdo na íntegra.