Amélia, docente e mãe de cinco filhos, depois de um dia corrido de trabalho desabafa: filhos são uma produção importante demais para não constar no currículo. Este comentário que para a maioria das mulheres parece óbvio, pode ser interpretado como mais um ‘mi, mi, mi’ de uma mulher incompetente.
Quem foi Amélia Hamburger? Nascida em São Paulo no ano da “revolução paulista”, em 1932, frequentemente comemorava seu aniversário durante a reunião anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, a SBPC. Esse vínculo dos marcadores do seu tempo de vida com os tempos da instituição pensada para transformar o Brasil é simbólico de sua atuação contínua em defesa de uma ciência integrada à sociedade e ao país. Hoje, o Centro de Memória da SBPC, abrigado no mesmo prédio onde Amélia estudou, no início dos anos 1950, leva seu nome – o nome de quem sempre entendeu a memória como constitutiva do ser.
Ingressou como estudante do ainda jovem Departamento de Física da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras aos 18 anos. Durante os 4 anos de curso, participou ativamente de discussões no e sobre o curso, juntamente com seus colegas Ernst Hamburger e Moisés Nussenzweig. Continuou sua formação profissional na área de Física Nuclear, tornando-se Especialista em Física Nuclear e Eletrônica.
Aos 25 anos, em uma época em que viagens para o exterior eram raras, partiu para sua primeira estadia em uma universidade norte-americana. Trabalhou no Radiation Laboratory da Universidade de Pittsburgh, a convite do pesquisador americano John Cameron. O ano da publicação do primeiro trabalho desta colaboração é também o ano do nascimento de sua filha Esther. Inicia-se outra forma de contribuição para a sociedade: educar os filhos num ambiente de incentivo à curiosidade do mundo e à participação em sociedade. Esther, Sônia, Cao, Vera e Feco deveriam estar ao lado dos trabalhos e teses publicadas, no currículo Lattes, junto com sua luta por uma creche na universidade. As lutas têm seu tempo de maturação, mas valem a pena ‘quando a alma não é pequena’. A creche pela qual batalhou nos anos 1960 terminou se tornando realidade nos anos 80.
Amélia poderia ter se acomodado, dando suas aulas e cuidando da família, mas optou pela contínua busca do novo. Já mãe de 4 filhos, partiu para um novo estágio nos E.U.A., onde trabalhou no Departamento de Física da Carnegie Mellon University. Para deixar a aventura mais interessante, muda de área. Trabalha no laboratório coordenado por Simeon A. Friedberg, desta vez na área de Estado Sólido, uma área de pesquisa que seria fundamental para desenvolvimento tecnológico do Brasil e na qual iniciou uma série de estudos desenvolvidos por seus colegas, no Laboratório de Baixas Temperaturas do IFUSP.
Nos anos 70 Amélia volta aos Estados Unidos, mas desta vez não foi a curiosidade científica que a levou para lá, mas a perseguição aos pensadores independentes nas universidades brasileiras, realizada pela ditadura e apoiada por grupos conservadores. Motivada por uma percepção de que a sociedade e os cientistas precisavam compreender o papel da ciência no tecido social, nos anos 1980, Amélia inicia uma nova linha de trabalho, em Epistemologia e História da Física Brasileira. Suas pesquisas têm reflexos importantes na educação em Física, em estudos que envolveram a formação de inúmeros físicos e constituíram as bases da preservação da memória da Física Brasileira. Em suas próprias palavras, “O ensino, principalmente de ciências, …tem agora que ser pensado para toda a população escolar, de variadas tradições culturais. Nessas condições define-se, com claro significado social, o desafio de se criarem situações em que o ensino-aprendizagem contenha uma visão científica do conhecimento. Isso implica em poder proporcionar o exercício consciente da própria racionalidade histórica do homem.” Entretanto, “…para desenvolver essa capacidade de forma explícita, para que seja aproveitada por outras pessoas, em variadas situações, são necessários, a nível coletivo, estudos sobre a ciência e sua racionalidade sob muitos pontos de vista, tais como, o filosófico, o histórico, o ético, o estético, o lógico, o da linguagem, o de comunicação…“ É impossível pensar em Amélia sem que venham à memória todos esses pontos de vista, que fluíam em ondas numa conversa que não queríamos terminar. Pontos de vista que libertavam a imaginação, nas exposições, seminários, conferências e publicações que organizou.
Desde seus tempos de faculdade participava em condições de igualdade com seus colegas homens, famosos ou não, seja no laboratório, seja nas discussões teóricas, seja nos debates sobre o curso. Sua postura foi sempre altiva, e ao mesmo tempo, construtiva, agregadora, na construção de espaços de debate de ideias, de reflexão, de compartilhamento de experiências. Os filhos, sempre presentes, aprendiam, acompanhando sua vida de construção da identidade de uma ciência brasileira, para todos. Mestre, no sentido maior da palavra, de tantas físicas e físicos, inspirou em cada gesto uma postura humanista, tornando-se a diva das meninas do IFUSP.
O edifício do centro acadêmico recebeu o nome de Amélia Império Hamburger, em 2016, por iniciativa do CEFISMA, em votação de urna. A forte presença no imaginário dos alunos é reforçada pelas histórias contadas por seus colegas, especialmente sua importância para a História da Ciência e para o Ensino de Ciências, mas também sobre seus dotes artísticos, seus escritos e poemas.
No século XIX, as mulheres tinham somente vida privada, no século XX as mulheres entram na vida pública, quase que envergonhadas de terem família. Criar filhos não é somente uma produção importante para a sociedade, desenvolve habilidades que levam a uma diversidade que leva empresas a ampliar o seu faturamento. No século XXI, temos que cumprir o desejo de Amélia, tornando o público e o privado, na contribuição para o desenvolvimento da sociedade, em duas faces da mesma moeda, e incluirmos os filhos no currículo (Lattes).