O governo Jair Bolsonaro publicou na última quarta-feira (2) mudanças no edital que orienta editoras na hora de criar livros didáticos enviados às escolas públicas brasileiras para alunos do 5º ao 9º ano do Ensino Fundamental. Para 2020, as obras podem trazer publicidade. No entanto, não precisam mais apontar bibliografias, de promover a agenda de não violência contra a mulher e de valorizar a cultura quilombola e do campo. As mudanças, no entanto, foram suspensas no início da noite desta quarta-feira (9).
As obras didáticas estudadas por jovens de escolas públicas de todo país não são produzidas pelo governo federal, mas compradas de editoras. Há um longo caminho: primeiro, o Ministério da Educação (MEC) abre um edital explicando o que as obras devem ensinar. Editoras, então, estudam o documento, produzem amostras dos livros didáticos com base nas orientações do governo federal e entregam para a avaliação. Aí, o governo decide se irá comprar os livros das empresas. O caminho faz parte do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD).
O edital do MEC foi aberto em março de 2018 e já sofreu cinco alterações. A penúltima versão, de outubro, exigia referências bibliográficas quando tratava da estrutura editorial dos livros (página 41). A mudança promovida no segundo dia de gestão Bolsonaro agora solicita as fontes de informações apenas em livros integradores (que trazem propostas para o ensino de várias disciplinas ao mesmo tempo).
— Trazer as referências é um consenso universal na produção científica — diz Carlos Roberto Cury, vice-presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). — Primeiro, você faz jus à autoria de alguém, senão é roubo acadêmico. Segundo, você amplia para o leitor o universo de acesso ao conhecimento. E, com a referência, você checa se a citação ou aquela história corresponde de fato à fonte principal. Sem referências, você perde um instrumento indispensável para superar determinadas formulações senso comum, como erros, preconceitos e estereótipos. É de se lamentar. Vamos ficar em situação vexatória perante o mundo, e as editoras, se acolherem isso, prestarão um desserviço.
Livros não precisam mais retratar diversidade étnica e cultural
Outra mudança nos livros didáticos de 2020 para alunos do 5º ao 9º ano é que ilustrações não precisam mais retratar “adequadamente a diversidade étnica da população brasileira, a pluralidade social e cultural do país”, frase citada em edital anterior. A mudança dá margem para que livros possam mostrar apenas personagens brancos. Fica de fora, também, a valorização de quilombolas e povos do campo.
— É um atraso. Se as pessoas não são referidas em livros de história, é como se não existissem. As pessoas viveram acontecimentos que merecem ser narrados. A história e a memória têm impacto sobre a capacidade do ser humano de se solidarizar. Não trazer referências impacta na solidariedade e no respeito ao outro. É um anti-intelectualismo — critica Joana Maria Pedro, historiadora e presidente da Associação Nacional de História (Anpuh).
Também está permitida a exibição de publicidade. Entretanto, resolução 163/2014 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), hoje subordinado ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, proíbe “publicidade e comunicação mercadológica dentro de escolas, (…) inclusive em uniformes e materiais didáticos”.
No item referente às regras ortográficas, o novo edital retirou a exigência de que livros estejam “isentos de erros de revisão e/ou impressão”. No entanto, em parte anterior do documento, referente ao projeto gráfico-edital, está explícito que “não serão selecionadas obras que apresentem erros crassos de revisão e/ou impressão”.
Alguns critérios foram mantidos no edital: livros precisam estar livres de estereótipos ou de raça, gênero e orientação sexual. Também não podem trazer doutrinação religiosa, política ou ideológica.
Em nota, a Associação Brasileira dos Editores de Livros Didáticos (Abrelivros) afirmou que vê como “rotineiras” as alterações em editais do PNLD, “mas vê com preocupação alterações neste momento, uma vez que as obras já foram entregues, desde o dia 31 de novembro de 2018”. Ressalta, ainda, que a política pública voltada a livros escolares “tem marcos legais, incluindo a BNCC, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), o Estatuto da Criança e do Adolescente, entre outros, por isso qualquer modificação deve estar em sintonia com o conjunto de leis, diretrizes, resoluções e decretos que o regulam”.
As mudanças foram assinadas por Rogério Fernando Lot, presidente substituto do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), órgão subordinado ao MEC, em 2 de janeiro, dia da posse do novo ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodriguez.
Em discurso na posse, o titular do MEC afirmou que combateria “a ideologia de gênero nas escolas”, termo nunca usado por educadores, e o “marxismo cultural”. O MEC não respondeu aos questionamentos da reportagem sobre a justificativa para as mudanças até a publicação deste texto.
Como o edital foi publicado no início do ano passado, editoras já inscreveram seus livros para avaliação do MEC. Agora, as empresas temem ver suas obras reprovadas pelo governo por não estarem em acordo com as mudanças.
1) Foi excluída a exigência de que livros didáticos promovam positivamente a cultura quilombola e os povos do campo (p. 39 do edital de agosto).
2) Foi mantida a exigência de que as obras promovam positivamente a imagem da mulher e de afrodescendentes, mas foi eliminado um trecho requerendo atenção “com a agenda de não violência contra a mulher” (p. 39 do edital de agosto).
3) Os novos livros agora poderão apresentar publicidade, o que estava vedado no primeiro edital (p. 39 do edital de agosto).
4) O livro não precisa mais estar isento de erros de revisão ou impressão (p. 41 do edital de agosto).
5) As ilustrações não precisam mais retratar adequadamente a diversidade étnica da população brasileira, a pluralidade social e cultural do país (p. 41).