O Conselho Nacional de Políticas Sobre Drogas (Conad) votou na última quinta-feira, 1° de março, a proposta do ministro do Desenvolvimento Social e Agrário para uma nova política de drogas no País.
Segundo o texto, a partir de agora, a política de drogas será orientada pela abstinência e tratamento em clínicas e comunidades terapêuticas, em oposição à política de redução de danos, defendida pela ala cuja posição é distinta do colegiado.
A resolução foi votada à revelia de alguns conselheiros, que, além de fazer emendas no documento, também pediram vistas. Em reunião no dia 1° de fevereiro, representantes do governo no Conselho já haviam tentado votar a resolução, mas a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), por meio de seu representante no colegiado, interrompeu pedindo vistas do processo junto a outros três conselheiros.
Após a reunião, o médico e pesquisador da Fiocruz, Francisco Inácio Bastos, representante da SBPC, se disse frustrado e destacou que a instituição fez e seguirá fazendo seu papel: “Nossa posição foi de protesto, tentamos postergar ou ao menos contribuir de forma efetiva para a proposta, mas tive aprovada apenas uma sugestão de emenda, sobre o repasse de verbas públicas para os Alcoólicos e Narcóticos Anônimos. Está no próprio estatuto deles, era evidente, e eu apenas recordei o estatuto. De maneira geral foi bem frustrante”, avalia o pesquisador.
O parágrafo 3º do artigo 23 do regimento interno do Conselho diz que “as matérias retiradas de pauta por pedidos de vista serão automaticamente incluídas na pauta da reunião ordinária seguinte”.
Desta vez, a conselheira Clarissa Guedes, representante do Conselho Federal de Psicologia (CFP), defensora da linha de redução de danos, declarou que não concordava com a votação e pediu vistas do processo.
Presidente do Conselho, o ministro da Justiça, Torquato Jardim, indeferiu o pedido, alegando que na reunião anterior a proposta já fora retirada de pauta mediante um pedido coletivo de vista e que, segundo o regimento interno do Conselho, cada membro só tem direito a um pedido de vista. “As matérias retiradas de pauta por pedidos de vista serão automaticamente incluídas na pauta da reunião ordinária seguinte”.
O que Jardim não mencionou é que cada membro, também segundo o regimento, tem direito a um pedido de vista por processo e, segundo Gabriel Santos Elias, que é coordenador de relações institucionais da Plataforma Brasileira de Política Drogas e tem participado das articulações contra a proposta, a conselheira Clarissa Guedes não havia pedido anteriormente.
Bastos já alertara, após a última reunião, que o governo tentaria votar de modo açodado o texto proposto por Terra e indicou que tentaria – do mesmo modo como ocorrido há um mês – defender que o Brasil aguardasse a votação de uma proposta da ONU que estabelece um padrão internacional para o tratamento do uso de drogas.
De maneira geral, o texto da ONU critica o que chama de uma “visão ultrapassada de alguns países”, que discrimina e estigmatiza o usuário e aborda o problema nas instâncias criminais, quando deviam tratar como questão de saúde pública mundial.
A proposta foi aprovada ainda em fevereiro por técnicos e aguarda que os países membros ratifiquem o documento.
O que, segundo Bastos, nada adiantaria: “Nós levamos o documento da ONU e todas as nossas sugestões foram baseadas nele, mas é muito complicado, porque eu posso dizer ‘Olha, isso é recomendação da OMS’, e aí vem outra pessoa e diz: ‘Não está ratificado no Conad, o País é soberano e ratifica o que lhe parecer pertinente.’” E completa: “A SBPC fez o seu dever de casa.”
Para o cientista Sidarta Ribeiro, diretor do Instituto do Cérebro da UFRN, diretor da SBPC e integrante do Conselho Municipal de Políticas Públicas sobre Drogas (Comud) de Natal, trata-se de uma situação dramática, num momento em que estamos vivendo uma exacerbação da violência. “A proposta do governo vai aumentar a violência e o lucro do narcotráfico, o lucro que vem do risco”, diz.
“O que está havendo”, avalia Ribeiro, “é um rolo compressor para mudar uma coisa que já é ruim para outra bem pior, que não tem evidência científica e que é uma bandeira eleitoral. Eles querem se eleger com a bandeira da segurança pública.”
Outra questão apontada por Gabriel Santos Elias é que os conselheiros só receberam a ata da última reunião (que havia acontecido em 1° de fevereiro) com um dia de antecedência, no dia 28 de fevereiro. O regimento diz que a ata da reunião anterior tem de ser enviada até sete dias antes da próxima, para que os conselheiros possam ler e aprovar no início da reunião seguinte, ocorrida no dia 1° de março.
“O presidente, na hora de votar a ata, nem abriu espaço para discutir. Quando questionaram, ele disse ‘já está aprovado, acabou’”, lembra Elias.
Há ainda, segundo o representanteda Plataforma Brasileira de Política Drogas, outro problema regimental: não foi incluído na pauta da reunião e, portanto, não foi votado o relatório do Fundo Nacional de Política de Drogas (Funad). “O regimento aponta que em toda reunião, esse relatório tem de ser discutido e aprovado pelos conselheiros. Isso não ocorreu.”
É um relatório sobre como tem sido utilizado o Funad, um fundo específico para ações relacionadas à política de drogas e, em toda reunião, os conselheiros têm de se manifestar sobre aquilo. “O governo mostra o que tem feito e os conselheiros dizem se concordam ou não”, explica Elias.
Nesta semana, Elias participará de uma reunião com a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) – órgão vinculado à PGR que provavelmente vai questionar juridicamente a reunião –, a CFP, que já decidiu também entrar na justiça, e a Defensoria Pública da União (DPU).
“O que nós faremos agora é questionar juridicamente a reunião por que ela não seguiu o regimento e, portanto, não é válida.”, indica Elias.
Na avaliação de Ribeiro, o governo errou ao votar, da forma que votou, a resolução. “Eu acho que o governo cometeu um equívoco. Eles passaram por cima de um direito regimental e criaram um problema para eles mesmos.”
Bastos informa que a SBPC não tem intenção de entrar em questões judiciais, mas vai trabalhar para evidenciar incongruências do documento: “O que é uma clínica privada e o que é uma comunidade terapêutica, por exemplo? São duas coisas que as normas internacionais distinguem de maneira muito clara, mas na proposta estão formuladas de maneira atropelada. Por exemplo, basta recorrer ao texto oficial de De Leon, o patrono e grande sistematizador das Comunidades Terapêuticas, para constatar que diversas organizações não podem ser definidas enquanto tal. O texto não é fruto de nenhuma iniciativa de legalização ou congênere, também não foi redigido como um apólogo de iniciativas de redução de danos, mas sim um documento oficial, de um representante autorizado, para o livro-texto da The American Psychiatric Publishing denominado Textbook of Substance Abuse Treatment (páginas 459-476; da edição publicada em Washington e Londres, em 2008)”, afirma.
“Queremos elaborar um documento que elenque e sistematize o que já existe”, avisa o representante da entidade no Conad. “A ideia não é, ao menos de imediato, tentar sintonizar o Brasil com as políticas válidas no século XXI, em países como Portugal, mas ao menos harmonizar o debate com as ideias formuladas inicialmente no contexto do Iluminismo (século XVIII), ou seja, que a ciência expresse dados empíricos, com base em métodos reconhecidamente válidos e resultados que devem ser replicados de forma independente, sendo passíveis de corroboração ou refutação. Se chegarmos a isso, estaremos dando um passo gigantesco no debate. Depois seguiremos pelos três séculos subsequentes.”
Bastos alerta ainda que as sugestões expostas na resolução aprovada na última semana são, em sua maioria, genéricas e apontam apenas para uma consonância daquilo que é proposto com um projeto de lei de 2013, em discussão no Senado, de autoria do então deputado federal Osmar Terra. “Se o projeto não está aprovado não tem validade. Mas eles pensam diferente, tanto que se esforçaram ao máximo para aprovar. Acho que não haveria tanto esforço para algo inócuo”,diz.
Na avaliação de Ribeiro, o governo conseguiu uma vitória expressiva no Conad, “trocando representantes, substituindo pessoas, marcando reuniões a toque de caixa, dificultando ao máximo a representação da sociedade civil”.
“Agora eles vão dizer ‘olha, o povo brasileiro é a favor, o Conad aprovou, vamos todos na contramão do mundo aumentar a guerra às drogas’, e vão aumentar a guerra contra o usuário, sobretudo aqueles que vivem em comunidades mais carentes. O que estamos vendo é um teatro de horrores e isso é mais um passo nessa direção retrógrada”, finaliza o cientista.
Marcelo Rodrigues, estagiário da SBPC, para o Jornal da Ciência