Aprovação do Marco Temporal mostra que legislativo ignora a ciência na construção de políticas

Projeto de lei foi encaminhado à Presidência da República, mas deve ser vetado ou declarado como inconstitucional pelo STF, como apontam especialistas

Na última semana, o Senado Federal aprovou o projeto de lei nº 2.903/2023, que institui o Marco Temporal, mesmo após o Supremo Tribunal Federal (STF) definir que a tese jurídica para demarcações de terras indígenas é inconstitucional. Para especialistas, essa movimentação mostra que o Legislativo, além de não ouvir o que pensam as populações tradicionais, desconsidera os apontamentos da ciência na definição das políticas públicas.

“É uma questão de visão de futuro. Somos um país eminentemente agrícola, cerca de 30% do nosso PIB [Produto Interno Bruto] vem do agronegócio, o que corresponde a mais de 50% das nossas exportações. Só que o agronegócio, para existir, depende de regimes de chuva, de estabilidade climática, e o que a gente tem aqui no Brasil que mais se aproxima de um estabilizador de chuvas são as nossas florestas, muitas protegidas por serem terras indígenas e unidades de conservação”, explica André Guimarães, diretor-executivo do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM).

Desde que foi anunciada a tese do Marco Temporal, o IPAM vem realizando uma série de estudos e publicando normas técnicas sobre o impacto da mudança legislativa. Entre os dados, o instituto estima que cerca de 23 a 55 milhões de hectares serão desmatados só nos próximos anos, por conta da intensificação de ações de grilagem. Como efeito do desmatamento, 7,6 a 18,7 bilhões de toneladas de dióxido de carbono devem ser emitidas na atmosfera.

“As áreas que menos se desmatam hoje no Brasil são as terras indígenas e as unidades de conservação. Então, criar uma terra indígena e criar uma unidade de conservação significa você combater desmatamento, e combater desmatamento significa você manter algum grau de estabilidade no regime de chuvas. Em última instância, isso tem relação direta com a economia do País. Essa visão de ‘vamos continuar abrindo a fronteira indefinidamente, vamos continuar desmatando e expandindo horizontalmente a nossa área produtiva’ é uma visão datada, ultrapassada.”

Para Guimarães, além da tese do Marco Temporal não ter qualquer embasamento científico, ela desconsidera a história do próprio Brasil, já que estimativas apontam que havia de cinco a dez vezes mais indígenas no País em 1.500 no comparativo com os dias de hoje.

“É uma questão de fazer justiça. Nós estamos falando de populações tradicionais brasileiras, estamos falando de um País que tem mais de 150 etnias diferentes e mais de 200 línguas diferentes. Isso deveria ser motivo de orgulho para a gente. E se for motivo de orgulho, nós temos que preservar essas culturas.”

Problemas de embasamento

O Marco Temporal nasceu de uma tese jurídica que afirma que os povos indígenas teriam o direito de ocupar apenas as terras que já ocupavam ou disputavam em 5 de outubro de 1988, data em que a atual Constituição Federal foi promulgada. Mas se no campo científico não há qualquer embasamento, para especialistas, a tese distorce o que está definido constitucionalmente.

“O STF acabou de concluir o julgamento do Marco Temporal dizendo que não tem embasamento jurídico nele, e a instituição responsável por fazer a interpretação da nossa Constituição é o Supremo Tribunal Federal. Segundo o órgão, o que define uma demarcação de terra indígena é um laudo antropológico, não é um dado de tempo, uma determinada data”, explica a jurista Deborah Duprat, integrante do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade, uma iniciativa da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC)

Duprat detalha que, constitucionalmente, o que há é a posse tradicional indígena, como está definida no artigo 231, parágrafo 1º da Constituição brasileira, que institui o laudo antropológico. O laudo considera quatro componentes: a área de habitação, a área produtiva, a área de recursos ecológicos e a área de reprodução física e cultural, mas sempre levando em conta os usos, costumes e tradições de cada grupo indígena. Esse desenho territorial também é um processo endógeno, ou seja, de acordo com a visão do próprio grupo indígena, e não um processo de um olhar externo ao grupo.

“O Brasil se constituiu em torno da ideia de propriedade privada, em torno dos grandes latifúndios. Então, essa é uma disputa por quem tem posse de terras. É a nossa estrutura colonial escravocrata que explica toda essa resistência em como conceder áreas para indígenas, tanto que a gente ouve recorrentemente a expressão ‘muita terra para pouco índio’. Mas as terras indígenas correspondem a um percentual muito menor do que o grande latifúndio representa na conformação territorial desse País.”

Caminho legislativo

Rejeitado pelo STF, mas aprovado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal. Qual o caminho do Marco Temporal? Especialistas explicam que o projeto de lei vai para sanção ou não da Presidência da República, mas a decisão do STF deve antecipar sua inconstitucionalidade.

“O que é provável que aconteça agora é o projeto de lei ter a sua constitucionalidade arguida no Supremo Tribunal Federal, caso ele seja aprovado sem vetos pela Presidência da República. E aí nós teremos esse jogo entre Judiciário e Legislativo, que é um jogo permanente, ele vai tencionando até que uma das partes desista”, complementa Duprat.

Advogado e consultor jurídico, Fábio Takeshi detalha que a decisão do STF não só impactará o atual projeto de lei em tramitação, mas todas as demais análises acerca das demarcações de terras.

“A decisão do STF tem o que nós chamamos de repercussão geral, quer dizer, ela solidifica o entendimento sobre a matéria, algo que não se tinha antes. Então, tudo o que vier sobre essa temática de tentar discutir o mapa temporal, tentar discutir a questão da demarcação, vai esbarrar nessa repercussão geral, que já é um entendimento agora consolidado. Tudo isso tem que ser levado em consideração”, aprofunda o especialista, que integra o Grupo de Trabalho sobre Meio Ambiente da SBPC.

Mas se o STF já havia julgado a inconstitucionalidade do Marco Temporal antes do julgamento no Senado, por que o projeto de lei ainda foi votado? Takeshi pondera que há complexidades no jogo político, e que a aprovação de algo pode não ser apenas pensando em sua sanção, mas no fortalecimento dos atores eleitorais.

“Foi noticiado que, talvez, essa aprovação do Marco Temporal no Senado tenha sido feita também para agradar ao público interno do próprio Senado. Porque ele tem, muitas vezes, perdido força nas discussões. Então, a aprovação vem para fortalecer a imagem dele perante todo o processo legislativo. E outra possível interpretação é de que, por mais que a matéria já esteja decidida, existe a necessidade de agradar também sua base eleitoral. Nós sabemos que muitos políticos têm uma base eleitoral favorável à tese do Marco Temporal, então é menos um conflito com o governo e mais uma busca por fortalecer os votos que já têm ou capitanear outros votos, olhando para o processo de eleição daqui a alguns anos.”

Rafael Revadam – Jornal da Ciência