Desde a celebração do Ano Internacional da Química, em 2011 (AIQ-2011), tenho participado de várias conferências internacionais sobre o papel das mulheres na ciência.
Esses eventos, vistos em seu conjunto, mostram um painel diversificado, com protagonistas de muitos países, de diferentes etnias e crenças. Mas com um ponto em comum. Graças à sua atuação como cientistas, essas mulheres conseguiram se destacar em um campo de atividade bastante valorizado pela sociedade, no qual os homens ainda predominam de forma marcante.
Governos, organizações internacionais como a ONU, e associações científicas empenham-se hoje em promover, estimular e apoiar iniciativas que levem à mudança das estruturas sociais responsáveis pela desigualdade entre homens e mulheres no campo da educação e da ciência. Nesse sentido, nós pesquisadoras e educadoras que vivemos neste início do século XXI, apesar de ainda enfrentarmos inúmeras barreiras para a realização profissional, podemos nos beneficiar de avanços concretos obtidos nas últimas décadas.
Nunca é demais lembrar que a presença efetiva das mulheres no espaço oficial da ciência é, em termos históricos, muito recente, alcançando algo em torno de um século apenas. Uma inclusão que exigiu das pioneiras coragem e muita perseverança para se defrontar com a tradição. O caso de maior visibilidade e impacto é, sem dúvida, o de Marie Sklodowska Curie (1867 – 1934) primeira mulher a receber o Prêmio Nobel nas áreas de Física (1903) e Química (1911) e primeira cientista a receber a dupla premiação.
Polonesa, vivendo no período em que seu país estava sobre dominação do império russo, filha de um professor de física e matemática comprometido com a causa do nacionalismo polonês, Marie Curie construiu sua trajetória com uma tenacidade admirável. Soube burlar as proibições de estudo superior para as mulheres no contexto de então, e conseguiu articular sua ida a Paris onde, anos depois, se inseriu nos grupos científicos que realizavam a pesquisa mais avançada em Física e Química na Europa, e portanto no mundo. O reconhecimento ao seu trabalho científico se deve, principalmente, a ter desvendado uma nova área de conhecimento, a radioquímica.
O exemplo de Marie Curie e de outras pioneiras nesse momento do final do século XIX e início do século XX abriu caminho para a luta pela redução da desigualdade entre homens e mulheres na ciência. Entre essas pioneiras está a inglesa Rosalind Franklin (1920-1958), pesquisadora da área de biofísica cujos estudos sobre a difração do raio-X contribuíram para a determinação da estrutura do DNA. Assim como a também inglesa Dorothy Crowfoot Hodgkin (1910-1994), bioquímica que recebeu o Prêmio Nobel de Química em 1964 por seu trabalho no campo da cristalografia do raio-X, conhecimento que se tornou amplamente utilizado e propiciou, entre outros avanços, a descoberta da estrutura da insulina.
O número de cientistas criativas, talentosas e bem sucedidas foi crescendo ao longo do século XX e construindo uma nova mentalidade para homens e mulheres em substituição à “tradição”. Mas se essa mudança trouxe uma prova de qualidade, não se traduziu, entretanto, em um processo de participação igualitária das mulheres nas faixas média e alta das carreiras e, sobretudo, nos postos de direção.
O fenômeno da sub-representação das mulheres nas carreiras científicas e, de forma geral, no campo conhecido como STEM (da sigla em inglês science, technology, engineering and mathematics) está presente nos países de economias avançadas e continua sendo um desafio para educadores e formuladores de políticas públicas.
Nos EUA, levantamento realizado em 2013, mostrou que apesar de as mulheres constituírem 46% da força de trabalho ocupavam apenas 27% dos postos em ciência e engenharia. São números que representam um avanço se comparados aos de 2003, mas revelam também a dificuldade em vencer as barreiras das estruturas tradicionais.
Na Comunidade Europeia, essa realidade pode ser vista nos dados que tratam da trajetória da carreira acadêmica de homens e mulheres. Informações do relatório SHE Figures, da Comissão Europeia, de 2012, mostram que na etapa inicial da carreira acadêmica os postos para jovens doutores estão divididos entre 70% (homens) e 30% (mulheres). Já na etapa final das carreiras, quando são considerados pesquisadores seniores, apenas 10% das mulheres chegam a essa condição.
No Brasil, a sub-representação das mulheres é um fenômeno em movimento e vem se alterando rapidamente na base da pirâmide educacional. Segundo o censo do INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), de 2000 a 2012, o número de mulheres que concluiu o ensino médio é ligeiramente superior ao de homens.
Nos cursos de graduação, considerando-se todas as carreiras, aí incluídas áreas onde a predominância feminina é marcante como pedagogia, letras, ciências humanas, em 2012, elas representam 57,1% dos concluintes.
O ano de 2010 marca o ponto de equilíbrio quanto ao gênero, no número de pesquisadores registrados no CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico).
Os 128,6 mil pesquisadores então relacionados na base de dados do órgão estavam divididos igualmente entre homens e mulheres. Uma mudança frente à situação que a pesquisa identificou no início do levantamento (1995) quando essa proporção mostrava 60% para homens e 40% para mulheres. Ao mesmo tempo, ao final desse período (1995 – 2010) o número de mulheres (52%) ultrapassou o de homens (48%) como líderes dos grupos de pesquisa registrados no CNPq.
Não há dúvida que as ações que ampliam a participação feminina na atividade científica devem gerar ganhos substantivos nos próximos anos. Mas, os números totalizados não revelam a desigualdade da proporção entre ambos quando se olha para as áreas de conhecimento isoladamente.
Assim, áreas “tradicionalmente” tidas como masculinas e femininas continuam com perfil de distribuição fortemente desigual. Por exemplo, em ciências agrícolas essa proporção é de 74% (H) e 36% (M); em ciências exatas e da terra, que engloba física, química e matemática, de 68% (H) e 32% (M); engenharias, 71% (H) e 39% (M).
Os números para avaliar essa realidade são mais escassos quando se trata de identificar a divisão de gênero nos postos de direção e chefias da Universidade, a grande empregadora de pesquisadores no país. No entanto, um reflexo desse desequilíbrio pode ser visto nos quadros dirigentes das principais sociedades científicas do país, onde as lideranças femininas continuam sendo uma exceção merecedora de registro.
As mudanças neste panorama, em qualquer parte do mundo, dependerão de nós, que devemos continuar a luta por um mundo mais equilibrado, onde cientistas mulheres e homens sejam protagonistas não apenas da geração do conhecimento que desvendem os segredos do universo, mas, também sejam lideranças na luta de construção de um mundo mais harmonioso para as futuras gerações.
(*) Vanderlan da S. Bolzani é professora titular do Instituto de Química de Araraquara da Universidade Estadual Paulista (IQAr-Unesp), vice-presidente da Fundunesp (Fundação para o Desenvolvimento da Unesp) e da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência)