Autores do recém-lançado livro “Assédio Institucional no Brasil: Avanço do Autoritarismo e desconstrução do Estado“, se reuniram nessa segunda-feira em uma sessão virtual da 74ª Reunião Anual da SBPC para apresentar alguns dos tópicos discutidos na obra e debater sobre o conceito deste tipo de assédio, que, segundo os painelistas, se tornou um método de governo na atual gestão federal.
“O assédio institucional, moral e organizacional se tornou fenômeno assustadoramente frequente no serviço público. Esse assédio se caracteriza por um conjunto de discursos, de falas, de posicionamentos públicos. Mas não só. Também se caracteriza por imposições normativas, práticas administrativas, por parte daqueles que ocupam posição de mando, implicando constrangimentos, ameaças e toda uma sorte de deslegitimações aos servidores públicos”, descreveu Maria Filomena Gregori, professora da Universidade de Campinas (Unicamp) e coordenadora do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade, da SBPC, que presidiu a sessão.
Além de Gregori, participaram da sessão a jurista e ex-procuradora federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal (MPF), Débora Duprat; José Celso Cardoso, presidente da Associação dos Servidores do Ipea e Sindicato Nacional dos Servidores do Ipea (Afipea); e Frederico A. Barbosa da Silva, doutor em antropologia pela UnB, servidor público federal no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e organizador do livro.
A obra reúne 20 artigos assinados por 51 pesquisadores de instituições e universidades brasileiras para conceitualizar e fornecer dados empíricos sobre uma série de ações que visam minar e deteriorar instituições públicas e seu corpo técnico, denominada assédio institucional. Segundo Barbosa da Silva, o termo emerge da busca por compreender processos de múltiplos níveis que caracterizam a atuação governamental nesses últimos anos, e que podem ser definidos como processos de “desdemocratização” do Estado e da sociedade no Brasil de Bolsonaro
“Temos vários exemplos de assédios em diferentes níveis. Desde o discurso das lideranças políticas até o desdobramento disso tudo no funcionamento cotidiano das instituições, com perda de orçamento, minimização de processos de participação, perda de recursos humanos e com outras estratégias, restrições administrativas, assédios internos, afastamentos. Ou seja, o assédio ganha uma dimensão e uma complexidade enorme”, afirmou.
Débora Duprat, que foi sub-procuradora Geral da República, falou sobre a gênese do governo populista brasileiro que enfraqueceu as instituições públicas e promoveu o assédio institucional a uma prática generalizada. “Antes de chegarmos a este conceito de assédio institucional, nós já percebíamos algo de muito errado na administração pública federal brasileira. O governo Bolsonaro se inicia com a Medida Provisória 870, que é uma medida que vai regulamentar a administração pública. E já nessa MP tinham coisas impressionantes, por exemplo, se extinguia o Consea, Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, que naquele momento fazia parte de um sistema e não de colocou nada no lugar”, disse.
Criado em 1993, o Consea teve uma atuação ativa no combate à fome e nas iniciativas para promover uma alimentação mais saudável. “Foi um importante mecanismo para retirar o Brasil do mapa mundial da fome. E, naquele momento, em 2019, quando o governo teve início, a fome já alcançava patamares assustadores. E, mesmo assim, ele desorganiza esse sistema nacional.”
Além do Consea, Bolsonaro ao assumir a Presidência, desorganizou administrativamente a Funai (Fundação Nacional do Índio), tirando do Ministério da Justiça, e passando ao Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. Além disso, passou a demarcação de terras indígenas para o Ministério da Agricultura e da Pecuária. “Que aloja o agronegócio e, portanto, tem uma pauta incompatível com a pauta indígena. Isso não foi totalmente acolhido pelo Congresso Nacional, na maior parte ele não conseguiu avançar, mas já mostrava a intenção de desorganizar a administração pública”.
Duprat cita ainda os exemplos das nomeações do governo: Abrahan Weintraub na Educação, sendo contra escolas e Universidades públicas; Ernesto Araújo que acabou com a política internacional brasileira, tão bem consolidada no mundo; o Ricardo Salles, contra o Meio Ambiente. “Uma sucessão de nomeações de pessoas absolutamente incompatíveis com as pautas pelas quais são responsáveis. Mais que incompatíveis, pessoas contrárias a essas pautas”, ressaltou.
Também teve o desfinanciamento de políticas importantes. Um exemplo foi o contingenciamento linear de 30% nas universidades federais, minando a capacidade de funcionamento delas. “Como é que surge um fenômeno como esse, que põe por terra, conquistas sociais tão recentes?”, perguntou a jurista.
“Quando ele encarna a figura do povo, ele confunde sociedade e Estado. Ele junta o que a democracia separou. E ao fazer isso, ele vai negar esse princípio da divisão existente no interior da sociedade civil. Ele torna a burocracia inoperante. Porque a burocracia se constitui como espaço de conhecimento. E é esse conhecimento que precisa ser destruído pelo líder populista. E por isso que os servidores, técnicos, também são colocados de lado, porque você não pode produzir conhecimento, porque ao produzi-lo, você está fazendo de alguma maneira funcionar aquela burocracia que o líder populista, totalitarista, tem que destruir”, explica Duprat.
A condução da pandemia ilustra a explicação da jurista. Na maior crise sanitária dos últimos tempos, os especialistas, o conhecimento científico, foram desprezados pelo governo, que passou ele mesmo a prescrever remédios, a decidir sobre vacinas, sobre medidas de isolamento, uso de máscaras.
“Há nesse governo uma necessidade de não produzir dados. Porque os dados orientam políticas, eles produzem resultados positivos. O diretor do Inpe, Ricardo Galvão, foi demitido ao divulgar dados sobre o desmatamento. O Censo Demográfico foi suspenso e sua descontinuidade gera impactos severíssimos nas políticas públicas. O governo não produziu dados sobre a covid. Foi preciso que um consórcio da imprensa informasse sobre o número de mortos”, lembrou.
José Celso Cardoso, presidente da Afipea, criou o conceito “assédio institucional” para definir o conjunto de práticas levadas a cabo no atual governo, mas que, segundo ele, já estavam em andamento desde o governo anterior, de Michel Temer.
“O assédio sempre existiu, é um fenômeno que tem a ver com o fato das pessoas envolvidas se conhecerem previamente, com motivações pessoais que levam ao estabelecimento de comportamentos deletérios ao ambiente de trabalho e para a própria relação entre as pessoas – ameaças, constrangimentos, desqualificações públicas. Mas o que começamos a perceber é que estávamos diante de casos que não guardavam similaridade com essas características iniciais tradicionais. Não havia relação interpessoal prévia nos assédios verificados, o assédio estava intermediado por um conjunto de relações que não necessariamente dependiam das pessoas se conhecerem ou conviverem no mesmo espaço de trabalho. Há uma questão ligada a uma visão de País, de Estado, de políticas públicas que coloca em posições antagônicas, de modo radical, esses personagens envolvidos nos casos de assédio”, definiu.
Ainda que o assédio institucional se converta em assédio moral, a motivação não é pessoal, reforça o especialista. É uma motivação de índole organizacional, ou institucional ou política. Outra característica desse tipo de assédio é a escala. “O assédio passou a ser a regra nas instituições públicas”, disse.
Uma terceira característica que se distingue é que esse assédio institucional parece ter uma funcionalidade, por meio do qual o governo busca atingir objetivos de condução do Estado, mudando o rumo das políticas públicas para as quais esses órgãos foram criados, negando a atuação dos servidores envolvidos. A desidratação orçamentária é um modo sutil de fazer isso. Segundo Cardoso, as pessoas vão sentir isso indiretamente, na medida em que os serviços públicos perderem qualidade, capacidade, e as condições de vida dos cidadãos vão se deteriorando. “O assédio como método de governo exige o desmonte das estruturas pré-existentes”, afirma.
O livro “Assédio Institucional no Brasil: Avanço do Autoritarismo e desconstrução do Estado” está disponível para download gratuito neste link.
Danela Klebis – Jornal da Ciência