A concessão de bolsas de iniciação científica nas universidades e outras instituições de pesquisa para o período 2020-2021 deverá contemplar “preferencialmente” — mas não obrigatoriamente — projetos de pesquisa relacionados às áreas classificadas como prioritárias pelo Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), segundo segundo o edital publicado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) na última segunda-feira, 11 de maio.
A linguagem usada na chamada é mais flexível do que se esperava com base em informações divulgadas pela agência no mês passado, que davam a entender que a vinculação às Áreas de Tecnologias Prioritárias seria obrigatória — o que acabaria por excluir grande parte das ciências humanas e sociais, e até mesmo inviabilizar projetos de pesquisa básica (sem viés tecnológico), que costumam ser o cerne da iniciação científica.
A mudança é resultado de forte reação da comunidade acadêmica, que se posicionou frontalmente contrária à exclusão de qualquer área do conhecimento do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC). A Comissão de Pesquisa do Conselho de Reitores das Universidades Estaduais Paulistas (Cruesp) chegou a publicar uma carta aberta, em 29 de abril, criticando essa possibilidade. “Solicitamos que essas prioridades sejam rediscutidas em conjunto com a comunidade científica brasileira, de forma a que se estabeleçam políticas de médio e longo prazo que contemplem todas as áreas da atividade humana”, afirma o documento.
O pró-reitor de Pesquisa da USP, Sylvio Canuto, disse que o edital “atende parcialmente” às preocupações levantadas pela carta do Cruesp, “pois retira a obrigatoriedade, mas ainda deixa uma marca ao estabelecer preferências de áreas”. “Não abriram mão das áreas prioritárias, mas aceitaram, aparentemente sem muita convicção, que as outras áreas participassem”, disse o pró-reitor de Pós-Graduação da USP, Carlos Carlotti Júnior.
“Mas certamente é uma melhora com relação à situação anterior”, ressalta Canuto. O edital interno para concessão das bolsas de iniciação científica na USP, segundo ele, não fará restrição a nenhuma área de pesquisa — enfatizando que a vinculação às Áreas Prioritárias do governo é algo preferencial, mas não obrigatório. “O processo seletivo continuará sendo feito nas unidades por parte das Comissões de Pesquisa e todas as áreas deverão ser contempladas.”
“Houve um recuo político, mas não acho que houve uma mudança de substância”, avaliou a socióloga Maria Arminda do Nascimento Arruda, professora titular e diretora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. As versões originais da portaria de Áreas Prioritárias e da pré-chamada do PIBIC, segundo ela, são reflexo de uma “ideologia política autoritária” que insiste em desqualificar a ciência e, em especial, as ciências humanas e sociais.
“O que está por trás disso é uma incompreensão absoluta do movimento das sociedades contemporâneas”, afirma a diretora. “Não existe desenvolvimento social sem as humanidades e as ciências sociais; assim como não existe desenvolvimento tecnológico sem a ciência básica.”
“O PIBIC foi concebido para ser multidisciplinar. Não dá para imaginar que a ciência brasileira vá se desenvolver apenas em algumas áreas”, reforça o pró-reitor Canuto. Ele teme que as mesmas restrições apareçam em outras linhas de financiamento para bolsas e pesquisas.
A chamada nacional (como são chamados os editais na área de ciência e tecnologia), de R$ 124 milhões, prevê a concessão de 26 mil bolsas de iniciação científica — 1 mil a mais do que a quantidade atual —, a serem utilizadas no período de agosto de 2020 a julho de 2021. As bolsas são destinadas a alunos de graduação que queiram desenvolver projetos de pesquisa. O valor é de apenas R$ 400 por mês, mas serve como um incentivo e uma ajuda de custo essencial para engajar os jovens estudantes na atividade científica. É onde a maioria dos cientistas brasileiros inicia sua carreira de pesquisador.
O PIBIC existe desde 1988 e nunca houve restrição para áreas elegíveis. O CNPq lança repassa as bolsas para as instituições, que depois realizam editais internos para distribuí-las entre seus alunos — em concordância com as regras estipuladas na chamada nacional.
Raiz da questão
A pré-chamada do edital deste ano, divulgada no site do CNPq em 23 de abril, informava que as bolsas PIBIC “(deveriam) estar vinculadas a projetos de pesquisa que apresentem aderência a, no mínimo, um das Áreas de Tecnologias Prioritárias” do MCTIC; e que essa aderência “(deveria) ser explicitamente apresentada no texto do projeto submetido no âmbito do edital interno”.
As áreas prioritárias foram estabelecidas em 19 de março deste ano, pela Portaria 1.122 do MCTIC, incluindo temas como segurança pública, inteligência artificial, agronegócio, energias renováveis e saneamento básico (veja a lista completa abaixo); sempre com viés tecnológico e sem qualquer menção às ciências humanas ou mesmo à pesquisa básica — sem a qual não existe base para desenvolvimento tecnológico.
Oito dias depois, em 27 de março, após críticas da comunidade científica, o ministério publicou uma portaria complementar (Portaria 1.329), acrescentando ao texto original o seguinte parágrafo: “São também considerados prioritários, diante de sua característica essencial e transversal, os projetos de pesquisa básica, humanidades e ciências sociais que contribuam para o desenvolvimento das áreas definidas”.
“O PIBIC foi feito para a ciência básica. Resgatamos isso dentro do possível”, disse ao Jornal da USP o novo presidente do CNPq, Evaldo Vilela, em entrevista exclusiva, na última quarta. Ele assumiu o cargo em 17 de abril, e disse que sugeriu as alterações ao ministro Marcos Pontes.
Preocupação
Antes da retificação da portaria, o anúncio da pré-chamada PIBIC já tinha gerado uma enxurrada de críticas e notas de preocupação por parte de entidades científicas e acadêmicas, além da nota dos pró-reitores de Pesquisa da USP, Unicamp e Unesp.
“Essa determinação de aderência às áreas de tecnologias prioritárias afunila a cadeia de formação dos jovens desde o início”, declararam a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Academia Brasileira de Ciências (ABC), em uma carta conjunta divulgada no mesmo dia; entre outras manifestações. As entidades consideraram que as alterações feitas na Portaria 1.122 não resolvem completamente o problema, pois não estabelecem programas prioritários de apoio à pesquisa básica e às ciências sociais e humanas.
A exclusão dessas áreas do edital poderia ser considerada até inconstitucional, segundo a presidente da Comissão de Pesquisa da Faculdade de Direito da USP, Nina Ranieri. “É nas Humanidades que se constrói o pensamento filosófico e político que propiciou o Estado de Direito, a separação de poderes, os direitos humanos, o regime democrático, conquistas civilizatórias nas quais o Direito tem papel fundamental”, pontuou ela, em artigo publicado no site do jornal O Estado de S. Paulo, em 8 de maio.
O texto final da chamada, porém, desfaz a noção de obrigatoriedade e inclui a vinculação às Áreas Prioritária como um de sete critérios a serem considerados na escolha de projetos para recebimento das bolsas — com peso 2, numa escala que vai de 1 a 3.
Três itens da chamada que se referem especificamente a isso são:
- O processo seletivo interno poderá contemplar projetos de pesquisa em todas as áreas do conhecimento.
- Os projetos de pesquisa devem, preferencialmente, apresentar grau de aderência a uma das Áreas Prioritárias do MCTIC (…) entre as quais se incluem, diante de sua característica essencial e transversal, projetos de pesquisa básica, humanidades e ciências sociais que contribuam para o desenvolvimento cientifico e tecnológico, sendo este grau de aderência um dos critérios de avaliação das propostas.
- O processo seletivo interno deve assegurar, ainda, que parte das bolsas sejam destinadas a projetos de ciência básica e fundamental, especialmente em interação com a pós-graduação e grupos ou redes de pesquisa.
“Melhor assim, pois eu já estava preparada para uma boa briga”, disse Nina ao Jornal da USP, após ver a redação final da chamada. Segundo ela, não faltaria “munição” jurídica para requerer a impugnação do edital, caso as Humanidades e a pesquisa básica tivessem sido excluídas do programa. “Acho que foi um recuo de bom senso”, disse. “Não tenho dúvidas de que seria uma medida ilegal e inconstitucional.”