Ser dono da maior biodiversidade do planeta é uma enorme vantagem do Brasil na produção de fármacos. Mas não é suficiente. Para o cientista Glaucius Oliva, é preciso ter um programa de Estado, mobilizador, uma espécie de “Proálcool” dos remédios.
Graduado em engenharia elétrica (1981), com mestrado em física na Universidade de São Paulo (USP, em 1983), Glaucius Oliva se especializou em Cristalografia, o estudo das estruturas de proteínas, que foi o tema de seu doutorado na Universidade de Londres (1988). Professor no Instituto de Física do campus de São Carlos da USP, ele também dirige o Centro de Pesquisa e Inovação em Biodiversidade e Fármacos (CIBFar), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela Fapesp. Oliva foi também presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) entre 2011 e 2014.
Sua pesquisa é centrada em biologia estrutural, química medicinal aplicada a planejamento e desenvolvimento de novos fármacos. Nessa entrevista exclusiva ao Jornal da Ciência, Glaucius fala das oportunidades que o Brasil está perdendo ao tratar a Floresta Amazônica como um custo e um empecilho, não como investimento, e do desenvolvimento da indústria farmacêutica nacional. Para ele, o pouco que o Brasil conseguiu conquistar até agora está ameaçado com a política anticiência do atual governo.
Jornal da Ciência – O senhor tem liderado projetos em parceria com empresas farmacêuticas nacionais. Como é essa colaboração?
Glaucius Oliva – A indústria farmacêutica nacional tem evoluído ao longo do tempo. De uma condição marginal, apenas complementar ao sistema internacional de medicamentos de 20 ou 30 anos atrás, avançaram muito na qualidade da produção, porém ainda utilizando princípios ativos e materiais quase totalmente importados. Houve uma mudança da legislação, criaram-se os medicamentos genéricos, mudanças que limparam um pouco o mercado, só ficaram as indústrias capazes de fazer essa transformação. Essas indústrias cresceram muito na qualidade da produção de medicamentos, porém utilizando ainda princípios ativos e materiais na sua quase totalidade importados. Essa é uma área na qual a inovação requer muito investimento, mas também traz muito retorno porque a cada novo medicamento desenvolvido, a cada “blockbuster”, cria-se um mercado que é gigantesco.
JC – O que é um remédio “blockbuster”? Dê um exemplo.
GO – Os tratamentos de colesterol, por exemplo. A atorvastatina, quando foi lançada, passou a vender US$ 2 a 3 bilhões por ano. Novos medicamentos para o tratamento de câncer, como os anticorpos monoclonais, também bateram mais de um bilhão de dólares por ano. Essa é uma área na qual a indústria nacional está progressivamente buscando participar.
JC – Existe algum “blockbuster” brasileiro?
GO – Não. No Brasil ainda lutamos para ter algum medicamento que tenha sido descoberto, inventado e desenvolvido inteiramente no Brasil. Nós temos uma história muito limitada nesse sentido. Temos um medicamento que está no mercado para tratamento de inflamação, desenvolvido pela Aché, em colaboração com um colega nosso, o cientista brasileiro João Batista Calixto, à base de extrato de plantas, certificado e padronizado, na forma de pomada ou spray que pode ser usado como antiinflamatório.
JC – Foi desenvolvido aqui, com plantas brasileiras?
GO – Sim, com plantas brasileiras.
JC – Por que é importante o uso de produtos naturais?
GO – Um dos maiores desafios de qualquer fármaco não é apenas produzir o efeito desejado no local onde tem que atuar. Por exemplo, se alguém tem uma infecção, digamos no pulmão, e toma um medicamento oral, um antibiótico, esse medicamento tem todo um trajeto – passar pelo estômago, atravessar as paredes do intestino, chegar à corrente sanguínea, não grudar em nada que esteja em volta (tipo proteínas, outras células, anticorpos, etc.), passar pelo fígado ou pelos rins sem ser eliminado (o que normalmente acontece), ir para o pulmão, sair da corrente sanguínea, atravessar os vasos do pulmão e eventualmente chegar às bactérias que estão causando aquela infecção. Então, o transporte, a maneira de atravessar essas barreiras biológicas é uma das coisas mais difíceis do desenvolvimento de um fármaco. Os produtos naturais são moléculas que as plantas e/ ou outros organismos produzem para se defender contra insetos, fungos e outros predadores, isso foi evolução de bilhões de anos. . Ela tem que desenvolver um conjunto de moléculas que ajudem a se proteger contra os fungos, as bactérias, vírus que a atacam, isso foi evolução de bilhões de anos. Então você tem na biodiversidade moléculas que foram progressivamente sendo selecionadas, ou seja, a produção dessas moléculas por via enzimáticas e outros organismos vivos, para interagir, atravessar membranas e chegar aos seus alvos. Nos inspiramos nessas moléculas para produzir fármacos.
JC – Temos ouvido cientistas e especialistas em biodiversidade dizer que o Brasil aproveita pouco do potencial de sua biodiversidade como matéria prima. Por que isso acontece?
GO – Achar uma molécula que mate uma bactéria não é assim tão difícil. Difícil é ‘domesticar’, fazer as modificações adequadas nessa molécula para que ela consiga fazer esse caminho que chamamos de farmacocinética (cinética = movimento), o movimento de atravessar diferentes fases dentro do organismo até chegar ao seu alvo biológico específico.
JC – Quais são as dificuldades nesse caminho?
GO – Identificar, fazer as modificações necessárias para que elas se adaptem e sejam adequadas para a biofase humana. Provar a não toxicidade – tudo pode ser tóxico quando você aumenta a dose. Tudo isso tem que ser demonstrado em modelos de laboratório, incluindo animais.
JC – Pode dar um exemplo de alguma substância que tenha sido localizada no Brasil, na floresta, e que tenha passado por esse processo?
GO – O caso mais clássico é a história de um ex-presidente da SBPC, o professor Sergio Ferreira. Na década de 1960, quando era aluno do professor Mauricio Rocha e Silva, em Ribeirão Preto, estudando venenos de cobras, percebeu que quando ratinhos ou pequenos mamíferos eram picados por uma jararaca, o primeiro efeito muito rápido era uma queda brutal da pressão arterial do ratinho. Eles começaram a separar, identificar os componentes do veneno, até que encontraram a bradicinina e seu fator de potenciação, elementos que produziam esse forte efeito hipotensor. Na época, a expectativa de vida média da população mundial era cerca de 55 anos de idade porque a grande maioria das pessoas morria por doenças coronarianas, infarto, porque não havia tratamento para pressão arterial.
JC – E o que aconteceu com esse estudo?
GO – O Sérgio foi para o laboratório de um colaborador no Reino Unido, o professor John Robert Vane (1927-2004 um dos ganhadores do Nobel de Medicina de 1982), que por sua vez tinha colaboração com uma indústria britânica, tentando descobrir moléculas que fossem inibidoras de enzimas envolvidas na regulação da pressão arterial.
JC – Aqui não havia laboratório adequado para essa pesquisa?
GO – Não, aqui não se tinha nem como identificar exatamente o que era aquele componente. O que eles fizeram foi produzir modificações, pegaram a parte central da bradicinina, os aminoácidos que a compunham, modificaram alguns átomos e foi assim que chegaram ao primeiro medicamento para tratamento da hipertensão. Naturalmente não era o veneno da cobra, mas foi feito a partir dele. E isso não resultou nenhum royalty, nenhuma proteção para os autores brasileiros, inclusive o Vane veio a ganhar o Prêmio Nobel depois, por descobrir exatamente qual era a enzima dos compostos que estavam atuando. E os brasileiros não.
JC – Isso mudou? Hoje temos mais estrutura?
GO – Claro, hoje o Brasil está completamente diferente. Temos o Cepid de Fármacos, da Fapesp, que eu coordeno e no qual reunimos 20 pesquisadores altamente produtivos aqui no estado de São Paulo, em todas as instituições públicas (USP, Unicamp, Unesp, UFSCar, Unifesp). É uma rede que já tem vários anos de atuação, com projetos em doenças infecciosas como malária, doença de Chagas, leishmaniose e doenças virais. São projetos em parceria com organizações internacionais sem fins lucrativas, financiadas por grandes fundos de caridade (charity funds), o Medicines for Malaria Venture e a Iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDI na sigla em inglês).
JC – Com estes avanços, quais as grandes dificuldades hoje para que se alcance um estágio mais avançado no desenvolvimento de medicamentos totalmente brasileiro?
GO – Acho que o maior problema da ciência brasileira é a continuidade de apoio, que permita fazer planejamento de médio e longo prazo. Projetos de desenvolvimento de fármacos são de dez, doze, quinze anos. As indústrias do setor investem de 15 a 20% do faturamento em Pesquisa & Desenvolvimento (P&D). Recentemente, em uma missão junto com a Fapesp, visitamos a empresa britânica Glaxo SmithKline (GSK), que investe, por ano, de 3,5 a 4 bilhões de libras esterlinas em P&D. Ou seja, estamos falando aqui de R$ 20 bilhões investidos por apenas uma empresa. E nós estamos aqui, há meses, brigando por causa de R$ 330 milhões (valor do déficit para o financiamento de bolsas de estudos do CNPq para 2019). O orçamento global do Ministério da Ciência e Tecnologia é de R$ 2,9 bilhões.
JC – O que impede as empresas brasileiras de investir em P&D de fármacos?
GO – Elas estão crescentemente investindo. Mas, primeiro, elas não têm o capital financeiro de uma GSK – que, aliás, investe aquele valor para lançar um medicamento por ano, quando muito. Também não temos capital humano desenvolvido nessa área. Há inúmeras pesquisas no Brasil, mas por não termos uma indústria de fármacos, com todas as detalhadíssimas etapas para verificar a segurança do produto, isso não é ensinado nas escolas. Uma faculdade de farmacêutica hoje não ensina como se desenvolve um remédio, mas sim como se comercializa numa farmácia, os efeitos colaterais, como aplicar a dose, uma coisa mais prática. Isso na verdade são conhecimentos e metodologias que você desenvolve fundamentalmente no âmbito das indústrias. Então recursos humanos, financeiros, são os limitadores. Você tem de fato hoje empresas farmacêuticas como EMS, Cristália, Eurofarma, Libbs, Biolab, são laboratórios que já têm centros de P&D, contratam mestres e doutores, investem em parcerias com as universidades, estão criando seus próprios centros e este é um processo crescente. O que precisamos é mais apoio.
JC – Que tipo de apoio?
GO – Ter um centro como, por exemplo, o da indústria canavieira, que é financiada pelo governo para produzir espécies adequadas. Precisávamos ter uma estrutura focada, um programa nacional para o desenvolvimento de novos fármacos, coisa que a gente nunca teve, que criasse essa relação, essa rede. Não se consegue ter no mesmo laboratório, com um único cientista, todas essas etapas envolvidas no fármaco. São necessários biólogos, químicos, farmacêuticos e farmacólogos. E não é um biólogo só, tem que ter o que entenda daquela proteína, outro que entenda da biologia molecular, outro que entenda do ratinho, do transporte através de membranas. Ou seja, são equipes multidisciplinares e isso a gente consegue se tiver um grande programa nacional de desenvolvimento de fármacos. Até por ser uma atividade de risco – e também de alto retorno financeiro e social -, o apoio com o investimento de dinheiro público é justificado.
JC – Nesse contexto, como você vê o desmonte do CNPq, inclusive a proposta que circula pelos corredores dos ministérios, de juntar as agências de financiamento à pesquisa científica como CNPq e Finep?
GO – O grande problema que a gente observa na ciência brasileira é o voo de galinha. Essa instabilidade, insegurança, essa incapacidade nossa de planejamento. A situação do CNPq é gravíssima, uma instituição com quase 70 anos de história, que está na raiz de quase todos os grandes desenvolvimentos do País, dos grandes projetos na agricultura, na indústria, na saúde, que resultaram daquele apoio. Foi um sistema nacional de Ciência e Tecnologia que criamos e construímos ao longo da história e que estamos agora vendo aos poucos, nos últimos anos, ser desmontado.
JC – Pensando do ponto de vista internacional, como a comunidade científica vê o que se passa no Brasil? Como isso afeta a imagem do país lá fora.
GO – Horrível. A gente, que tem muita colaboração internacional, recebe quase todos os dias mensagens de colaboradores, amigos, cientistas – e as principais revistas internacionais têm repercutido isso – estupefatos com essas situações. A ciência brasileira com seu crescimento criou uma reputação internacional muito importante. Os estudantes brasileiros que saem para fazer um doutorado fora são sempre muito bem avaliados por seus orientadores. Todos os cientistas internacionais que vêm ao Brasil visitam nossos laboratórios, sentem a dedicação, a motivação, a criatividade dos cientistas brasileiros. Então nossos colegas (no exterior) veem com muita consternação essa situação. Muitos estão recebendo estudantes brasileiros agora e vamos observar essa fuga de talentos.
JC – Ainda no âmbito das relações internacionais, como funciona o financiamento da ciência em outros países e o que poderia servir de modelo ou inspiração para ajudar o Brasil?
GO – Em muitos países, a crise econômica afeta o acesso a recursos para financiamento da pesquisa, mas de maneira estruturada, com os governantes entendendo e valorizando e percebendo que é através de investimentos em CT&I que você consegue sair da crise. Boa parte dos países, quando entram em crise econômica, entende que a melhor forma de realavancar a economia é investindo em CT&I. É assim que a China está saindo de um mundo no qual, vinte anos atrás, estava abaixo do Brasil do ponto de vista econômico e hoje caminha para ser a primeira economia mundial, estritamente baseado em CT&I. Investe em formação maciça de gente qualificada, em todas as áreas do conhecimento, manda pesquisadores para o exterior em grande quantidade, cria condições para que as pessoas que foram para fora voltem para suas instituições. Percebe que esse investimento não é privilégio para as instituições de pesquisa, ao contrário, é o que muda a qualidade de vida das pessoas. Essa é a compreensão que o mundo em geral tem.
JC – Como vê esse sentimento anticiência que hoje atinge a sociedade, não só no Brasil, mas em vários países desenvolvidos também.
GO – É evidente que estamos observando, em vários países, um recrudescimento de um pensamento anticientífico. Mas naqueles países observa-se uma massa crítica do que se chama “estado profundo”, ou seja, os quadros que tocam a estrutura do governo são tais que não se deixa essas crenças permearem as instâncias de governo. As instituições são sólidas e independentes o bastante para conseguir segurar a onda, e isso acontece tanto nos órgãos científicos quanto em outras instâncias da sociedade, por exemplo, nos Estados Unidos. Há os que acreditam em Terra Plana, mas também há o Dia Nacional da Ciência, que coloca centenas de milhares de pessoas comuns na rua, coisa que não estávamos acostumados aqui no Brasil. Estamos começando a ver que isso também pode acontecer, foi uma surpresa para todos nós o abaixo assinado a favor do CNPq.
JC – Que atingiu quase um milhão de assinaturas.
GO – Isso mostra que a nossa sociedade, quando profundamente cutucada em temas que lhe são caros, vai reagir. Temos muita esperança de que isso aconteça.
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Janes Rocha – Jornal da Ciência