Brasil só terá soberania nacional quando tiver a independência de seus dados

Para especialistas, Brasil tem urgência em desenvolver sistemas para armazenamento das informações públicas, além da regulação das redes sociais

As recentes declarações do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e a implementação de uma nova política tarifária no intuito de influenciar o poder Judiciário brasileiro abriram reflexões sobre a soberania nacional do Brasil. Para especialistas, além da defesa das instituições do País e de sua autonomia, é importante enxergar o que essa soberania nacional significa na prática – o que envolve, também, soberania digital.

“A ideia de soberania digital não é só de fortalecer o Estado, ela é uma ideia de que a nossa sociedade tem que ter autonomia para decidir que tecnologias desenvolver, que tecnologias usar e em seu benefício. É reduzir a dependência externa, principalmente das big techs norte-americanas, e tentar também manter a soberania dos dados. Em especial, eu destaco muito a questão de lutar para o Brasil ter uma política de dados soberana, ou seja, conseguir manter os dados da nossa população sob o controle dela”, explica Sérgio Amadeu, professor da Universidade Federal do ABC.

Amadeu é um dos colaboradores da Rede pela Soberania Digital, uma articulação da sociedade civil, com participação de universidades, sindicatos, parlamentares, entre outros públicos, que atua especificamente na construção e desenvolvimento das políticas digitais do País.

“Essa ideia de soberania digital e de dados foi muito inspirada na ideia de soberania alimentar, que surgiu nos anos 1990 pelo movimento campesino. O movimento campesino luta pela terra, pela reforma agrária, mas também quer ter soberania alimentar. O que significa isso? Ele quer decidir o que plantar e o que comer, sem a dependência desses grandes grupos que controlam os alimentos.”

Com as recentes ações do governo estadunidense, a Rede pela Soberania Digital elaborou uma carta pública, destinada ao presidente Lula, reforçando a importância de um Plano Digital para a Soberania Nacional.

“Estamos falando do domínio brutal e predatório das big techs — um conglomerado global que avança sobre os territórios, os dados, os afetos e a democracia. Uma nova indústria que opera sem transparência, sem regulação e sem qualquer compromisso com o bem comum ou com o povo brasileiro. O que antes se vendia como inovação e empreendedorismo, hoje se revela como projeto de dominação, manipulação e concentração de capital e de poder”, afirma o documento.

A preocupação com os dados brasileiros não parte somente da sociedade civil. Durante a sua participação na 77ª Reunião Anual da SBPC, realizada de 13 a 19 de julho na Universidade Federal Rural de Pernambuco, o ministro da Previdência Social, Wolney Queiroz, destacou a urgência de o País ter um sistema nacional para a gestão da informação.

“Os dados brasileiros, como os do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e da Segurança Nacional, estão em big techs e nuvens que não são nossas e que sequer estão sediadas aqui no Brasil. Isso dá margem a ataques mais danosos do que os com bombas.”

A Soberania Digital aborda diversas frentes. Como já citada, uma delas é a construção de nuvens nacionais para o armazenamento dos dados da população. Esta pauta já está presente no Plano Brasileiro de Inteligência Artificial, o PBIA, no qual há a defesa da destinação de recursos para a construção da chamada “nuvem soberana”.

Outro ponto envolve a regularização das plataformas, impactando diretamente as redes sociais. “Porque as plataformas atuam, notoriamente, contra uma série de direitos, apesar delas afirmarem defender a liberdade. Na verdade, elas defendem grupos econômicos, posições espetaculares que monetizam as atenções, modulam as atenções e dão, na verdade, muito dinheiro para elas”, complementa Sérgio Amadeu.

Professor da Universidade Federal da Bahia e integrante da Rede pela Soberania Digital, Nelson Pretto lista mais algumas iniciativas necessárias para que o Brasil obtenha a sua autonomia na área. Entre elas, que ocorram debates mais amplos sobre políticas públicas para a construção de infraestruturas tecnológicas no Brasil. Outro ponto é que os governos passem a utilizar mais os softwares livres, e não plataformas criadas por grandes empresas.

“O Brasil tem uma experiência significativa com o portal Software Público Brasileiro, que fez 20 anos agora e foi celebrado com vários debates e demonstrações sobre as diversas soluções disponíveis. Uma delas, o iEducar, já é utilizado em algumas escolas públicas de redes municipais e em escolas particulares, sendo uma solução muito sólida para a gestão das instituições da educação”, detalha.

Pretto defende ainda a valorização da mão-de-obra nacional. “Tem outro aspecto que me parece muito importante, que diz respeito ao papel das instituições de ensino superior público, incluindo aí as universidades federais, as universidades estaduais e os institutos federais. Isso tudo se configura num parque tecnológico fenomenal de grande capilaridade pelo País, com uma massa crítica de profissionais para desenvolver Ciência, Tecnologia e Inovação e podendo dar ao Brasil a soberania digital em todas essas frentes que estamos aqui nos referindo.”

A Rede pela Soberania Digital está reunindo assinaturas em sua Carta ao Presidente Lula e aguarda também uma agenda do Poder Executivo para apresentar ideias ao Plano Digital. As assinaturas podem ser realizadas diretamente no site da iniciativa: https://soberania.digital/. “Não há soberania nacional sem soberania digital”, alerta o professor Sérgio Amadeu.

Presidente da SBPC, Francilene Garcia defende que políticas e ações sejam convertidas neste tema. “A SBPC defende que a transformação digital do Brasil seja liderada por políticas públicas, ciência aberta, dados soberanos, tecnologias livres e pela capacidade nacional de formar quadros e desenvolver soluções próprias. É preciso interromper a captura das instituições públicas por interesses privados globais, rever contratos que ameaçam a soberania nacional e investir em uma infraestrutura digital pública, segura e interoperável. A soberania digital exige coordenação de Estado, articulação com a sociedade civil e protagonismo das universidades e centros de pesquisa. Estamos prontos para contribuir com evidências, propostas e articulações que fortaleçam esse caminho”, conclui.

Rafael Revadam – Jornal da Ciência