No dia 04 de janeiro de 2024, Carolina Martuscelli Bori completaria 100 anos. Professora da Universidade de São Paulo (USP) e primeira presidente mulher da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Carolina Bori foi movida por inquietações. Descobriu a psicologia enquanto cursava pedagogia na USP, foi para os Estados Unidos aprender sobre uma ciência que se apoiava menos em livros e mais no contato com pessoas e, ao voltar, percebeu problemas estruturais do Brasil: lutou pela formação e por melhor remuneração de professores, pela regulamentação da Psicologia como ensino e profissão e defendeu que a ciência só é relevante se ela chegar às pessoas.
“A ciência gera tanto conhecimento quanto desenvolvimento, no entanto, eles ficam restritos e não são usados pela maioria da população. A minha preocupação com a divulgação é essa: é preciso melhorar a vida das pessoas, não apenas em termos de tornar os produtos gerados pela ciência disponíveis, mas também torná-las mais críticas em relação ao mundo em que vivem. Para isso, é preciso informá-las, para que elas entendam o que é a ciência e a própria transformação que ela está promovendo no mundo atual. Agora, isto ainda está distante de acontecer. O fato de uma parcela da população viver totalmente sem informação e distante do conhecimento científico é, para mim, um absurdo”, disse Bori, em entrevista à revista Ciência Hoje, em 1998.
Carolina Bori nasceu em São Paulo, em 1924. Filha de pai italiano e de mãe brasileira, ela dividiu a infância em casa com seus cinco irmãos. Sempre apaixonada por estudos, começou a frequentar a escola com seis anos e, aos 11, foi para o ginásio, o atual ensino médio. O contato com o ensino básico foi essencial para escolher a área que desejaria atuar no futuro: a educação.
No início da década de 1940, entrou no curso de Pedagogia da USP, onde se formou em 1947. “Naquela época não existia essa grande disputa por vagas e, na [área da] educação, não existia nada além do curso de Pedagogia”, explicou.
Mas foi no curso de pedagogia que Carolina Bori conheceu sua segunda paixão, a psicologia. “A psicologia foi o campo que me pareceu mais seguro, mais ligado ao conhecimento científico, diferente de outras áreas, que eram muito filosóficas.”
No período em que cursava a faculdade, Bori viu chegar na Universidade de São Paulo a professora Annita Cabral. Segundo os relatos de Bori, Cabral mudaria o ensino de Psicologia na instituição, antes dominado por um professor francês que via a disciplina como um campo filosófico.
Com a nova docente, a Psicologia passou a ser ensinada como ciência. Cabral propunha uma revisão de conhecimentos e, principalmente, discussões individualizadas sobre as faculdades mentais, como a memória e a percepção. Foi com Cabral também que a universidade paulista começou a discutir os estudos experimentais na Psicologia.
Quando chegou ao último ano da graduação, Carolina Bori foi convidada por Annita Cabral para ser sua primeira assistente na cadeira de Psicologia da USP. Esse cargo lhe renderia o mestrado na New School for Social Research, em Nova Iorque, defendido em 1952.
“A professora Annita havia feito seu doutorado na New School e, como sua primeira assistente, fui encaminhada para lá. O catedrático tinha essa grande missão de orientar o seu assistente, escolher o lugar em que ele pudesse se aperfeiçoar e que atendesse ao interesse da cadeira.”
No mestrado, Carolina Bori estudou os experimentos realizados pelo psicólogo alemão Kurt Lewin (1890-1947) e seus discípulos sobre motivação, confrontando-os com teorias da época. Ao concluir o mestrado, retornou à USP e à orientação da professora Annita Cabral, para a realização do doutorado, título obtido em 1954.
“No doutorado, dei sequência ao tema do mestrado. Aproveitei para expor a teoria de motivação, utilizando dados de pesquisas de campo que fiz nos Estados Unidos. Eu achava que tinha que incluir na dissertação de mestrado pesquisa de campo, mas minha orientadora, a professora Tamara Dembo, julgou que apenas a elaboração teórica era suficiente. Quando voltei ao Brasil, utilizei os dados para a tese de doutorado que defendi na USP.”
Com a defesa do doutorado, Carolina Bori começou a se engajar na criação do curso de Psicologia na USP, um movimento encabeçado por sua orientadora, Cabral, que teve sucesso em 1958. Bori, inclusive, passou a integrar o corpo docente da nova formação curricular.
O sucesso na implementação do curso de Psicologia na USP fez com que Carolina Bori se envolvesse na sua criação em outras instituições: no campus de Rio Claro da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp Rio Claro), na Universidade de Brasília (UnB) e na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Mas a instalação de cursos não era o suficiente, era necessária a consolidação da Psicologia como profissão no País.
Foi nos primeiros anos da década de 1960 que Carolina Bori começou a atuar pela regulação da Psicologia no Brasil. Primeiramente, à frente da Associação Brasileira de Psicologia, e depois na Sociedade de Psicologia de São Paulo.
Bori é um dos principais nomes responsáveis pela articulação direta com políticos para a aprovação da lei nº 4.119/62, que determina o currículo mínimo para a formação em Psicologia e regulamenta a profissão no Brasil. A regulação também lhe rendeu o registro nº 1 no conselho da categoria.
Da luta pela Psicologia à luta pela Ciência
O engajamento político durante o processo de regulação da Psicologia no Brasil impulsionou Carolina Bori a lutar pela estruturação de um sistema nacional de ciência no País. Assim, conheceu uma das maiores instituições ativistas que lutavam por essa causa, a SBPC.
“Comecei a participar da SBPC em 1969, como membro do conselho dessa sociedade. Eu achava que a Psicologia não podia ficar separada das demais ciências, e precisava estabelecer um diálogo com elas. De certa forma minha entrada na SBPC foi também a aceitação da Psicologia pela comunidade científica, que estava inclusive curiosa em relação ao conteúdo da psicologia e à ajuda que esta poderia dar na compreensão da sociedade.”
Na SBPC, Carolina Bori foi um dos principais nomes a defender que a comunidade científica passasse a olhar para além da estrutura de ciência do País, se envolvendo, assim, com grandes questões políticas e sociais, como a própria restauração da democracia.
“Eu lembro que, em 1976, em Brasília, Carolina Bori defendeu com muito rigor a possibilidade de apresentar na Assembleia Legislativa moções a favor da redemocratização e de uma nova Constituinte. E foi por conta de uma dessas moções que, no ano seguinte, o Governo Federal não apoiou a realização da Reunião Anual da SBPC em Fortaleza”, contou o presidente de honra Ennio Candotti, falecido em 2023.
Em 1987, Bori foi eleita a primeira presidente mulher da SBPC, cargo que ocupou até o ano de 1989. Em seu mandato, intensificou a posição da SBPC para se articular na construção da atual Constituição Federal, promulgada em 1988.
“Carolina foi presidente da SBPC durante anos decisivos da vida democrática do País. Na Constituinte de 1987-88, ela era a nossa presidente e defendeu as causas indígenas, da mulher e também do meio ambiente, questão que era nova no cenário da comunidade científica, e defendeu todas as causas com bastante firmeza”, complementou Candotti,
Para Bori, a proposta elaborada pela SBPC para a Constituinte não se restringia a levantar pontos apenas para o desenvolvimento científico e tecnológico, mas para o desenvolvimento social da nação. “Estamos na expectativa de ação, urgente, imediata, no sentido de que nossas propostas se concretizem na nova Constituição como uma contribuição da comunidade acadêmica para a criação de um país moderno, um país novo, um país que faça valer os direitos das pessoas que vivem nele”, disse em julho de 1987, durante a abertura da 39ª Reunião Anual da SBPC, realizada na UnB.
Em seus últimos anos de vida, Carolina Bori intensificou o olhar à educação. Para ela, o Brasil não valorizava os professores e não conseguia enxergar como a precariedade na relação com os educadores afeta diretamente a construção de uma sociedade – pontos que podem ser levantados até nos dias de hoje.
“Existe um problema crucial que é a formação de professores. Eu acho que os professores ganham pouco e não há materiais com conhecimentos atualizados para essas pessoas. Não sei quantos relatórios sobre isso eu li: o do Banco Mundial, o da Unesco, e esses relatórios mostram que nós não estamos acertando na qualificação desses profissionais. À medida que essas dificuldades aparecem na formação de professores, a população vai ficando para trás. A população nasce, cresce, fica velha e não sabe nada”, disse em 1999, na entrevista para a revista Ciência Hoje.
Carolina Bori morreu no dia 5 de outubro de 2004, aos 80 anos. Do seu legado, é possível encontrar leis, normas, cursos e, principalmente, uma série de medidas pela difusão da ciência na sociedade. Carolina Bori é nome da plataforma nacional de revalidação dos diplomas internacionais, também de uma série de prédios de universidades públicas, como na UFSCar e em Brasília, além de uma agência de divulgação científica e, especialmente, do um prêmio criado pela SBPC, em 12019, para valorizar meninas e mulheres que estão revolucionando a ciência nacional, assim como ela.
Em um de seus últimos discursos públicos, na 50ª Reunião Anual da SBPC, em Brasília, no ano 2000, Carolina Bori aproveitou que seria homenageada para homenagear um dos seus ídolos na ciência, o educador e escritor Anísio Teixeira:
“Voltando do exterior, após o mestrado, eu participei pela primeira vez da SBPC. Lembro-me que a Reunião Anual estava sendo realizada em uma universidade. Recife? Eu estava numa sala de aula para apresentar um trabalho via sessão oral diante de uma plateia acomodada em carteiras escolares. Sem muita cerimônia descrevi sobre ‘experimentação em Psicologia’. Como assistente da Universidade de São Paulo, eu havia saído do País para estudar o que se denominava Psicologia Experimental. Terminada a apresentação de 10 minutos, a primeira pergunta que me foi feita foi por um senhor sentado na primeira fileira. ‘Professora, será possível experimentar em Psicologia?’ E continuou: ‘como é que se pode medir o psicológico?’. Minhas respostas não foram consideradas suficientes e a discussão se ampliou. Terminada a sessão, fiquei sabendo que havia discutido com Anísio Teixeira! Aprendi com ele que a educação não é privilégio, é um direito de todas as pessoas e um dever do Estado. Conhecia-o pelos livros, e agora pessoalmente. Conto esse episódio mais para os jovens e para os que estão se iniciando nas Reuniões Anuais da SBPC. Participem das atividades programadas, conheçam os cientistas e pesquisadores e aprendam sobre assuntos que muito poucas escolas ou universidades estão estudando. É uma oportunidade rara.”
Esta reportagem foi produzida com base em áudios, matérias e demais documentos textuais que compõem o Memorial Carolina Bori. Criado pela SBPC, o Memorial dispõe de um acervo digitalizado e de acesso público para comemorar o centenário da pesquisadora. Para conferir, basta acessar o site oficial: https://memorialcarolinabori.sbpcnet.org.br/.
Rafael Revadam – Jornal da Ciência