Carta de Manaus – “A Floresta Pede Ar”

“Neste mês de maio de 2020, Manaus se transformou em símbolo de fracasso diante do colapso do sistema de saúde causado pela pandemia que assola todos os continentes da Terra”, escrevem a diretora da SBPC, Vera Maria Fonseca de Almeida-Val, o secretário-regional da SBPC-AM, Sanderson Castro Soares de Oliveira, e o secretário-regional adjunto da SBPC-AM, Pedro Rapozo

Leia abaixo a carta:

Uma floresta pujante!

Uma floresta responsável pela manutenção do clima da Terra!

Uma floresta que mantém o regime de chuvas para que o Brasil mantenha sua agricultura e pecuária garantindo a produção de alimentos.

Uma floresta que esconde, em suas entranhas, as mais diversas formas de vida existentes no planeta!

Uma floresta que abriga mais de 20 milhões de seres humanos das mais variadas etnias.

E são as Ciências que desvendam todas essas propriedades com observações e métodos cientificamente embasados.

 

A Amazônia brasileira foi, por muitos séculos, abandonada à sua própria sorte, vista apenas como um ponto verde no mapa e sempre atraiu a atenção do resto do mundo como um tesouro a ser desvendado.  O Brasil, na contramão da história, perseverou vários ciclos de exploração na Amazônia, como a exploração das drogas do sertão, implantou o ciclo da borracha, o qual reputam como o auge da colonização e imposição de costumes europeus, seguida da exploração madeireira e, mais recentemente, desmatamento para mineração de metais e petróleo. Várias regiões vêm sendo, também, pressionadas pela migração da atividade agropecuária por grandes latifundiários em busca de enriquecimento cada vez maior. Hoje, o Brasil consegue enxergar a região, após se apropriar de conhecimento de seus potenciais por meio de cientistas estrangeiros, em um primeiro momento, e depois de várias tentativas de colonização e catequização de seu povo nativo, as quais causaram extermínio sistemático da maior parte da população nativa, ineptos que foram para habitá-la ou compreendê-la.

A maior bacia de água doce do mundo abriga o maior rio do Mundo. De complexa formação, permeia essa floresta e tem grande complexidade e propriedades, abrigando uma diversidade tão grande como a que se observa em terra firme. Essa bacia, além de permitir ser interdependente da floresta, abriga rios que transportam interesses econômicos, dão vazão a produtos de exportação brasileiros, particularmente a soja, enquanto “vêm” crescer invasões de terras protegidas (reservas ambientais e indígenas) que promovem destruição ambiental, social e cultural, sugam suas terras e impõem doenças e mortalidade aos povos indígenas em suas áreas tradicionalmente ocupadas, as quais respeitam e fazem delas uso sustentável. Ao invés de aprendermos com seus conhecimentos tradicionais e por eles recompensá-los, subtraímos desses povos o que há de mais sagrado, seu direito de viver seus costumes, sua cultura e de manterem seu solo protegido.

Em meio à floresta, brotam algumas metrópoles e também pequenas cidades, as quais são centros importantes para o desenvolvimento da região, muito embora tragam problemas ao meio ambiente em seu entorno, pois formaram, em muitos casos, uma população urbana não mais ligada diretamente às práticas agrícolas e à pesca sustentáveis. A centralização obriga o povo do interior (ribeirinhos, indígenas, quilombolas e até o homem urbano do interior) a buscar conhecimento, educação, saúde, emprego nessas cidades sem que possa ter acesso aos bens e serviços (basicamente saúde e educação) em seus locais de morada, bens e serviços aos quais têm direito por leis garantidas pela constituição “cidadã”, promulgada em 1988 pelo Congresso Nacional Brasileiro.

No Amazonas, o maior estado brasileiro, também o detentor da porção mais conservada da floresta, ergue-se, em frente ao Rio Negro, exatamente no local onde o rio se une ao Solimões para formar o Amazonas, sua capital Manaus. A maior metrópole da região concentra mais de dois milhões de habitantes fixos (pouco mais da metade da população do estado) e recebe grande parte da demanda por educação superior e por saúde do interior do estado e de outros locais da região. Cabe registrar que a cidade ainda recebe estudantes de todo o país, principalmente em seus cursos de pós-graduação voltados ao estudo da biodiversidade amazônica.

Em Manaus, o complexo industrial criado para atrair riquezas e oferecer condições de trabalho aos habitantes da cidade e da região é responsável por colocar Manaus como a sétima capital a contribuir com o PIB nacional, gerando riqueza para o país. A Zona Franca de Manaus atraiu e atrai empresários e grandes indústrias do país e do mundo por representar um parque de desenvolvimento tecnológico onde há isenção de impostos para aquelas empresas que se fixam e produzem ou finalizam seus produtos nela. Tida como uma indústria ‘limpa’, o modelo da Zona Franca de Manaus é considerado uma das possibilidades de desenvolvimento sustentável da região. Por outro lado, há muitas dúvidas se este modelo é o melhor para a região, pois concentra riqueza para poucos e atrai muitos empregados para uma cidade cada vez maior e mais insustentável do ponto de vista ambiental e de saúde.

Neste mês de maio de 2020, Manaus se transformou em símbolo de fracasso diante do colapso do sistema de saúde causado pela pandemia que assola todos os continentes da Terra! E chora por isso! Manaus, hoje, é um dos mais assustadores símbolos do fracasso do sistema de saúde brasileiro. Vilipendiada nos últimos governos estaduais, a saúde do Amazonas é heroicamente mantida por profissionais da saúde e pelo sistema de Educação Superior (Universidades Federal e Estadual e Centro Técnico de Formação), que insistem em ajudar o próximo e dar assistência médica e hospitalar, mesmo com muita dificuldade e sem apoio financeiro para sua expansão e interiorização. Esta frágil rede é ainda constituída por Institutos de Pesquisa em saúde e alguns Hospitais que desenvolvem ciência básica, formação de recursos humanos e realizam pesquisas, além de dar assistência hospitalar de qualidade na medida em que podem.

Infelizmente, essa situação de alta transmissão do vírus passou rapidamente da capital para todo o estado, que passou a concentrar vários dos municípios do interior com maior incidência de COVID-19 oficialmente confirmados e com maiores índices de mortalidade pela doença. Manaus tem, hoje, o maior índice de contaminação pelo SARS-CoV-2 do Brasil. A subnotificação da doença CoVID-19, causada pelo vírus altamente contaminante, infectante e letal na região, fica evidente quando a equação do número de casos comprovados por exames e testes (escassos para a população) e o número de mortos enterrados não fecha.

Os dados disponíveis evidenciam que o número diário de sepultamentos chegou a quadruplicar no município de Manaus e também tem aumentado no interior. Na segunda quinzena de abril, passou a ser comum o registro de mais de 100 sepultamentos diários , chegando ao ápice de 151 enterros no dia 2 de maio. A cidade que registrou uma média de 28, 3 sepultamentos diários em 2019 agora esforça-se por manter ou reduzir a média da última semana de 102,4*. No interior do estado, os municípios começam a mostrar a mesma tendência, mas temos poucas informações para fazer um balanço.

Embora os levantamentos oficiais considerem apenas as mortes confirmadas por exames pela Fundação de Vigilância em Saúde, é impossível ignorar o aumento do número de registros de causa mortis desconhecida, por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS) ou por suspeita de COVID-19. Some-se a isso, os registros de óbitos por “causa indeterminada”, o que, muito provavelmente, se deve à falta de atendimento médico às pessoas acometidas pela doença, não detectada por testes que são, vale repetir, insuficientes para a população. O número de notícias falsas e campanhas de automedicação espalhadas principalmente em redes sociais, associadas à ausência de serviços de saúde nas regiões que concentram as pessoas de mais baixa escolaridade, também devem contar para o alto número de mortes em casa relatados pela imprensa.

É de longa data a luta por melhoria na região, para que se diminuam os desequilíbrios na saúde, na educação em todos os níveis de formação escolar e no desenvolvimento científico e tecnológico. Ainda, a busca por fixação de recursos humanos qualificados tais como cientistas gabaritados, médicos, engenheiros, dentre tantos outros profissionais necessários para pensar e idealizar soluções para os problemas de urbanização em regiões tropicais nunca foi suficientemente planejada e realizada. Além disso, muitas tentativas para criar um ambiente de pesquisa visando o desenvolvimento de produtos voltados para os setores de medicamentos, cosméticos, nutrição, dentre outros, com material advindo da flora e fauna da floresta, têm sido frustradas por inúmeras razões, dentre as quais, falta de recursos humanos qualificados e de vontade política. Em 2002 foi criado, no âmbito do Programa Brasileiro de Ecologia Molecular para o Uso Sustentável da Biodiversidade – PROBEM (Primeiro PPA- Plano Plurianual do Governo Federal) o CBA – Centro de Biotecnologia da Amazônia, um grande centro com laboratórios contendo equipamentos dentre os mais modernos na área de química e biologia molecular. Esse centro também contém estruturas que servem como incubadoras de empresas, na expectativa de se criar um parque biotecnológico e se independer de indústrias do exterior e da indústria de eletroeletrônicos para a geração de emprego e renda na região. Isso permitiria o tão propalado desenvolvimento sustentável, no qual a floresta seria a principal fornecedora de matéria prima para o desenvolvimento de produtos cujas patentes poderiam ser adquiridas por empresários locais, nacionais ou internacionais.

A proposta era uma das mais nobres ideias já idealizadas para o desenvolvimento da região, mas não logrou sucesso, uma vez que a “matéria prima” – Recursos Humanos Qualificados – é pouca e o desconhecido é, de longe, muito maior que o conhecido na floresta. Atualmente, ainda se faz necessária a pesquisa básica para identificação e testes de produtos com princípios ativos para medicamentos, entre outros produtos. O CBA sequer se tornou uma figura jurídica independente até hoje, após 18 anos de sua inauguração; dadas as divergências políticas entre ministérios ao longo de vários governos.

Ganância? Vaidade? Poder? Ninguém pode apontar uma razão para essa inação tão prejudicial ao desenvolvimento sustentável da região. Não obstante, é importante ressaltar a existência de uma ainda tímida rede de pesquisa local em saúde que, embora distante do que seria necessário, foi capaz de organizar um estudo de ponta que evidenciou os perigos da cloroquina logo no início da pandemia no estado. Realizar uma pesquisa de nível internacional em curto espaço de tempo, enfrentando uma pandemia e sem as condições desejadas de trabalho é digno de nota, mas a ciência não deveria ser feita por heróis dedicados, mas por uma rede estruturada de instituições com estrutura física e recursos humanos. Essa falta de estrutura torna-se ainda pior no momento da pandemia, pois a capacidade de resposta do sistema de CT&I fica muito aquém do necessário.

Não bastasse este colapso do sistema de saúde, quais as consequências do espalhamento do vírus SARS-CoV-2 para o interior do estado, onde poucos municípios possuem estruturas que podem dar atendimento a doentes acometidos por COVID-19? Acrescentando, ainda, as distâncias enormes entre um município e outro, entre comunidades ribeirinhas e UPAs (Unidades de Pronto Atendimento do SUS), entre terras indígenas e sedes de municípios e/ou hospitais podem ser fatais para muitos habitantes da região.

Apesar de muito já se ter alertado, nunca é demais mencionarmos o risco que as comunidades indígenas, muitas das quais encontram-se afastadas das sedes dos municípios em Terras Indígenas e que vinham sendo precariamente protegidas pela FUNAI, algumas vezes em parceria com outras instituições. Ainda que esta proteção fosse pouco efetiva, reduzia a possibilidade de garimpeiros e grileiros invadirem suas terras e os contaminassem com o vírus. No entanto, nesse momento, as terras encontram-se completamente descobertas e desprotegidas, facilitando a invasão, o desmatamento, a grilagem e a mineração das e nas Terras Indígenas, ou ainda a contaminação pela transmissão do Covid-19 aos povos que nela habitam.

Essa situação associa-se com a mudança do quadro de fiscais do IBAMA após uma ação de destruição de dois garimpos ilegais em terras indígenas. Embora não seja atribuição específica do IBAMA fiscalizar terras indígenas, o órgão realiza importante função, principalmente em ações conjuntas em áreas de sobreposição Terra Indígena e Reserva Ambiental. Chega a ser criminosa a falta de preocupação com a vida das populações mais vulneráveis, particularmente no Amazonas, onde está concentrada em torno de 1/4 da diversidade étnica do país, merecendo especial atenção. Infelizmente, as ações dos governos estadual e federal em nada têm valorizado essa diversidade e nem sido claras na defesa desses povos.

Esse quadro é fruto de um governo interessado apenas no lucro, na acumulação de riquezas e na exploração de trabalhadores, os quais deveriam estar sendo mantidos em isolamento social ou estar tendo condições de trabalho adequadas, transportes seguros e EPIs (equipamentos de proteção individual). Sente-se, agora, o desmonte da proteção social em curso no país e a retirada dos direitos trabalhistas, levando o país a descobrir uma multidão de desassistidos que correm a filas para buscar ajuda financeira. Em Manaus, essa questão não é diferente e, embora seja inquestionável que essas parcelas da população necessitam de amparo nesse momento, é inegável que esta multidão de desamparados só agrava a epidemia. Há que se ressaltar que a falta de clareza nas políticas divulgadas até o presente para contornar essa situação dão mais gravidade ao enfrentamento dessa doença. Some-se a tudo isso a falta de informação e orientação por parte das autoridades governamentais no que diz respeito às causas da doença e sua letalidade.

Sabemos, por meio de estudos epidemiológicos e estatísticos publicados em revistas científicas internacionalmente reconhecidas, que ainda há possibilidade de agravamento da situação, possibilidade de uma segunda onda de contaminação vinda do interior do estado – que começa a confirmar-se – e que o clima úmido e quente é propício ao maior espalhamento do vírus, como apresentado em trabalho publicado na Nature, exemplificando o Brasil.

Portanto, urge um planejamento melhor para a produção ou aquisição de aparelhos respiradores e de EPIs, os quais, já se tem notícia, podem ser produzidos, reparados e idealizados em indústrias da própria Zona Franca de Manaus pois há maquinários, material e mão de obra para tal. Há 2 semanas nós mesmos fizemos um apelo ao Governo do Estado para que providências fossem tomadas para melhorar o enfrentamento da COVID-19 (http://portal.sbpcnet.org.br/noticias/sbpc-am-divulga-manifesto-sobre-atual-situacao-sanitaria-do-estado-do-amazonas/).

Dada a enorme desigualdade econômica instalada em Manaus, é importante que os Empresários e Industriários sejam solidários e ajudem a salvar a vida daqueles menos favorecidos, muitos dos quais trabalham em empresas da própria Zona Franca. Não se pode acreditar em uma sociedade cujas elites só esperam tudo do Governo e não se apresenta num momento tão desastroso como este!

Na esperança que, vencida esta pandemia e durante seu enfrentamento, possamos vivenciar uma cidade diferente, mais humana e mais equânime e, na esperança de que nossos povos tradicionais da floresta possam sobreviver a este vírus – uma vez que este já chegou nas mais diversas aldeias – e que tenham suas culturas e modos de vida respeitados, nos disponibilizamos a ajudar no que é nossa missão: ensino e pesquisa para preservação do meio ambiente bem como suporte à saúde e bem estar do ser humano.

Não deixemos os pacientes de COVID-19 sufocarem sem leitos! Não deixemos a floresta agonizar! Ambos precisam de AR!

Manaus, 18 de maio de 2020

Sobre os autores:

Vera Maria Fonseca de Almeida-Val é pesquisadora do INPA/MCTIC e diretora da SBPC

Sanderson Castro Soares de Oliveira é professor Adjunto FPI/PPGL/UFAM e secretário-regional da SBPC-AM

Pedro Rapozo é coordenador do Núcleo de Estudos Socioambientais da Amazônia (NESAM), professor da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) e o secretário-regional adjunto da SBPC-AM

*Enquanto escrevíamos o texto saíram novos dados que levam a crer que o número de sepultamentos reduziu para uma média diária de 59 enterros diários na semana de 10 a 15 de maio. https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2020/05/17/apos-pico-de-enterros-media-de-sepultamentos-diarios-em-cemiterios-publicos-de-manaus-cai-pela-metade.ghtml