Carta de um jovem amigo ao eterno professor Sérgio Mascarenhas

Artigo de Guilherme Rosso, head de inovação do Complexo Pequeno Príncipe

O professor Sérgio Mascarenhas é uma daquelas pessoas que deveríamos conhecer desde criança pelos livros da escola. Foi um gênio da ciência. E foi um gênio maior ainda pelo seu humanismo. O Prof. Sérgio era a materialidade da “Terceira Cultura” em pessoa, termo cunhado pelo cientista e romancista C.P. Snow ao propor a união da cultura científica com a cultura humanística.

A primeira vez que nos encontramos foi em um final de tarde em julho de 2013, no campus da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) em Recife-PE, durante a 65ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Eu era aluno do Bacharelado Interdisciplinar em Ciências e Tecnologia na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), ex-bolsista do programa Ciência sem Fronteiras e tinha 19 anos. Estava anoitecendo e fui encontrar dois colegas que haviam terminado de assistir a palestra do Prof. Sérgio sobre sistemas complexos. Acabei encontrando uma roda de pessoas em volta do professor. A conversa foi seguindo, até que restaram apenas o Prof. Sérgio, eu e os meus dois colegas Felipe Belfort e Breno Fernandes. A nossa sorte é que tínhamos uma característica que ele adorava: a juventude. Já eram nove horas da noite, estava escuro e decidimos que era hora de ir embora jantar e descansar para o dia seguinte. Ele então nos pediu informações sobre onde poderia pegar um táxi para retornar ao hotel onde estava hospedado. O Felipe era aluno de engenharia da UFPE e disse que naquele horário não havia mais táxis dentro do campus, mas que poderia dar uma carona até o ponto mais próximo. A primeira reação do Prof. Sérgio com a oferta da carona foi: “mas eu não vou atrapalhar vocês?”. Nós insistimos e ele aceitou.

No caminho até o carro, ele foi contando histórias como a do seu amigo Claude Shannon, exímio malabarista que conheceu no MIT e o pai da Teoria da Informação, área de estudo essencial para o desenvolvimento da ciência da comunicação. Eu estava encantado com as histórias e ao mesmo tempo preocupado, pois o Prof. Sérgio já tinha 85 anos e caminhava muito rápido. Perguntei como ele conseguia andar tão rápido com aquela idade. Com a irreverência de sempre, me respondeu: “se eu parar eu caio”.

Já no carro, mais histórias. Um pouco antes de chegarmos ao destino, ele falou que tinha um presente para nós e puxou três cópias do seu livro “Os Olhares de Janus” de dentro de sua bolsa. Os livros já tinham dedicatórias e ele falou: “olha, já está escrito alguma coisa aqui, mas se vocês não se importarem eu posso riscar e vou dedicar para vocês, pois acho que vai ser mais importante dar pra vocês que são jovens do que para os meus amigos mais velhos”. E assim o fez. Riscou as dedicatórias, escreveu nossos nomes embaixo e nos entregou os três livros. Depois descobrimos que recebemos os livros no lugar do Prof. Silvio Romero Marques (Vice-Reitor da UFPE à época), do Prof. Anísio Brasileiro (Reitor da UFPE à época) e do Prof. Sergio Machado Rezende (ex-Ministro da Ciência e Tecnologia 2005-2010). O deixamos no ponto de táxi mais próximo e quem agradeceu fomos nós!

O nosso segundo encontro (ou primeiro reencontro) aconteceu quatro anos depois, em 18 de  julho de 2017, no campus da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em Belo Horizonte-MG, durante a 69ª Reunião Anual da SBPC. Ao final de uma apresentação do Prof. Jorge Almeida Guimarães sobre cooperação internacional, encontrei o Prof. Sergio Mascarenhas (que também estava na plateia) e relatei o nosso primeiro encontro. De prontidão ele sorriu e agradeceu fervorosamente pelo relato, disse que foi um presente ouvir isso. Perguntou onde eu estava e o que fazia. Falei que havia recentemente defendido o mestrado em Modelagem de Sistemas de Complexos na Universidade de São Paulo (USP), ele pediu meu telefone e logo disse que eu deveria visitá-lo em São Carlos. Conversamos um pouco mais e ele falou que faria uma apresentação no dia seguinte contando histórias “de Leibniz à Ciência Moderna”, e combinamos de nos encontrar novamente.

A apresentação, claro, foi sensacional e muito inspiradora. Passei o dia pensando que gostaria de trabalhar com ele e aprender com toda a história, entusiasmo, humanismo e conhecimento que carregava. Na manhã seguinte, recebi uma grata ligação do Prof. Sergio Mascarenhas, que já começou agradecendo por ter me encontrado e dizendo: “Guilherme, o maior presente que tive aqui em Belo Horizonte foi ter te reencontrado”! Na verdade, o presente quem recebeu fui eu. E certamente todos que tiveram o privilégio de conhecê-lo ao longo de sua vida também se sentem assim. Desde então não nos separamos mais e nossa amizade só cresceu.

Nos reencontramos novamente na Reunião Anual da SBPC em Maceió-AL (2018), em Campo Grande-MS (2019) e em diversas outras ocasiões em São Paulo-SP, em São Carlos-SP e em sua casa em Ribeirão Preto-SP. Quase sempre com a Telma ao seu lado.

Como um bom amigo, o Prof. Sérgio me ajudou em projetos pessoais, profissionais e acadêmicos. Como grande cientista, empreendedor e fundador de startups como a Sapra e a brain4care, acreditou desde o início no potencial da Emerge Brasil, organização que nasceu para apoiar cientistas empreendedores e inovação de base científica. Como exímio conector, ele me apresentou à equipe do centenário Complexo Pequeno Príncipe em Curitiba-PR, onde criamos uma área de inovação para o Hospital Pequeno Príncipe (o maior hospital pediátrico do Brasil), para as Faculdades Pequeno Príncipe e para o Instituto de Pesquisa Pelé Pequeno Príncipe (apoiado pelo Rei Pelé, de quem ele era fã), e onde estamos conduzindo testes clínicos para validar a sua disruptiva tecnologia de monitorização não invasiva de pressão intracraniana em pacientes pediátricos.

Ele era assim, sempre muito generoso em ajudar a todos e tinha a capacidade de colocar todo mundo como se fosse o centro do universo. E talvez essa capacidade só era possível pois ele realmente acreditava que cada pessoa tinha algo de muito especial que poderia se somar com ele, com suas ideias de vanguarda e com seus sonhos não lineares.

Ele era o meu amigo mais velho, mas com uma energia e um hipocampo de fazer inveja aos mais jovens. Nós nos chamávamos carinhosamente de irmãos relativísticos, inspirado no Paradoxo dos Gêmeos do Paul Langevin em resposta à Teoria da Relatividade de Einstein. Sérgio Irmão Relativístico (SIR) e Guilherme Irmão Relativístico (GIR).  Eu com 27 anos e ele com 93. Brincávamos que ele deveria viajar para o espaço a uma velocidade próxima à da luz. Assim o tempo passaria mais rápido para mim e mais devagar para ele. Após um cálculo preciso da dilatação temporal, ele retornaria para a Terra e teríamos a mesma idade, seríamos gêmeos relativísticos.

Sentirei saudades de receber ligações suas às nove ou dez da noite na sexta-feira, com você querendo contar uma nova ideia de como ajudar três bilhões de pessoas que sofrem com hipertensão arterial utilizando matemática tensorial, ou sobre uma nova peça de teatro para divulgar a existência dos neutrinos, ou sobre as medições radiológicas nos ossos das vítimas da bomba atômica de Hiroshima. Sempre me perguntando como estava a Maylana e a minha família.

Professor Sérgio, essa é apenas uma parte do meu eterno agradecimento a você. Você tocou e transformou a minha vida. E assim fez com milhares e milhares de pessoas e amigos, cientistas ou não, jovens ou não, no Brasil e no mundo. Tive o privilégio de poder lhe agradecer em vida e de dizer que você era o meu maior ídolo vivo na Terra.

Você é uma das pessoas que deveria ter vivido por 200 anos. O seu legado para a humanidade é incalculável e temos certeza que irá se propagar por milênios. Estaremos aqui para continuar a sua missão.

 

Querido SIR, descanse em paz!

Abreijos eternos e com muitas saudades do seu sempre GIR.

Sobre o autor:

Guilherme Rosso é head de inovação do Complexo Pequeno Príncipe, membro da comunidade Global Shapers junto ao Fórum Econômico Mundial e jovem amigo do eterno Prof. Sérgio Mascarenhas