Ciência e educação são dois pilares do bem-estar e do desenvolvimento humano e econômico sustentáveis, especialmente no mundo assolado pela pandemia do coronavírus. Sendo a melhor aproximação possível da verdade, a ciência permitiu entender a Covid-19 e desenvolver vacinas em tempo recorde. Tecnologias foram aperfeiçoadas e outras criadas a partir de pesados investimentos públicos e privados. No Brasil, intensa atividade de pesquisa em diversas Universidades, no Instituto Butantã, na Fiocruz e noutras instituições contribuíram no esforço global para desvendar a biologia do virus e para a produção local de vacinas. Vacinas desenvolvidas totalmente no Brasil estão em fase de teste e, se houver financiamento público, poderão ser produzidas e utilizadas. Contudo, invertendo a lógica e o bom-senso, e ignorando o sofrimento da população, o Brasil terá em 2021 o menor orçamento para ciência, tecnologia e inovação, CT&I, e para educação dos últimos anos! Houve diminuição dos recursos para projetos, para cursos de pós-graduação, para inovação e para a manutenção das bolsas de pós-graduação e de pesquisa. E com a dramática redução do orçamento das Universidades Federais, que concentram grande parte da produção científica nacional, o país está à beira do colapso do Sistema de CT&I.
Tragédia anunciada e asfixia orçamentária
O Brasil vive um tempo do absurdo, e por mais graves que sejam os fatos e as atitudes de governantes e políticos, soa ainda brando o tom de indignação e reação da sociedade. E assim se agravam as condições já críticas do tecido social e da conjuntura política e econômica. São impactantes os retrocessos nas áreas ambiental, da saúde, da educação, da ciência, dos direitos humanos e da economia. A crise humanitária causada pela incapacidade governamental de gestão da pandemia se revela na tragédia da morte de mais de 460 mil brasileiros (quantas poderiam ter sido evitadas?), no enfraquecimento da economia e no aumento da pobreza e da insegurança alimentar. Tragédia cujos prenúncios foram percebidos já nas primeiras ações do Governo Federal quando da chegada do coronavírus, em fevereiro de 2020. A crise foi impulsionada pela negação da ciência e da diversidade social e cultural, pelo avanço de pautas conservadoras e pelo crescimento da violência social e institucional.
As políticas de educação e de ciência, tecnologia e inovação têm sido francamente desastrosas, marcadas por questões ideológicas, pela depreciação das Humanidades e por práticas de verdadeira desconstrução de avanços conquistados com muita luta pela comunidade científica e acadêmica. A asfixia orçamentária praticada nos últimos anos ameaça paralisar as Universidades Federais, as Agências de Fomento e os Institutos de Pesquisa. Novas políticas sociais estão seriamente ameaçadas pela procrastinação do Censo Demográfico e o MEC já considera atrasar a aplicação do ENEM 2021.
A Lei Orçamentária sancionada para 2021 consolida o cenário de desinvestimento iniciado em 2016 com a Lei do Teto de Gastos. Com o menor orçamento desde o ano 2000, o CNPq enfrenta sua pior crise; e a CAPES depende de recursos suplementares para honrar os compromissos com as bolsas de estudo e o fomento. Crescem desânimo e desencanto entre pesquisadores e estudantes de pós-graduação com consequências que ameaçam seriamente o presente e o futuro da ciência e da educação no país.
A SBPC tem como missão fundamental a defesa da ciência e da educação, incidindo em questões basilares como o meio ambiente, a saúde, os direitos humanos e a cultura. Dito de outra forma, a SBPC defende a cidadania através da ciência e da educação, seguindo o princípio democrático da garantia de direitos conquistados, inscritos na legislação e alvo de políticas públicas. Nesse momento de crise, vem atuando fortemente, em articulação com outras instâncias da sociedade civil organizada em ações de defesa da democracia e do direito à vida.
Destaco a atuação da SBPC no Congresso Nacional para a recomposição orçamentária junto à Iniciativa de Ciência e Tecnologia no Parlamento, ICTP-BR. Conquistas foram obtidas em anos anteriores, como a complementação financeira para o pagamento das bolsas do CNPq em 2019. Outra vertente é a discussão crítica da Lei do Teto de Gastos, EC95, editada para limitar o gasto público, e que, na prática, tem asfixiado todas as áreas sociais. Como exemplo: estão previstos 100 bilhões de Reais para Educação e 5 bilhões para CT&I, enquanto o gasto com a dívida pública passou de 500 bilhões, em 2019, para 1,1 trilhão em 2021. Essa é a concepção do Estado mínimo levada ao extremo, produzindo o absurdo orçamentário em que os gastos com o social e a máquina pública são severamente limitados, enquanto aqueles com o sistema financeiro correm livremente. É bom para o Brasil?
Elementos de uma proposta
A Gestão 2021 – 2023 da SBPC enfrentará muitos desafios. E o fará pautada pela defesa intransigente da ciência e da educação, do direito à vida e da democracia, e pelo princípio de que ciência e educação são fundamentos para um projeto de país mais justo e menos desigual. Nos propomos a trabalhar em 4 grandes eixos, de forma articulada com outras instâncias da sociedade civil organizada.
Orçamento e estrutura do Sistema de CT&I compõem o primeiro eixo, com a recomposição orçamentária das áreas de ciência e educação, a garantia do fim da Reserva de Contingência do FNDCT e o repasse de 5 bilhões de Reais ainda em 2021; e a revisão, ou revogação, da Lei do Teto (EC95). Será necessário o debate público sobre o orçamento, pois a destinação de recursos pelo governo é opção política, assim como é política a desconstrução das instituições de ciência e de educação pela asfixia orçamentária. Defendemos a permanência do CNPq e da CAPES como agências independentes, complementares e adequadamente financiadas; e a manutenção de Institutos e de Centros Nacionais de Pesquisa.
O segundo eixo é o das liberdades individuais, tendo o reconhecimento e a defesa da liberdade acadêmica como princípio das atividades de ensino e pesquisa; e a defesa da liberdade de expressão e manifestação em face do projeto Escola Sem Partido e da Lei da Mordaça.
O terceiro eixo é o da defesa de direitos e da inclusão social, especialmente o direito à vida, à educação, os direitos da mulher, as questões de gênero e as políticas de ações afirmativas nas universidades; a defesa e a valorização da cultura. Também trabalharemos na defesa enfática do meio ambiente, da Amazônia e de outros biomas, das populações indígenas e quilombolas.
O funcionamento da SBPC compõe o último eixo, que inclui a valorização e a popularização da ciência, com ações em todos os recantos do país como forma de combater o negacionismo. Daremos destaque para as comemorações do Bicentenário da Independência do Brasil, recuperando a história de um dos marcos fundadores da Nação e projetando um futuro de independências. Pretendemos agilizar os canais de comunicação da SBPC, especialmente com as escolas e os jovens, e fomentar a utilização de outros espaços de educação científica, como Museus e Jardins Botânicos. Vamos apoiar a atuação das Secretarias Regionais, com o estímulo às Reuniões Regionais, à criação de núcleos e a descentralização de ações, valorizar e ampliar os Grupos de Trabalho e promover articulação crescente com as Sociedades Científicas Afiliadas. O debate público sobre a ciência é cada vez mais necessário, pois ainda há grande contingente de pessoas que não entende, ou até nega, a importância da ciência.
O Brasil pós-Covid
As atuais políticas anti-ciência e anti-educação corroem as universidades, as instituições de pesquisa e toda sociedade brasileira; se calarmos seremos cúmplices da destruição que já está em marcha. A SBPC continuará sendo a entidade de resistência ao obscurantismo e ao negacionismo e de defesa da ciência e da educação. Mas além de resistir, há que avançar e pensar o futuro! A reconstrução do Brasil pós-covid e as independências que precisamos conquistar estarão em pauta, integrando o conjunto das ciências. Educação de qualidade em todos os níveis e ciência para todos serão alicerces da reconstrução, com propostas integradoras constituídas a partir da interdependência das ciências. Podemos, e devemos contribuir para a construção de um novo projeto de país, mais justo e menos desigual, com esperança e garantia de direitos.