É somente com a contribuição das Ciências Humanas e das Humanidades que os problemas sociais do mundo conseguem ser dimensionados e, só assim, será possível elaborar soluções. Este é o diagnóstico central de uma das mesas-redondas realizadas durante a 5ª Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (5ª CNCTI).
Realizada na última sexta-feira (01/08), a atividade contou com a mediação do presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Renato Janine Ribeiro, e com a presença da diretora da entidade, Fernanda Sobral, e do professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Wilson Gomes. “Esta é uma das poucas mesas sobre Ciências Humanas na 5ª CNCTI”, apontou Janine Ribeiro.
Iniciando as falas, a diretora da SBPC, Fernanda Sobral, afirmou que as Ciências Humanas e Humanidades são essenciais no olhar aos três maiores problemas globais: as desigualdades sociais, as mudanças climáticas e as questões de saúde. “As Ciências Humanas e Humanidades têm competência para subsidiar políticas públicas nesses três eixos”, ponderou.
A socióloga e professora emérita da Universidade de Brasília (UnB) também apontou que
“ao mesmo tempo em que temos grandes problemas sociais no Brasil, temos também duas grandes riquezas: a nossa biodiversidade e a nossa sociodiversidade, essa última cuja análise cabe às ciências humanas”, complementou.
Sobral defendeu que a próxima Estratégia Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, que será desenvolvida conforme os debates da 5ª CNCTI, precisa incentivar pesquisas multidisciplinares, além de estimular redes de colaboração de estudos que envolvam pesquisadores, desde aqueles em início de carreira, em iniciação científica, até pesquisadores sêniores. “É só com a multidisciplinaridade que conseguiremos olhar o problema em seu todo. Precisamos da diversidade de áreas e de atores.”
A pesquisadora ressaltou que de cada 100 projetos de pesquisa que conseguem financiamento público do Programa Institutos Nacionais de Ciência, Tecnologia e Inovação – INCTs, apenas 10, em média, são de áreas das Humanidades. “Onde entram as tecnologias sociais nos planos orçamentários? Onde entram as ciências sociais? Onde elas entram, o dinheiro não entra. Mas eu não gosto de ir nesse caminho da vitimização, eu gosto de mostrar a nossa força”, disse.
Complementando o discurso de Sobral, o professor da UFBA, Wilson Gomes, afirmou que as Ciências Humanas e as Humanidades são bem presentes no campo da luta social, mas sua força se perde quando a luta se converte em política pública.
“Quando se trata de militância, é fácil defender os conceitos das Humanas, mas essa defesa se perde quando o debate entra na questão do uso do dinheiro para a Ciência. Nós estudamos problemas centrais do mundo, como a própria noção do que é democracia, e isso tem relação direta com a estruturação política de uma sociedade.”
Gomes afirmou que governos e atores políticos precisam entender que determinados temas vão além do engajamento social. “Não é somente pela militância que vamos encontrar as soluções para os problemas sociais. A militância nos leva até os problemas, mas a busca de soluções é trabalho para as Ciências Humanas e Humanidades.”
Coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT.DD), Gomes trouxe, como exemplo, a ascensão da extrema-direita no mundo, que compromete todas as ações em prol de governos abertos e participação digital – e que, por isso, devem ser objetos de estudos e de ações políticas.
“É preciso normalizar o voto à extrema-direita. O sucesso eleitoral do radicalismo não depende de nossa escolha, mas ele veio para ficar. Por isso, a democracia tem que ter uma agenda de pesquisa, principalmente na nova Estratégia Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, para que os cientistas nos ajudem a encontrar respostas a esses fenômenos.”
Encerrando as falas do dia, o presidente da SBPC, Renato Janine Ribeiro, concordou com as declarações de Gomes em defesa da democracia. “É somente com uma agenda voltada para a democracia que teremos avanços sociais”, acrescentou.
Janine Ribeiro reforçou que as Ciências Humanas e as Humanidades existem para explicar o que acontece no mundo, ao mesmo tempo em que fazem parte do mundo. “A Filosofia, por exemplo, é muito útil para mudar paradigmas e trazer reflexões”, ponderou.
Professor sênior da Universidade de São Paulo e filósofo, o especialista defendeu que essas áreas auxiliam na compreensão da sociedade sobre os problemas do mundo e, consequentemente, formam o substrato necessário para toda a ação transformadora.
“São áreas que estimulam a criatividade, e a criatividade não é apenas uma metáfora, ela produz coisas, como sentimentos, ensinos e encantos. Se pegarmos os romances, por exemplo, eles geram realidades. O romance, em sua época áurea, entre o Dom Quixote, de 1605, e Madame Bovary, de 1857, trata do conflito entre o indivíduo e a sociedade, o que forja a modernidade, a individualidade, a sociedade burguesa e até a democracia. A literatura fala da realidade, mas ela própria contribui para construir esta realidade em que vivemos.”
Janine Ribeiro ressaltou que as Ciências Humanas e as Humanidades não são apenas o reflexo do mundo, mas também constroem pontos críticos desse mundo. Por este motivo, defendeu a existência de investimentos em inovações, como a inteligência artificial (IA), mas que sejam acompanhados de investimentos em estudos sociais. “A ministra Marina Silva, na reunião desta segunda-feira, dia 29, do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia, perguntou: a IA é capaz de criar metáforas? Não. Porque há algo humano que perpassa a IA, e esta humanidade, que se expressa nas metáforas, é necessária nos processos políticos.”
O professor também afirmou que muitos conceitos que vieram das Ciências Humanas e Humanidades estão migrando para dentro do universo legislativo e executivo. “Por exemplo, narrativa é um termo que vem da literatura e, hoje, é extremamente aplicado na política. Conta-se um contexto e, por meio dele, se defende normas ou leis a serem decididas.”
Janine Ribeiro concluiu sua fala afirmando que as áreas Humanas conseguem antecipar debates que precisam ganhar olhares decisórios. “Rousseau sustentou que a humanidade reside na compaixão, na capacidade de sentirmos a dor que outro ser vivo está vivenciando. Ele diz isso na mesma época em que está entrando em xeque o tempo dos suplícios, essa forma de entertainment popular que consistia em assistir a execuções com requintes de crueldade. Nestes mais de duzentos anos, reduziu-se, sim, o prazer com o sofrimento alheio. Mas recentemente tivemos um influencer que, ao olhar para as vítimas da covid-19, disse: ‘e daí? eu não sou coveiro’. Então, será que a compaixão foi apenas um efeito de superfície? Será que no fundo de muitos de nós continua batendo aquele prazer com o sofrimento dos outros, esse anseio por ver a dor alheia? Isso que as Ciências Humanas e Humanidades ajudam a responder.”
Rafael Revadam – Jornal da Ciência