O que pode haver em comum entre uma tarde em Itapuã, no Rio Grande do Sul, e uma reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC)? A desgraça climática que se abateu sobre o Estado com as cheias começadas no início de maio deste ano. No domingo, fomos Cláudia, eu e o sociólogo francês Philippe Joron, que está em período de pesquisa na PUCRS, com nosso amigo taxista Everaldo, ver a situação no extremo sul da capital gaúcha. Margeamos o Guaíba nas suas possibilidades até a velha Praia do Lami, onde muito banho tomei quando cheguei em Porto Alegre, em 1980. Por fim, fomos a Itapuã, em Viamão. Em tarde de sol, impressões de dias cinzas.
O que se vê pelo caminho? Marcas do desastre. No Lami, as perdas foram grandes. No bar do “Seu” Bueno, às aguas chegaram até o meio das geladeiras. Sidnei, com sua camiseta do Grêmio, vê nas grandes chuvas a na força da natureza uma mostra da existência de Deus. Em Itapuã, na contígua Viamão, as águas ainda impedem o acesso à margem do rio. Por toda parte uma questão parece resumir a perplexidade: e agora? Mais do que a descrição de um cotidiano afetado por uma devastação, com o cheiro forte que marca cada lugar, impressiona essa recorrência expressa discretamente: e agora?
Há uma percepção compartilhada de que não se trata de algo eventual, assim como há uma desconfiança de que os poderes públicos não fizeram o dever de casa e custam muito a fazer chegar na ponta final, lá onde se sente a dor real das enchentes, as medidas e ajudas emergenciais para a retomada da vida. A angústia exprime-se em cada rosto de modo paradoxal, entre um ar de resignação e uma inquietude quanto ao futuro. A esperança ilumina-se no olhar a cada instante, mas, em seguida, vacila.
Na segunda-feira de manhã, depois dessa tocante recorrida do sul de Porto Alegre, participei de uma reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) com 140 instituições para tratar do desastre climático no Rio Grande do Sul. Renato Janine Ribeiro, presidente da SBPC, defende que não se chame de tragédia o que está acontecendo em solo gaúcho, pois tragédia é, por definição, quando não há intervenção humano. No caso, houve falha de gestão. A reunião contou também com a assinatura da Academia Nacional de Medicina e da Academia Brasileira de Ciência (ABC). As críticas foram duras aos governantes que não tomaram medidas preventivas.
Helena Nader, presidente da ABC, foi direta quanto a um ponto bastante sensível: “O Código Florestal foi rasgado pelo Rio Grande do Sul”. Conversei com ela por telefone depois da reunião: “O Brasil é uma tragédia anunciada com conhecimento de causa”, disse. “Mata ciliar o pessoal não quer nem ouvir falar”, acrescentou. Nader vai coordenar uma mesa na 5ª Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, em 30 de julho de 2024, com um título incontornável: “A política precisa ouvir a ciência”.
Discutiu-se um texto da cientista Márcia Barbosa (UFRGS), “Programa de Emergência Climática e Ambiental”, sobre como a ciência recomenda o uso territorial de modo a estabelecer relação equilibrada com o meio ambiente.
O documento diz: “Somente ouvindo o conhecimento sobre os temas de mudanças climáticas e seus impactos seremos capazes de sobreviver a esta e outras crises”. Antes, contextualiza: “No médio prazo, é fundamental criar um Centro de Gestão de Riscos para o Rio Grande do Sul, serviço não existente no Brasil, mas presente em países que enfrentam emergências climáticas. Este centro teria o papel não somente de monitoramento e alerta, mas igualmente de promover formação de recursos humanos através de cursos para gestores, para comunidade escolar e população em geral de conscientização das mudanças climáticas e de como agir em uma situação de emergência climática. Igualmente ele teria o papel de congregar consultorias associadas às universidades sobre temas como resiliência urbana e rural, uso sustentável da terra, construções em encostas e margens de rios e impacto social das mudanças climáticas”.
A conclusão é límpida: a ciência não tem sido ouvida.
Tambor tribal (Mídia amiga)
Depois de algumas concessões aos fatos, que ameaçavam patrolar as conveniências e os interesses históricos, a mídia dominante resolveu dar um basta e saiu em defesa dos gestores de Porto Alegre e do Rio Grande do Sul com base no argumento infalível: ninguém podia prever o previsível. Por um instante se pensou que os donos da opinião publicada soltariam a mão dos seus parceiros. O tempo mudou, os ventos de sempre sopraram e as mãos ficaram mais unidas do que nunca. Afinal, no fim do ano tem eleição e não se pode politizar a tragédia, salvo para blindar omissos contra as forças das evidências. Por ora, o principal argumento contra a negligência escancarada é que, mesmo com manutenção, o sistema não teria dado conta da pressão sofrida. Essa manobra tem toda cara de confissão de culpa e de pedido de atenuante.