Nos últimos seis anos, o Brasil viveu uma política econômica que reduziu consideravelmente os investimentos em programas sociais sob a justificativa de contenção dos gastos públicos. Essa política foi consequência da Emenda Constitucional 95, promulgada em dezembro de 2016, que estabeleceu um teto para despesas e investimentos públicos até 2036. Agora, porém, com a aprovação na última semana do novo marco fiscal, o País pôs fim a uma regra orçamentária que poderia durar por 20 anos, mas precisa agora olhar para a cobrança de impostos e priorizar um desenvolvimento mais sustentável.
“O teto de gastos foi inventado no Governo Temer com base numa alegada gastança no Governo Dilma. De fato, houve um aumento no déficit das contas públicas em 2015 e 2016, só que esse aumento foi resultado de uma violenta queda de arrecadação que o governo brasileiro teve em 2015 e 2016 devido à recessão econômica. Só que ele foi uma grande amarra do dinheiro público, que acabou maltratando as políticas assistenciais. Por exemplo, o programa Farmácia Popular, que foi praticamente foi desmontado em 2022”, explica o professor do departamento de economia da Universidade de Brasília (UnB), José Luis Oreiro.
O especialista detalha que foram decisões constantes que enfraqueceram o desenvolvimento econômico do País. A primeira, entre 2015 e 2016, foi o corte de 35% dos investimentos públicos pelo Ministério da Fazenda. Depois, no final de 2016, foi a aprovação do teto de gastos, que proibia o aumento das despesas públicas além da inflação por duas décadas.
Esse cenário de estagnação foi perceptível pelo PIB, o Produto Interno Bruto, que é a soma de todos os bens e serviços produzidos em uma determinada área geográfica. Enquanto o teto de gastos esteve em vigor, o PIB brasileiro não conseguia alcançar os patamares obtidos antes da crise de 2015.
“O PIB brasileiro só recuperou o pico obtido no segundo trimestre de 2014, no segundo trimestre de 2022, ou seja, foram oito anos de estagnação econômica. Na história mais recente do Brasil, dos últimos 40 ou 50 anos, certamente foi o pior momento da nossa economia”, afirma Oreiro.
O professor reforça que o fim do teto de gastos não significa que o Governo Federal possa agir com descontrole nas contas públicas; ao contrário, a nova regra fiscal aprovada conseguiu combinar flexibilidade com credibilidade.
“Essa proposta combina duas coisas que eu acho que são muito boas: por um lado, ela dá mais flexibilidade para o governo aumentar os gastos, o investimento em infraestrutura e os gastos com saúde, educação e assistência social, mas ela também ela dá credibilidade à política fiscal no sentido de que o governo também não pode fazer tudo o que quer, ou seja, você tem um limite para o aumento de gastos que é de 70% do aumento da receita do governo.”
Oreiro defende que, após a preocupação com o teto de gastos, o próprio passo das políticas econômicas é a aprovação da Reforma Tributária. “O que está sendo proposto agora é uma reforma dos tributos indiretos, tanto federais como estaduais e municipais. Então, você vai eliminar uma série de impostos, como o IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados), o Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social), o ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) e o ISS (Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza) e vai criar dois novos impostos, o Imposto sobre Bens e Serviços e a Contribuição sobre Bens e Serviços.”
O especialista defende que, além de proporcionar uma simplificação do sistema tributário brasileiro, a Reforma Tributária também proporcionará facilidades nas formas de cobrança de impostos, o que facilitará a gestão para as empresas, que devem economizar com gastos envolvendo contadores, advogados e demais profissionais administrativos e contábeis.
Diretor do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), Fernando Gaiger concorda que a prioridade econômica do Governo Federal agora é a Reforma Tributária, até porque os debates sobre mudanças nas cobranças de impostos existem há, pelo menos, 30 anos.
Entretanto, o especialista questiona alguns pontos da atual proposta da Reforma, que foi aprovada pela Câmara dos Deputados em julho e está em debate no Senado Federal. Para Gaiger, a questão está na redução da arrecadação de setores como saúde, educação e transporte.
“O que mais me incomoda nessa ideia de beneficiar serviços educacionais, de saúde e alguns medicamentos é que vai contra o Estado de Bem-Estar Social, que é justamente ter saúde e educação providas pelo setor público. Quando você dá subsídio no tributo indireto, você está apoiando o consumo privado. Quem é progressista não vê essa armadilha. Pensa: ‘Ah, eu estou diminuindo os preços de saúde e educação’. Não, você está mercadorizando uma oferta que nos países centrais e desenvolvidos foi desmercadorizada, valorada e, com isso, você dificulta o crescimento da saúde pública em termos proporcionais à saúde privada”, analisa.
Segundo o especialista, mesmo que a economia nacional vá bem e, com isso, cresça o investimento em saúde, a partir do momento em que se reafirma um comportamento societário de valoração do consumo privado, o serviço público sempre ficará atrás, o que é problemático em setores sociais, como saúde e educação.
“Isso existe também na nossa cultura, vide o próprio presidente Lula que começou no sindicalismo reclamando dos planos de saúde e, quando fica doente, vai para um hospital privado. Então, há uma valorização pela oferta privada, e a população é assim. Nós tivemos um crescimento real do gasto público em saúde nos governos anteriores de Lula e Dilma, mas perdemos espaço relativo na oferta, ou seja, no uso da saúde pública. Por quê? Porque a população também estava com mais grana e tem essa ideia de que o privado é melhor. Mas quem usa plano de saúde sabe que ele tem problemas também e, de vez em quando, a gente se maravilha com os serviços do SUS (Sistema Único de Saúde), né? Então, como você vai contra uma cultura privada, mas você a beneficia nos tributos?”
Governo Federal precisa analisar decisões econômicas de gestões passadas
Além da Reforma Tributária, outras questões precisam de um olhar atento do Governo Federal. Para o economista José Luis Oreiro, a Reforma Trabalhista aprovada em 2017 precisa ser revista, já que gerou algumas situações de maior precarização do trabalho. Outro ponto é a privatização da Eletrobras, realizada em 2022.
“Na verdade, foi uma privatização esdrúxula, porque o governo continua com 43% das ações, mas só tem direito a 10% dos votos. Isso não faz nenhum sentido numa economia capitalista, você ter um poder decisório que é muito menor do que a sua participação no capital da empresa.”
O segundo ponto defendido por Oreiro tem a ver com as recentes questões envolvendo o presidente Lula e o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto. O Governo Federal vem afirmando que mesmo com as melhorias econômicas do País neste ano, elas não estão sendo consideradas no cálculo dos juros, uma decisão que tem Campos Neto como um dos principais agentes.
“Desde 1808, quando o Brasil deixou de ser uma colônia e chegou a família real portuguesa no Rio de Janeiro, Dom João VI fundou o Banco do Brasil, que foi a nossa primeira autoridade monetária, por assim dizer. Bom, desde 1808 até Jair Bolsonaro, todos os chefes de Estado do Brasil tiveram a liberdade para nomear o presidente da autoridade monetária. O único chefe de Estado que não teve condições de fazer essa nomeação foi o Lula, agora em 2023. Então, de certa forma, a gente pode considerar a lei que deu autonomia ao Banco Central como um golpe antecipado em cima do Lula, ou seja, vamos amarrar as mãos do presidente para que não possa fazer o que ele quiser”, afirma.
Outra questão apresentada por Oreiro refere-se ao perfil do presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto. Para o economista, Campos Neto não age com comportamentos técnicos, mas sim como uma pessoa politicamente engajada com o bolsonarismo, algo que foi provado, inclusive, com mensagens do presidente do Banco Central em grupos de WhatsApp com ex-ministros de Bolsonaro.
“Eu não tenho dúvida de que a demora na redução da taxa de juros fez parte de uma estratégia política premeditada antes das eleições para atrapalhar, por assim dizer, o desempenho econômico do governo Lula. As críticas que o presidente fez ao Banco Central se mostraram completamente acertadas, ele pautou o debate da redução de juros no Brasil e conseguiu a sua primeira vitória agora com a redução da taxa Selic em 0,5% em meio ponto percentual na última reunião de agosto no Copom (Comitê de Política Monetária)”, diz.
Como último ponto de crítica, o especialista alerta para que o Governo Federal não esqueça de atrelar o crescimento econômico ao desenvolvimento sustentável, algo que questiona nos anúncios feitos na última semana sobre o PAC, o Programa de Aceleração do Crescimento.
“Uma coisa que me chamou atenção no PAC foi que 62% dos investimentos são em energia, não eletricidade, são em combustíveis fósseis. O governo me parece que ainda tem uma cabeça desenvolvimentista velha. E não do novo desenvolvimentismo verde. Porque a gente precisa não só reindustrializar a economia, mas também conseguir superar os desafios da transição climática.”
Carta de Curitiba alerta para os panoramas econômicos.
A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) lançou em julho a “Carta de Curitiba”, um manifesto público de defesa da democracia “e tudo que ela implica”. O documento foi votado e aprovado por unanimidade na Assembleia Geral de Sócios da SBPC, realizada durante a 75ª Reunião Anual da SBPC.
Entre diferentes temas em prol do desenvolvimento do País, a Carta alerta para o panorama econômico. “O desenvolvimento econômico é imprescindível. Para tanto, deve-se baixar a taxa de juros, que não tem comparação com nenhuma economia do planeta, e que não se justifica, dado que nossa inflação não decorre de excesso de demanda; além disso, a taxa hiper elevada que o Banco Central vem praticando acarreta despesas anuais enormes, desviando para os poucos rentistas dinheiro que poderia atender a necessidades prementes de nossa sociedade”, reivindica.
Outro ponto importante é a revisão dos impostos no Brasil. “Uma reforma tributária que alcance a renda e a propriedade, a exemplo do que se faz nos países avançados e nas principais democracias, é essencial, a fim de termos os recursos indispensáveis à promoção da vasta agenda que consolide nossa democracia”. Confira o documento completo.
Rafael Revadam – Jornal da Ciência