Em alusão ao Dia Internacional das Mulheres, celebrado em 8 de março, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) realizou na última quinta-feira, 13 de março, a palestra “Mulheres Brasileiras e a resistência à violência cotidiana do Estado”, com participação da psicóloga e professora-titular da Universidade de São Paulo, Vera Silvia Facciolla Paiva.
Professora do Departamento de Psicologia Social do Instituto de Psicologia da USP desde 1987, Vera Paiva desenvolve pesquisas nas áreas de saúde pública e direitos humanos, com foco na inovação de práticas de prevenção e cuidado para IST/aids e covid-19. Sua trajetória também se entrelaça com a luta por justiça e memória no Brasil: filha primogênita de Eunice e Rubens Paiva, cresceu sob a sombra da violência de Estado, o que reforça sua atuação na defesa de direitos e políticas de equidade.
“Temos a honra de ter como conferencista a professora Vera Paiva, que é conhecida hoje por pelo menos seis milhões de pessoas que viram o filme ‘Ainda Estou Aqui’, que trata da maravilhosa ação da mãe dela, Eunice Paiva, depois do sequestro e o assassinato do marido, o deputado Rubens Bezerra de Paiva, pela ditadura militar. E Vera aparece no filme como a filha que vai para Inglaterra, que estava estudando quando ocorreu todo esse crime. Algo que não deveria ter ocorrido e que merece apuração e punição, uma coisa que está voltando à pauta, sobretudo hoje”, destacou o presidente da SBPC, Renato Janine Ribeiro, na abertura do evento.
Antes de começar a apresentação, Paiva comentou sobre a repercussão do filme e os debates sociais que ele vem propagando. “A gente, como família, está vivendo o tempo inteiro a emoção de estar recuperando pedaços da nossa história, nem sempre tranquilos. Nenhum de nós tem vocação de celebridade, digamos assim, mas estamos felizes de que a nossa hiperexposição esteja contribuindo para que a gente retome a luta contra a ditadura e retome o trabalho de memória, verdade, reparação e justiça no Brasil de hoje.”
Em sua fala, a professora da USP destacou o papel da SBPC no combate ao autoritarismo político. “A SBPC desempenhou um papel fundamental na resistência à ditadura, ao se consolidar como espaço para discutir e pensar o País, ainda nesses anos de grande violência política de Estado, que atingia as universidades e a pesquisa. Como estudante de graduação de psicologia na USP, participei de duas memoráveis Reuniões Anuais, bebendo avidamente os debates produzidos por professores e pesquisadores de todas as disciplinas. Isso me impressionava, porque eram pessoas que discutiam o resultado de suas pesquisas e pensavam o País junto com a gente.”
Paiva citou a 28ª Reunião Anual da SBPC em Brasília, em 1976, e a 29ª, em 1977, na PUC São Paulo. “Elas abrigaram debates políticos, denúncias e reuniões de vários movimentos sociais, constituindo um espaço valioso de resistência à ditadura. Estávamos, naquele momento, testando a tal abertura lenta, gradual e segura do regime ditatorial. E em meados dos anos 1970, a gente cutucava esses limites com movimentos sociais deliberadamente públicos e abertos, acreditando que deveríamos sair da clandestinidade e conquistar as pessoas no boca-a-boca, no face-a-face, apesar do contexto [repressor].
A professora e pesquisadora relembrou uma das vezes em que foi coagida pela polícia em 1977, quando foi levada a depor. Para ela, nesses momentos, a repressão por gênero era latente. “Começaram o interrogatório perguntando: ‘Qual é a profissão do seu pai? Você não escreveu aqui! Onde ele trabalha?’. E eu, que sempre fui mais ‘bravilda’, olhei brava e disse: ‘Vocês é que nos devem explicação sobre onde ele está!’. Imediatamente, o interrogador bateu a mão com força na mesa e começou a perguntar: ‘Então, me diga, quantos abortos você já fez? Com quantos homens você traiu esse subversivo com quem você está amaciada?’. Era essa a relação que faziam com a gente enquanto mulher.”
Paiva destacou que, apesar do País não estar mais com uma ditadura militar vigente, o autoritarismo do período segue, destacando principalmente o período de Jair Messias Bolsonaro no poder (2019-2022). “É importante lembrar o papel que nós mulheres tivemos no Brasil liderando a resistência contra o Bolsonaro, contra a ameaça desta pessoa nefasta para Ciência e Tecnologia, e para as mulheres.”
Paiva concluiu sua fala destacando a urgência do Estado em reconhecer os períodos autoritários, pois só assim o Brasil conseguirá lidar com os autoritarismos ainda presentes. “No movimento social e nos coletivos contra a violência do Estado liderados por mulheres, a gente entende que a ação política coletiva contra as violações de direitos humanos de hoje passa pelo combate às raízes da violência, como, por exemplo, a escravidão e a exploração do trabalho das mulheres periféricas. Mas essa ação também passa pela recuperação da memória da resistência. E além de recuperar a memória dos que perdemos, a gente quer das Forças Armadas, e eu queria ressaltar isso, um pedido oficial de desculpas. Pedido de desculpas a nós, mas também à nação brasileira, como insistia Dona Eunice Paiva, minha mãe, que dizia: ‘aquilo que acontecia com a gente não era apenas contra a gente, era contra o Brasil’.”
A palestra “Mulheres Brasileiras e a resistência à violência cotidiana do Estado”, com participação de Vera Silvia Facciolla Paiva, está disponível na íntegra no canal da SBPC no YouTube.
Rafael Revadam – Jornal da Ciência