Nessa terça-feira, 24 de outubro, foi comemorado mundialmente o Dia das Nações Unidas. Como o nome sugere, trata-se da celebração de criação da Organização das Nações Unidas (ONU), que completou 78 anos em 2023. Utilizando o contexto da data, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) reuniu especialistas do cenário político internacional para refletir: considerando os constantes conflitos entre nações, a ONU está conseguindo desempenhar o seu papel?
Coordenado pelo presidente da SBPC, Renato Janine Ribeiro, o debate contou com a participação de Manuel Domingos Neto, historiador, vice-presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) de 2003 a 2006 e ex-deputado federal, e de Rubens Barbosa, embaixador do Brasil em Londres de janeiro de 1994 a junho de 1999 e em Washington de junho de 1999 a março de 2004. Fundador e diretor-geral do Projeto Portinari, o professor João Candido Portinari realizou a abertura do evento.
“A ONU foi criada, entre outras finalidades, para ser mais efetiva do que a Liga das Nações (1919-1946), que não conseguiu impedir grandes conflitos, como a invasão da Etiópia pelos fascistas e outros movimentos que desencadearam a Segunda Guerra Mundial. Mas, mesmo com uma missão tao nobre, e com meios superiores aos da Liga (que na prática desapareceu ao começar a guerra, em 1939) ela vem se mostrando, historicamente, incapaz de conseguir manter a paz no mundo”, introduziu Janine Ribeiro.
Filósofo e professor da Universidade de São Paulo (USP), Janine Ribeiro apresentou uma questão para nortear as falas do evento: “Como é que uma entidade criada para impedir a guerra e promover a paz tem falhado na evitação da guerra? Esse é um ponto delicado porque, cada vez mais, aumentam as afirmações de que a ONU é inútil. Nós vimos no Conselho de Segurança da ONU, na última semana, os Estados Unidos votarem contra uma resolução proposta pelo Brasil sobre o conflito entre Israel e Hamas. Uma resolução muito articulada, que defendia a paz, mas que, com o poder de veto dos Estados Unidos, foi derrubada mesmo com votos a favor de 12 nações. Não nos cabe, aqui, debater esse conflito, mas refletir o papel da entidade após 78 anos de atuação”.
Abrindo o evento, o professor João Candido Portinari, filho do artista Candido Portinari, iniciou sua fala apresentando uma das obras mais famosas de seu pai, os painéis Guerra e Paz, que ornam a sede da ONU em Nova York. Refletindo a criação da ONU por meio de produções audiovisuais, como trechos de obras da cineasta Carla Camurati, Portinari também apresentou uma edição especial da revista científica Lancet, sobre os 10 anos do atentado das torres gêmeas nos Estados Unidos.
“Nessa edição especial, a Lancet utilizou os painéis Guerra e Paz, de Portinari, em sua capa e contracapa. E em seu editorial, trouxe uma mensagem que cabe para introduzir o nosso debate: ‘No aniversário do atentado de 11 de setembro, as nações devem pensar em como fortalecer uma organização indispensável, a ONU. Uma organização que deve a sua existência à guerra, e o seu futuro à paz’”.
Da guerra para evitar guerras
Ex-embaixador do Brasil em Londres e Washington, Rubens Barbosa iniciou sua fala contextualizando o período de criação da ONU. “A ONU foi criada juntamente com outros organismos mundiais, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, como um conjunto de esforços para remediar toda a tragédia que saiu da Segunda Guerra Mundial. Seu objetivo era a promoção da paz e da segurança global, questões duramente afetadas no período de guerra”.
Barbosa explicou que o Conselho de Segurança da ONU era basicamente formado pelos países vencedores da Segunda Guerra: Estados Unidos, França, Inglaterra e União Soviética, além de uma nação que estava despontando no panorama global, a China. Mas as mudanças geopolíticas que o mundo enfrentou com o passar dos anos alteraram os poderes de cada país e impossibilitaram um cenário global sem conflitos.
“Em 1991, quando termina a existência da União Soviética, nós entramos em um segundo ciclo da ONU, um ciclo de uma nova ordem unilateral, em que os Estados Unidos se tornaram a única superpotência e, com isso, começaram a tomar medidas que não representavam mais esse ideal de paz e segurança das Nações Unidas, como as invasões do Iraque e do Afeganistão”.
Paralelamente, a ONU tentava exercer sua influência por meio das missões de paz, em que forças militares de países eram direcionadas a regiões de conflitos para minimizar os contextos de violência. “Havia uma presença da ONU para garantir a paz por meio de suas missões, e o Brasil foi um dos países que mais participou dessas ações. O esforço da ONU para manter a paz atravessa a estrutura de órgãos e se dá por meio dessa ação militar coordenada”, complementou Barbosa.
A partir do momento em que a hegemonia americana foi ameaçada, com destaque à ascensão da China, os conflitos se tornaram maiores, o que cabe hoje à ONU repensar os poderes dados a cada nação em sua estrutura.
“Hoje, o Conselho de Segurança da ONU e suas cinco nações mais poderosas não representam a situação geopolítica global, os interesses são outros e há mais atores envolvidos. Além disso, as disputas entre Estados Unidos e China são diferentes daquelas entre Estados Unidos e União Soviética, porque não se trata de conflitos ideológicos, mas sim mais voltados às áreas de tecnologia e economia”.
A forte interferência dos Estados Unidos na economia global e o desejo de países pelo poder e dominação mercadológica são fatores que inviabilizam uma hegemonia contra conflitos.
“As dificuldades que o mundo atravessa hoje deixam a ONU em um cenário cada vez mais difícil de exercer o seu papel. Por exemplo, no começo da semana, um embaixador [o de Israel] pediu a renúncia do secretário-geral da ONU. Nós estamos em uma situação de radicalização que paralisa totalmente as Nações Unidas”, ponderou.
Para o historiador Manuel Domingos Neto, os conflitos globais recentes têm mostrado a dificuldade dos objetivos da ONU. “Eu fico até admirado como se demorou tanto para se tornar visível a percepção sobre a dificuldade do trabalho da ONU, porque só nos últimos anos é que a gente viu efetivamente um conjunto de países explicitamente desobedientes”.
Por conta do histórico de conflitos recorrentes, o especialista aponta para um desmonte dessa ordem estruturada.
“Eu não vejo separação entre hegemonia econômica, capacidade militar e influência cultural, tudo isso faz parte de um complexo jogo de poderes. Considerando o que nós estamos assistindo hoje na tentativa de articulação sobre Israel e Palestina, o que vemos é o desmonte dessa ordem estruturada. Na realidade, a ONU nunca deu conta de um ordenamento legítimo global, porque, de fato, sempre houve um ou mais poderes determinantes”.
O especialista acredita que, hoje, as nações vivem uma transição para um novo ordenamento global, que pode ser encabeçado pela ONU, se reestruturada, ou por meio de uma nova entidade a surgir. “O fato é que alguma coisa tem que substituir a ONU de hoje, mas ela é uma entidade extremamente importante. O fim absoluto dela significa a intensificação de conflitos e, consequentemente, a inexistência da humanidade”, concluiu.
O evento “A ONU pode cumprir sua missão de conquistar a paz?” está disponível no canal da SBPC no YouTube.
Rafael Revadam – Jornal da Ciência