Ao longo de três dias, pouco mais de 2,5 mil pessoas participaram presencialmente ou pela internet de uma maratona de 54 mesas-redondas e sete sessões plenárias, que recolheram orientações a fim de formular um plano nacional de ciência, tecnologia e inovação para os próximos 10 anos. A 5a Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (CNCTI), que aconteceu em Brasília entre os dias 30 de julho e 1º de agosto, discutiu temas como a importância das políticas científicas orientadas para vencer grandes desafios da sociedade, o futuro da inteligência artificial no Brasil e o combate à desindustrialização. Também compilou sugestões concretas para ampliar o financiamento à ciência, investir na educação científica, fortalecer instituições de pesquisa e startups, enfrentar a desinformação, entre outras.
Os resultados desse esforço coletivo serão conhecidos em algumas semanas, quando uma comissão encarregada de organizar as recomendações feitas na conferência de Brasília e em outros 221 eventos preparatórios irá entregar ao governo um sumário executivo e um livro com a essência dos milhares de reflexões e reivindicações apresentados por cientistas, gestores, empresários e estudantes. “Entre as propostas apresentadas pelos participantes, alguns temas se destacaram, como a necessidade de promover a divulgação e a popularização da ciência e a chamada ciência aberta, que busca compartilhar conhecimento e promover uma participação da sociedade em todas as etapas da pesquisa científica”, disse a cientista da computação Francilene Procópio Garcia, vice-presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e coordenadora da subcomissão de sistematização e documentação encarregada de compilar as ideias. “A conferência foi convocada pela Presidência da República e tem um caráter consultivo. A comunidade atendeu à convocação e agora cabe ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação analisar essas contribuições e considerá-las no plano decenal que irá formular.” Há 14 anos o país não promovia uma conferência dessa natureza. O tema oficial do evento foi Ciência, Tecnologia e Inovação para um Brasil Justo, Sustentável e Desenvolvido.
A busca de novas formas de financiamento permeou diversos debates. Na sessão de abertura, o físico Sergio Machado Rezende, ex-ministro da Ciência e Tecnologia e secretário-geral da 5ª CNCTI, propôs criar novos Fundos Setoriais de Ciência e Tecnologia ou ampliar o escopo de fundos existentes para aumentar a contribuição de setores como o agronegócio, os bancos e as grandes empresas de tecnologia, no fomento à ciência. “Esses segmentos utilizam os recursos humanos qualificados que o país forma e poderiam dar contrapartidas maiores no financiamento”, afirmou. Criados no final da década de 1990, os Fundos Setoriais abastecem o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), principal instrumento federal de investimento em pesquisa e inovação, com as receitas e impostos de empresas de 14 diferentes segmentos da economia.
Em uma mesa-redonda que discutiu o futuro do FNDCT, Carlos Américo Pacheco, professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e diretor-presidente do Conselho Técnico-Administrativo da FAPESP, propôs criar meios para utilizar o saldo financeiro do fundo, que era da ordem de R$ 18,9 bilhões no final de 2023. Esse dinheiro é proveniente de recursos dos Fundos Setoriais, que, no entanto, não tiveram autorização da lei orçamentária para serem aplicados. Como a Lei Federal nº 177 de 2021 proibiu o contingenciamento do FNDCT, o dinheiro permanece disponível, embora seu uso não esteja autorizado.
Mas como fazer para desbloqueá-lo? Pacheco sugeriu encaminhar uma negociação com os ministérios da área econômica a fim de permitir seu uso em operações de crédito para empresas inovadoras, que hoje correspondem à metade dos investimentos do FNDCT. “Se esses recursos fossem usados nas operações de crédito, não seriam contabilizados no déficit primário, porque vão voltar quando os empréstimos forem pagos ao agente financeiro”, diz. Com isso, os recursos orçamentários hoje usados em empréstimos poderiam ser liberados para outros investimentos. Uma segunda fonte de recursos poderia ser o Fundo Social do Pré-sal, abastecido por receitas de royalties dessa exploração do petróleo. Uma auditoria do Tribunal de Contas da União mostrou que recursos desse fundo foram usados em aplicações não previstas em lei. “Existe proposta de previsão legal para alocar recursos em ciência, tecnologia e inovação, que chegariam a 10% do total arrecadado, de acordo com um projeto que tramita na Câmara dos Deputados”, disse Pacheco. “Esses 10% praticamente equivalem ao patamar atual de valores investidos do FNDCT.”
Os obstáculos que o país enfrentou na pandemia foram outra referência recorrente. Em participação virtual, a economista italiana Mariana Mazzucato falou sobre o papel do Estado e a importância de sua capacidade organizacional para fomentar inovações. Pesquisadora da University College London, no Reino Unido, e autora do livro O Estado empreendedor (Companhia das Letras, 2014), ela destacou que as chamadas parcerias público-privadas precisam evitar relações assimétricas, garantindo que o setor empresarial faça sua parte e invista em pesquisa e desenvolvimento em setores como agronegócio, aeroespacial, automotivo e metalúrgico. Ela mencionou como exemplo positivo de parceria a vacina da AstraZeneca contra a Covid-19, desenvolvida em colaboração com a Universidade de Oxford, no Reino Unido, que garantiu preços acessíveis. “Esse é um modelo de negociação que devemos definir em nosso ecossistema, especialmente na saúde, em que muitos recursos vêm de investimentos públicos”, destacou.
A ministra da Saúde, Nísia Trindade, defendeu mais investimentos no complexo industrial da saúde. “A dependência da importação de produtos torna o Sistema Único de Saúde [SUS] vulnerável, o que foi evidenciado na pandemia”, afirmou. Segundo ela, mais de 90% dos insumos farmacêuticos ativos usados no Brasil para produção de medicamentos são importados e só a metade dos equipamentos médicos é produzida no país. Trindade disse que o governo tem buscado retomar investimentos no complexo industrial da saúde e anunciou a abertura de nove chamadas públicas de incentivo à pesquisa em saúde, com investimentos previstos de R$ 234 milhões.
A conferência foi palco da apresentação de novas políticas públicas. A mais impactante delas foi o lançamento do Plano Brasileiro de Inteligência Artificial (PBIA) para os próximos quatro anos (2024-2028). O plano propõe, por exemplo, a expansão do supercomputador Santos Dumont, do Laboratório Nacional de Computação Científica, em Petrópolis (RJ), e a criação de uma infraestrutura nacional de armazenamento de dados em nuvem que funcione como alternativa aos repositórios de grandes empresas de tecnologia. “Partimos da compreensão de que a concentração excessiva de poder, de dados e de recursos em poucas empresas e em poucos países pode ter como consequência a exclusão de grande parte da humanidade dos benefícios dessa tecnologia”, observou o secretário-executivo do MCTI, Luis Fernandes, que coordenou a elaboração do plano.
O documento detalha de que maneira devem ser investidos nos próximos quatro anos cerca R$ 23 bilhões, oriundos do FNDCT, da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), do setor privado e de empresas estatais, em cinco eixos principais: infraestrutura, formação e capacitação de pessoas, melhoria dos serviços públicos, inovação empresarial e apoio à regulação e governança da inteligência artificial.
A Finep propôs diretrizes para ampliar o financiamento às chamadas deep techs, startups baseadas em pesquisas científicas e em engenharia que procuram soluções avançadas para problemas complexos, como tratamentos de doenças ou aqueles relacionados a mudanças climáticas. Um dos maiores entraves enfrentados por essas empresas, afirmou Fernando Peregrino, chefe de gabinete da presidência da Finep, é que elas precisam de investimentos elevados e de alto risco e exigem aportes maiores em suas fases iniciais. O documento “Estratégia nacional de apoio a startups deep techs e seus ecossistemas no Brasil” propõe a simplificação de trâmites regulatórios e jurídicos. Também enfatiza a necessidade de criar modelos mistos de financiamento – com recursos públicos, privados e filantrópicos – e de utilizar encomendas governamentais para adquirir os produtos oferecidos pelas deep techs.
O público que participou da conferência apresentou ao menos 400 sugestões por meio de uma plataforma interativa, a Strateegia. Um participante que não se identificou sugeriu ampliar as missões da política industrial brasileira a fim de contemplar áreas como nanotecnologia, novos materiais, fotônica e metrologia/instrumentação. “São áreas em que o Brasil possui pesquisa de excelência e alto potencial de criação de uma base industrial de tecnologia”, justificou. A proposta de outro participante foi que o Programa Espacial Brasileiro passe a incorporar projetos de interesse de outros ministérios, além do MCTI, em áreas como mudanças climáticas, agricultura e planejamento urbano, para ampliar seu orçamento, que é muito baixo, recebendo recursos dessas pastas. Uma ação coordenada de interessados em divulgação científica usou essa plataforma para reivindicar, em praticamente todas as mesas e plenárias, mais investimentos em iniciativas de popularização da ciência.
As contribuições dos palestrantes e do público foram compiladas por relatores das plenárias e mesas-redondas e encaminhadas à subcomissão de sistematização. Elas se somarão às recomendações feitas em 221 eventos preparatórios realizados entre novembro do ano passado e maio desse ano: 18 conferências temáticas, 27 estaduais, 14 municipais e 5 regionais, além de 157 conferências livres. “Esses eventos tiveram a participação expressiva e surpreendente de quase 100 mil pessoas”, destacou Rezende, o secretário-geral da conferência.
As sugestões dos eventos preparatórios haviam sido compiladas em dois ebooks, com apoio de um software de inteligência artificial que transcreveu e organizou por assunto milhares de formulários preenchidos e mais de 4 mil horas de gravação de debates e apresentações. O resultado foi um conjunto de resumos e sínteses ordenados segundo os eixos e temas da conferência. Esses dois livros ajudaram a nortear os debates em Brasília. Na avaliação da biomédica Helena Nader, presidente da Academia Brasileira de Ciências, que participou de quatro plenárias e mesas-redondas do evento, a 5ª CNCTI cumpriu seus propósitos, mas a tarefa mais importante virá agora, que é tirar do papel as recomendações. “A festa foi bonita. Foi interessante ver estudantes, pesquisadores e empresários discutindo o futuro. Agora temos que brigar para que as medidas sejam implementadas”, afirmou. “Nas discussões sobre a chamada Amazônia Azul, notei que as propostas eram semelhantes às da conferência realizada em 2010, que não foram implementadas”, disse, referindo-se à área costeira e oceânica de 4,5 milhões de quilômetros quadrados na plataforma continental brasileira. “Não vamos nos iludir: vamos precisar de novas fontes de recursos para transformar essas sugestões em ações.”
A reportagem acima foi publicada com o título “Pensamento coletivo” na edição impressa nº 343, de setembro de 2024.
Fabrício Marques e Sarah Schmidt– Pesquisa Fapesp