Critérios da Capes para bolsas geram críticas na academia

Análises distintas indicam que modelo do órgão federal premiou desproporcionalmente o tamanho dos programas de mestrado e doutorado e aprofundou desigualdades

Se as mudanças das regras do CNPq para o financiamento à pesquisa trazem problemas para a produção científica brasileira, o novo modelo adotado pela Capes neste ano para definir a distribuição de bolsas de mestrado e doutorado também traz complicações. Embora, na comparação com o modelo anterior, as novas regras tenham beneficiado a USP com saldo positivo de 218 cotas permanentes, o impacto não foi uniforme em todos os programas de pós-graduação. Além disso, a conta não é otimista para o sistema de pós-graduação brasileiro como um todo, já que outras universidades não tiveram a mesma sorte da USP. Segundo estudo de um grupo de trabalho da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), a mudança de modelo resultou numa queda de 10% no número de bolsas permanentes oferecidas para a pós-graduação em todo o País.

A fundação federal, ligada ao Ministério da Educação (MEC), alterou o modelo de distribuição de bolsas em fevereiro deste ano. Três portarias daquele mês determinam os critérios considerados na hora de decidir quantas cotas permanentes cada programa de pós-graduação tem direito. As cotas permanentes dizem respeito a bolsas que serão mantidas no programa após os estudantes atualmente contemplados defenderem seus trabalhos. São diferentes das cotas de empréstimos, que ficarão no sistema após a titulação dos pós-graduandos, mas voltarão à Capes para posterior redistribuição.

Os critérios de distribuição das cotas permanentes haviam sido discutidos com um grupo de trabalho e pactuados entre a Capes e a comunidade acadêmica. No entanto, em março, todos foram surpreendidos com a publicação de um novo documento, a Portaria 34. Ela fez alterações no modelo matemático acordado no começo do ano.

O atual modelo da Capes, em quatro documentos

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Portaria 18, de 20 de fevereiro de 2020

Cria novos critérios para a concessão de bolsas do Programa de Suporte à Pós-Graduação de Instituições de Ensino Particulares (PROSUP) e do Programa de Suporte à Pós-Graduação de Instituições Comunitárias de Ensino Superior (PROSUC)

Portaria 20, de 20 de fevereiro de 2020

Determina os novos critérios para a distribuição de bolsas no âmbito do Programa de Demanda Social (DS). Entre os cursos de pós-graduação da USP, engloba aqueles com notas 3, 4 e 5

Portaria 21, de 26 de fevereiro de 2020

Dispõe sobre os novos critérios para a distribuição de bolsas no âmbito do Programa de Excelência Acadêmica (PROEX), que reúne os cursos com notas 6 e 7 na avaliação da Capes

Portaria 34, de 9 de março de 2020

Trata das condições para fomento aos cursos de mestrado e doutorado, alterando os pisos e tetos para a distribuição de bolsas que haviam sido estipulados pelas portarias anteriores

A Capes argumenta que o novo modelo permite aumentar o total de bolsas para os programas de pós-graduação. Em um ofício do dia 17 de junho, o presidente da instituição, Benedito Guimarães Aguiar Neto, afirma que a oferta era de 80.272 bolsas em fevereiro e saltou para 84.269 após a publicação da Portaria 34. No entanto, os dados da SBPC mostram que, quando são consideradas apenas as bolsas permanentes, o número cai de de 77.629 para 69.508. A divisão do total de bolsas entre cotas permanentes e de empréstimos acendeu um alerta na academia, que entendeu a mudança como sinalização de que, no futuro, terá de trabalhar com um patamar mais baixo no número de bolsas oferecidas.

O ofício foi a resposta da presidência da Capes a um manifesto assinado por coordenadores das Áreas de Avaliação. Esses coordenadores representam um universo de mais de 4.400 programas de pós-graduação, que atendem cerca de 350 mil estudantes. No manifesto, eles criticam o “modo profundamente centralizador de gestão” da direção do órgão federal em iniciativas como a Portaria 34, a alteração de prazos para envio de relatórios e outras normas recentes que deverão impactar a organização e planejamento dos programas de pós-graduação. Em todos os casos, os docentes reclamam da falta de diálogo da Capes com a comunidade acadêmica.

Por que a comunidade acadêmica critica a Portaria 34?

No ofício do dia 17, Aguiar afirma que o modelo de redistribuição de bolsas adotado pela Capes neste ano procura resolver disparidades reconhecidas por toda a comunidade acadêmica no atendimento aos programas de pós-graduação. “O que se buscou foi a ‘aproximação’ dos quantitativos de bolsas de cada curso para padrões mais próximos de um patamar isonômico. Decorrência natural desse movimento é que os cursos atendidos em excesso acabam por sofrer diminuição de fomento, enquanto que os cursos historicamente mal atendidos recebem mais bolsas”, diz o documento.

Porém, na avaliação de Marcio de Castro Silva Filho, pró-reitor adjunto de Pós-Graduação da USP, a aplicação das regras revelou alguns problemas. “Nós chegamos a ter um panorama da universidade, mas não (de) dentro da universidade. A gente teria que ter olhado, por exemplo, (para situações como o) caso da USP. Teve programas com conceito 7 que ficaram sem bolsas, outros programas ganharam número maior”, diz o pró-reitor adjunto, que participou do grupo de trabalho da Capes responsável por discutir os critérios fixados nas portarias 18, 20, e 21, publicadas em fevereiro.

“A gente inclusive pediu (para que) as universidades pudessem ter um grau de liberdade para fazer algumas distribuições internas, alguns reajustes, mas isso não foi possível nesse modelo”, explica ele. Os dados referentes à USP demonstram algo neste sentido. Os números da planilha utilizada pelo grupo de trabalho da SBPC para analisar o modelo adotado pela Capes neste ano mostram que, juntando todos os campi e no cômputo geral, a USP ganhou 218 cotas permanentes, incluindo bolsas de mestrado e doutorado.

Quando os dados são destrinchados, eles mostram que os cursos de Demanda Social, que têm notas até 5, perderam 227 bolsas – número ligeiramente superior ao ganho geral da universidade. Por sua vez, os cursos com notas 6 e 7 ganharam, conjuntamente, 445 bolsas – mas, como dito anteriormente, os ganhos não foram homogêneos.

 

Na opinião do professor Silva Filho, que é titular do Departamento de Genética da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP, em Piracicaba, faltou tempo para testar quais seriam os impactos das portarias dentro das universidades, onde os programas de pós-graduação têm características heterogêneas. “E no final, a Capes ainda alterou um pouco esse modelo que tinha sido discutido com a comunidade”, completa ele.

Modelo matemático criou uma escada com degraus desiguais

O novo modelo da Capes utilizou quatro critérios fundamentais para determinar quantas cotas permanentes cada programa teria direito em 2020. Esses critérios são justamente aqueles fixados pelas portarias de fevereiro e buscam corrigir distorções na concessão de bolsas de mestrado e doutorado. São eles: o tamanho de cada programa, a nota do programa na avaliação da Capes, a prerrogativa do doutorado sobre o mestrado e o índice de desenvolvimento humano municipal (IDHM) da cidade-sede de cada curso.

Com esses critérios, a ideia era valorizar a qualidade e, ao mesmo tempo, incentivar programas sediados em regiões mais carentes. O problema é que a Portaria 34 não fez nem uma coisa, nem outra.

“O que a Portaria 34 fez, e fez à revelia da comunidade acadêmica, é que pisos e tetos mudaram muito, inclusive pela nota dos programas”, diz o astrônomo Thiago Signorini Gonçalves, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Gonçalves é coautor do estudo da SBPC que analisou o impacto das portarias sobre a concessão de bolsas nos programas de pós-graduação brasileiros. Ele explica que a Portaria 34 não modificou a metodologia de cálculo fixada pelas portarias anteriores, mas derrubou um limite máximo de 10% na perda de bolsas de programas avaliados com notas 3 e 4 pela Capes e de 30% de ganho para os programas com notas 6 e 7.

Em carta, o pró-reitor de Pós-Graduação da USP, Carlos Carlotti Jr., apresentou, em junho, à presidência da Capes uma análise crítica do modelo matemático estabelecido com a Portaria 34. Uma das principais preocupações é que os pesos atribuídos a cada critério acabaram por gerar grandes descontinuidades na concessão das bolsas.

O documento do pró-reitor dá um exemplo: “de acordo com o Modelo Capes, um programa no colégio da vida com nota 6, localizado numa cidade com IDHM muito alto e com número médio de 32 mestrados por ano, deve receber uma cota de 20 bolsas de mestrado. Porém, se o mesmo programa tivesse titulado em média 33 mestrados, receberia 36 bolsas. Um salto de 16 bolsas a mais como prêmio por titular apenas 1 mestrado a mais por ano”.

Outra consequência foi o desequilíbrio do incentivo à qualidade em relação ao tamanho dos programas de pós-graduação. O tamanho é medido pelo número de mestres e doutores que cada programa forma por ano. Neste caso, o documento da pró-reitoria aponta que a variação na escala de pesos é muito maior para o critério de tamanho do que para o critério de nota. Enquanto a cota inicial de bolsas por critério de nota varia por um fator máximo de 3,5 para o mestrado e 1,75 para doutorado, na conta pelo critério de tamanho, a cota inicial varia por um fator máximo de 6. Assim, o modelo “incentiva e premia mais o tamanho do que a qualidade do programa”, diz a carta da pró-reitoria.

“O entendimento principal era de que a nota do programa seria o vetor principal do processo de concessão e não o tamanho”, diz Silva Filho. Ele explica que, a partir desse entendimento, a USP sugeriu à Capes algumas melhorias no modelo matemático. O modelo da USP recalcula os pesos de cada critério, reduzindo o fator máximo de variação do tamanho do programa e aumentando o fator máximo por nota do programa. Além disso, a USP também propôs alterações na cota inicial de bolsas.

Segundo Silva Filho, o modelo matemático da Capes trouxe “algumas distorções que esse modelo da USP trata de forma mais equânime. Ao invés de ser aqueles degraus, é como se fosse uma rampa”, compara o pró-reitor adjunto.

Modelo de concessão de bolsas reforça desigualdades

 

Segundo Thiago Signorini Gonçalves, da UFRJ, a nota dos programas de pós-graduação nas avaliações da Capes tem uma forte correlação com o números de mestres e doutores titulados. Ocorre que os programas que mais formam mestres e doutores por ano são aqueles mais estabelecidos, maiores e que têm mais acesso a diferentes fontes de financiamento para a pesquisa – justamente por isso, têm maior capacidade de formar um número mais elevado de estudantes anualmente. Assim, na opinião de Gonçalves, a nota não reflete necessariamente a excelência de um programa de pós-graduação, já que programas novos, em geral, começam com nota 3.

“Uma narrativa que a gente tenta combater é que os programas de nota mais baixa são piores e os de notas maiores são melhores, porque, muitas vezes, (as notas baixas) indicam programas recentes. Se você sufoca o crescimento na base da pirâmide, você sufoca o crescimento da pós-graduação no País inteiro”, afirma o professor, que coordena o programa de astronomia da UFRJ. O programa foi fundado em 2003 e abriu o doutorado em 2010, o que o coloca na condição de programa de pós-graduação relativamente jovem. Com as novas regras, ele perdeu parte significativa das bolsas permanentes que detinha até o ano passado.

Além disso, Gonçalves chama atenção ao fato de que os pouquíssimos programas de pós-graduação sediados em municípios com baixo IDHM estão todos, atualmente, avaliados com notas 3 ou 4. Como a atual metodologia da Capes atribuiu um peso pequeno ao critério do IDHM, o resultado é que as novas regras não garantem o apoio à pós-graduação em regiões mais carentes. Os cursos que funcionam nessas regiões foram duplamente prejudicados: pelo pouco peso do IDHM no modelo e pelo fato de serem menos consolidados. Neste caso, em vez de combater as desigualdades, a Portaria 34 acaba por acentuá-las.

“Aí você vai olhar a distribuição dos programas (com nota) 3 e 4, a maior concentração deles é exatamente em regiões menos consolidadas, como Norte, Nordeste, alguns estados da região Centro-Oeste”, comenta Silva Filho, lembrando que a pós-graduação da USP foi uma das primeiras do Brasil a funcionar no molde atual, que teve início com um documento federal de 1965.

Neste sentido, uma área que parece ter sido particularmente afetada é a de Biodiversidade. Em mais um documento dirigido à Capes no mês de julho, coordenadores e vice-coordenadores de programas da área afirmam que “muitos PPGs [programas de pós-graduação] simplesmente não vão dispor de nenhuma bolsa de estudos para pós-graduandos no início do período letivo de 2021, enquanto outros PPGs poderão atender muito parcialmente a demanda qualificada de alunos”.  Com importância estratégica, a área de Biodiversidade foi criada em 2011 no âmbito da Capes. Reúne programas de pós-graduação em Botânica, Ecologia, Oceonografia Biológica e Zoologia, muitos dos quais atualmente têm notas 3, 4 e 5. Os programas avaliados com notas 6 e 7 estão sobretudo na região Sudeste.

Jornal da USP