Antes mesmo de sua campanha à Presidência da República, Jair Bolsonaro já deixava claras suas posições opostas ao caráter laico do Estado brasileiro. Mantendo o discurso após ganhar as eleições, o presidente deu sinal verde ao avanço de grupos religiosos fundamentalistas contra a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença, previstas na Constituição de 1988. Com esta reflexão, o professor Carlos Roberto Jamil Cury abriu a mesa-redonda “Estado laico sob ataque: educação, saúde, direitos humanos”, no último dia do ciclo de setembro da 72ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).
O debate virtual contou com a participação de Luiz Antônio Constant Rodrigues da Cunha, professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Ivanilda Figueiredo, professora adjunta da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), e Sérgio Rego, pesquisador e professor de bioética da Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz).
Filósofo e pesquisador da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), Cury, que foi o mediador da mesa-redonda, reiterou que as posturas, falas e iniciativas do presidente contrariam o artigo 5º da Constituição pelo qual todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza e cujo inciso 6º dispõe que é inviolável a liberdade de consciência e de crença. “A liberdade de religião se soma à liberdade frente à religião”, declarou Cury.
O sociólogo Luiz Antônio Constant Rodrigues da Cunha, que desde 2006 tem se dedicado especificamente à pesquisa sobre a laicidade do Estado, lembrou que na ocasião da promulgação da Constituição de 1988, a SBPC participou de um fórum de entidades que apresentou uma proposta conjunta no sentido de garantir a inclusão da palavra “laica” no texto constitucional.
“O fato é que a defesa da educação laica foi perdedora, na realidade, por uma série de arranjos, articulações e troca de favores, o ensino religioso nas escolas públicas foi inserido no texto constitucional.” Segundo ele, a Prova Brasil de 2018 – aplicada a cada dois anos e respondida pelos diretores – demonstrou que 70% das escolas de ensino fundamental públicas oferecem ensino religioso. No entanto, 90% não têm laboratório de ciências e 75% não têm biblioteca. “O mais incrível é que das escolas de ensino fundamental públicas que ministram ensino religioso, 60% exigem frequência obrigatória (ao curso de religião).”
Ivanilda Figueiredo, que é professora adjunta de Direito e Pensamento Político e Direitos Humanos da Uerj, acrescentou que os embates do Estado laico têm servido para uma deslegitimação da pauta dos direitos humanos. Focando sua análise no Programa Nacional de Direitos Humanos, instituído em 2009 por decreto (PNDH 3), Figueiredo pontuou sobre como grupos religiosos radicais atuaram para derrubar as pautas que compunham esta que era “uma espécie de carta de intenções”. O PNDH3 tratava da ideia de aborto como assunto de saúde pública, questões relacionadas à união estável entre pessoas do mesmo gênero, o direito à terra, o controle social da mídia e a comissão nacional da verdade.
“Os primeiros ataques vieram de atores políticos ligados às igrejas católica e evangélica e esses atores pegaram aqueles temas que têm mais resistência social (direitos das mulheres e LGBT) e transformaram em uma grande campanha contra o PNDH 3 que chamavam de “diabo”, relatou. Segundo Figueiredo, foi dentro dessa dinâmica que nasceu a Associação dos Juristas Evangélicos (Anajure), da qual uma das fundadoras é a ministra da Família Damares Alves. Hoje, essa entidade – que tem um equivalente entre juristas católicos – influencia cerca de 200 projetos de lei no Congresso Nacional, com ênfase naqueles que tratam dos direitos LGBT e mulheres, ajudando na divulgação do distorcido conceito de Ideologia de Gênero.
O médico Sérgio Rego centrou sua exposição na defesa do respeito às pessoas no contexto dos cuidados em saúde. Pesquisador titular da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Coordenador do Programa de Pós-Graduação em bioética aplicada à saúde coletiva, atuando na Fiocruz, Sergio Rego relatou sobre as transformações ocorridas nas últimas décadas de prática médica, que passaram a levar em conta a autonomia do paciente e a decisão compartilhada.
Ele alertou para a tentativa que vem de muito tempo, de religiões e corporações profissionais de controlar os corpos, em especial das mulheres, meninas e mais recentemente, da população LGBT. Este movimento teve um episódio recente na tentativa de grupos religiosos de impedir o aborto de uma menina de 10 anos que havia sido estuprada pelo tio. “Em um país que se pretende democrático e plural, a ética pública tem que ser laica, tem que ser respeitosa das crenças e das não-crenças, sem impor suas interpretações particulares de quaisquer escrituras aos que não professem as mesmas crenças ou a sua falta de crenças”.
Assista ao debate na íntegra no canal da SBPC no YouTube, clicando nesse link.
Jornal da Ciência