Nos anos em que o Brasil era parte do Império português, era considerado um crime pregar contra a imortalidade da alma. Isso porque, no Império, o governo era legitimado pela Igreja Católica, cuja doutrina afirma que a alma dos mortos se separa de seu corpo e segue vivendo no céu ou no inferno. A separação entre Estado e igreja, que caracteriza um Estado laico, é algo relativamente recente no Brasil. As características e os desafios do processo de laicização foram o tema de conferência proferida pelo professor emérito da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Luiz Antônio Cunha, ontem, durante a Reunião Anual da SBPC. “O Estado laico é um dos temas mais candentes no noticiário internacional na contemporaneidade. Por isso, acho muito importante a SBPC abrir espaço para discutir esse assunto em sua Reunião Anual”, disse ele, ao abrir a conferência.
Conforme explicou Cunha, o Estado laico é imparcial em matéria de religião, seja nos momentos de conflito, seja nas alianças entre as organizações religiosas, respeita todas as crenças, suas práticas e instituições, desde que não atentem contra a ordem pública, assim como respeita o direito de não se ter crença alguma e até se opor publicamente a elas. Ainda segundo ele, o Estado laico não favorece nem dificulta a difusão de ideias, sejam elas religiosas, indiferentes à religião ou contrárias a ela. No entanto, em um regime de laicidade não se pode admitir que instituições religiosas imponham que leis sejam aprovadas ou vetadas, nem que políticas públicas sejam vetadas por causa delas. “Na verdade, religiosos de todas as crenças têm o direito de influenciar a ordem política tanto quanto os não religiosos, afirma o professor.
De acordo com ele, a laicidade é, antes de tudo, fruto de um processo, com avanços e recuos. Na contemporaneidade vemos estados onde a fusão entre os campos político e religioso é nítida, como, por exemplo, no Líbano. “O poder político está dividido entre muçulmanos e cristãos e as eleições ocorrem no âmbito das comunidades religiosas”, explica Cunha. “Além disso, no Líbano não há casamento civil”, completa. Há países onde que ocorre um tipo de normatização discriminatória do campo religioso que pode ser positiva ou negativa. “A China adota uma legislação intensa no campo religioso, com fortes restrições ao cristianismo reformado, ao budismo tibetano e ao islamismo. Já na Rússia, vigora uma forte aliança com a igreja cristã ortodoxa que resulta em privilégios e sustentação econômica”, conta o professor. Ainda segundo ele, de modo similar, na Argentina, o Estado sustenta o culto católico, ao pagar salários dos padres e financiar seminários. Os bispos têm passaporte diplomático. Na burocracia estatal existe uma divisão chamada Direção Geral do Culto Católico. “Trata-se de um exemplo de discriminação positiva da religião católica”, comenta Cunha.
A oficialização da laicidade por um Estado tampouco garante que um Estado seja, de fato, laico. A constituição da Índia é laica, mas o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, implementou uma série de políticas públicas visando a valorização dos valores e da cultura hindu em um exemplo de manipulação de demandas religiosas para a conquista ou consolidação do poder político. No Brasil, a Constituição Federal não é explícita sobre a laicidade, mas seu artigo 5º, prevê a liberdade de crença religiosa aos cidadãos, além da proteção e respeito às manifestações religiosas. São vários os exemplos, no entanto, de como os limites entre a igreja e o Estado brasileiro são fluídos. Um dos mais recentes são as discussões no Congresso Nacional que podem tornar obrigatório o ensino religioso nas escolas públicas.
Em alguns casos a atuação de instâncias supranacionais favorecem a aproximação com a laicidade. “Para ser aceita na União Europeia, a Grécia teve que extinguir a informação religião praticada pelo indivíduo das carteiras de identidade. Por outro lado, a Hungria, país que apoia abertamente o cristianismo, rejeita imigrantes muçulmanos, o que vai contra uma determinação da União Europeia, que ainda não conseguiu dissuadir o governo húngaro a mudar de postura”, finaliza Cunha.
Por Patricia Mariuzzo para o Jornal da Ciência