Mais que um debate sobre a geologia, o Antropoceno está imerso na desigualdade socioeconômica que atravessa o planeta. Esse aspecto, que já foi abordado por cientistas sociais, deve ser reafirmado com a recente rejeição do Antropoceno como era geológica. Esta é a conclusão da historiadora Alice Fernandes Freyesleben, que pesquisa história da Terra.
No dia 5 de março, foi divulgado que a Comissão Internacional de Estratigrafia (ICS), ligada à União Internacional de Ciências Geológicas (IUGS), rejeitou a proposta de um grupo de trabalho específico para finalizar o Holoceno, a era atual, e iniciar o Antropoceno.
Termo de origem grega, proposto pela primeira vez em 2000 pelo químico holandês Paul Josef Crutzen (Prêmio Nobel de 1995) para nomear o que vem sendo tratado como nova era geológica, o Antropoceno é caracterizado pelo impacto das atividades humanas.
Aquecimento global da temperatura atmosférica; poluição da terra, mar e ar por combustíveis fósseis e resíduos plásticos; extinção em massa de insetos e plantas; contaminação da vida humana e não humana por agrotóxicos são evidências deste impacto comprovadas cientificamente.
Pelo lado dos geólogos, a decisão ainda está sendo digerida. Aguardando maiores esclarecimentos – já que até agora não houve um comunicado oficial explicando os motivos da rejeição – Nicolás M. Stríkis, professor do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo (USP) e defensor do Antropoceno como nova era, reconhece que não havia consenso na comunidade geológica.
Por outro lado, os cientistas sociais vêm há décadas apontando incongruências em se atribuir a toda a humanidade os efeitos das atividades destruidoras do meio ambiente, dado a enorme desigualdade na produção destes efeitos.
“Não só a desigualdade, mas também a diferença de responsabilidades”, observa Freyesleben, que publicou em 2023 o estudo “Os Tempos do Antropoceno: reflexões sobre limites, intensidade e duração” na revista Tempos da História.
Freyesleben recebeu a decisão do ICS como positiva. “Resolve e acomoda melhor muitos debates sobre Antropoceno que aconteciam dentro das ciências humanas”, comentou. A ciência do clima tem levantado cada vez mais evidências de que a maioria da população, em especial nos países pobres e em desenvolvimento, é vítima – e não causadora – do aquecimento global, provocado pelo alto consumo dos habitantes dos países ricos e industrializados.
A historiadora lembra que “a história humana é atravessada por desigualdades socioeconômicas que se expressam em um nível espacial também” e que, por esse motivo, o termo que generaliza a humanidade (Antropoceno) tem que ser usado com cuidado. “Quando se fala ‘o homem’ que está transformando a Terra, que está acabando com a Terra, é importante complexificar e não simplificar o discurso. Acho que são atividades específicas, são interesses humanos específicos, são humanos específicos”, frisou.
Ricos e pobres
Essa distinção já havia sido apontada e comprovada por pesquisadores australianos que estudaram e publicaram (em 2004) sobre a trajetória do Antropoceno e embasaram a definição da nova era geológica a partir do que chamaram de “A Grande Aceleração” – uma referência ao clássico “A Grande Transformação” de Karl Polanyi.
Tomando o ano de 1750 como ponto de partida, a equipe, liderada pelo químico Will Steffen, analisou 24 gráficos que demonstravam a evolução de indicadores como população, crescimento económico, utilização de recursos naturais, urbanização, globalização, transporte e comunicação até os dias atuais. A data inicial foi escolhida com base na proposta de Crutzen que sugeria o fim do século XVIII como início do Antropoceno, época em que a Revolução Industrial começou, coincidindo com a invenção da máquina a vapor por James Watt, em 1784.
O primeiro estudo abarcava e juntava quase todos os países. Posteriormente, em 2015, alertados pelos cientistas sociais, Steffen e equipe publicaram um novo estudo, dessa vez separando os mesmos indicadores entre os países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e o grupo de nações em desenvolvimento conhecido como BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul).
Na análise do segundo artigo, os pesquisadores se disseram “surpresos” com a constatação de que o crescimento populacional, um dos indicadores mais importantes da pegada ambiental da humanidade, ocorreu na maior parte no mundo não-OCDE, mas a economia mundial (refletida pelo PIB) ainda é fortemente dominada pelo mundo OCDE.
“Apesar da mudança da produção global (tradicionalmente baseada nos países da OCDE) para os países BRICS, a maior parte da atividade econômica e, com ela, a maior parte do consumo, permanecem em grande parte dentro dos países da OCDE”, constataram. Em 2010, os países da OCDE representavam 74% do PIB mundial, mas apenas 18% da população mundial. Eles concluem que a profunda escala da desigualdade global distorce a distribuição dos benefícios da “Grande Aceleração” e confunde os esforços para lidar com os seus impactos no Sistema Terrestre.
Marca inconteste
Entre os geólogos, alguns poucos já se manifestaram inconformados com a rejeição ao Antropoceno, ainda que ninguém tenha contestado a ação humana na contaminação ambiental e as várias marcas da atividade antrópica em taxas de erosão, de acumulação de macronutrientes (nitrogênio, fósforo, etc.) acumulados nas águas dos rios, mares e oceanos.
Nicolás M. Stríkis explicou que todos os limites de tempos geológicos estão constantemente em revisão. O próprio Holoceno – era atual iniciada há 11,7 mil anos – sofreu alterações desde sua proposição inicial em 1837. A mais recente delas foi em julho de 2018, quando a IUGS estabeleceu três subdivisões distintas (Gronelandês, Norte Gripiano e Meghalaiano) a partir de uma demanda da Comissão de Estratigrafia. Segundo Strikis, essas subdivisões tampouco são consenso entre os geólogos. “São alguns eventos que nós temos dúvidas sobre sua expressão global e foram aprovadas. Enquanto o Antropoceno não foi”, criticou.
Janes Rocha – Jornal da Ciência