A defesa do sistema brasileiro de ciência e tecnologia, construído ao longo de décadas de pesquisas, tem sido uma das prioridades do filósofo, professor da Universidade de São Paulo (USP) e ex-ministro da Educação, Renato Janine Ribeiro, desde que assumiu a presidência da SBPC, em julho de 2021. Em entrevista para o CEE Podcast, Janine alerta que o sistema se encontra fortemente ameaçado por cortes de verbas e que é preciso manter a qualidade da ciência e construir projetos para um novo Brasil. “O país vai precisar retomar a trilha da valorização da educação tanto básica quanto da superior, da ciência como componente principal do desenvolvimento de uma sociedade, inclusive de sua economia, mas também de suas relações sociais. Vai ter que retomar a ênfase na inclusão social, o prestígio da cultura, a preservação do meio ambiente e o desenvolvimento da saúde”, explica.
Segundo Janine, não se trata apenas de retomar um caminho passado, mas de “fazer isso melhor”. Isso exigirá, em sua avaliação, “aprender com os erros, com as experiências” e a partir daí ver o que deve ser priorizado: a definição de “um projeto de desenvolvimento do país com o apoio do conhecimento rigoroso”. Um trabalho demorado que ele acredita que a SBPC, com as 17 sociedades científicas a ela associadas, pode dinamizar e estimular.
Entre os principais desafios da ciência brasileira, Janine destaca a falta de verbas e de uma política consistente para a área. Essa realidade, explica o ex-ministro, tem consequências diretas nos institutos de pesquisa, como, por exemplo, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), local de sua primeira visita após ser empossado à frente da SBPC, e que, conforme constatou, está operando “com um pequeno número dos pesquisadores e com o setor de lançamento de satélites desativado”.
Outro problema enfrentado pela ciência e tecnologia no Brasil, apontado pelo professor, diz respeito à autonomia e ao conhecimento gerado. A longo prazo, ele avalia que o país deverá selecionar áreas de estudo em que pode ter uma atuação de liderança. Como exemplos de objeto de estudo, ele cita a biodiversidade, que oferece “um corpus gigantesco de pesquisa”, e a diversidade humana do país, com suas mais de duzentas línguas indígenas que se somam a muitas outras línguas estrangeiras, devido à intensa migração internacional existente em território nacional. Em temas que não pode liderar, “pela complexidade dos assuntos”, o país deve, em sua avaliação, se manter atualizado e participar, mesmo que de forma colaborativa. “Estas questões requerem definição clara por parte do MCTI e do Ministério da Educação. E, em função disso, políticas importantes de estímulos e incentivos”, conclui.
Janine considera a ciência como a base da economia e a pedra de toque do desenvolvimento. E, para viabilizá-la, ele diz ser fundamental mão de obra qualificada, “que tenha passado por boas universidades e pelo menos uma parte dela pela pós-graduação stricto sensu”. Por isso, o ex-ministro da Educação explica que o Estado e a sociedade brasileira devem utilizar todos os instrumentos ao seu alcance para aumentar a faixa de estudantes no ensino superior, sempre garantindo o ensino de qualidade. Além disso, ele chama a atenção para a necessidade de não descuidar da educação básica, em sua avaliação, um pilar da democracia. “A nossa sociedade avançou na graduação e mesmo na pós-graduação, sem ter resolvido a questão da alfabetização na idade certa, sem ter resolvido a educação básica, então, nós temos que atacar em todas as frentes”, explica.
Ainda em relação à educação, Janine sublinha que, para o país alcançar um novo padrão de desenvolvimento, é preciso continuar identificando novos talentos por meio da ampliação do acesso das camadas pobres ao ensino público de qualidade. A exclusão histórica do acesso à educação mais qualificada, no Brasil, das camadas pobres, “que muitas vezes coincidem com os negros, indígenas e seus descendentes, mas também incluem brancos pobres”, explica o ex-ministro, e a impossibilidade de sua mobilidade social ascendente fizeram “com que perdêssemos uma quantidade enorme de talentos”.
Outra meta importante a ser perseguida pela área da Educação, apontada por Janine, é o letramento científico universal, que permitirá, por exemplo, o entendimento de princípios científicos básicos por parte da população, ajudando com isso o enfrentamento de situações como a pandemia da Covid-19.
Mudanças tecnológicas trazidas, por exemplo, pelo avanço da informática, que permitiram, durante a pandemia, a manutenção do ensino e de boa parte dos serviços funcionando à distância, em sua avaliação, requerem ser discutidas no mundo acadêmico. “Temos que ver como isso vai operar na educação e na ciência,”, diz o professor, sublinhando a importância do ensino presencial para a socialização das pessoas. Em 2021, ele lançou o livro Duas ideias filosóficas e a pandemia, abordando esse tema. “Precisamos pensar esse mundo novo, que Shakespeare chamava de admirável e Aldous Huxley transformou em um perigo, usando a mesma frase do Shakespeare. Temos que fazer com que os aspectos positivos dele sejam valorizados e seus aspectos preocupantes sejam corrigidos. Esse é o papel do mundo acadêmico e do mundo intelectual”.
Outro assunto tratado no livro Duas ideias e uma Pandemia é o papel das vacinas durante a pandemia da Covid-19, que Janine destaca ter se tornado o grande diferencial em relação à Gripe Espanhola, pandemia ocorrida há cem anos, “que matou de 3% a 5% da população mundial”. Em números de hoje, essa proporção corresponderia a cerca de 400 milhões de seres humanos. Enquanto a Covid-19 matou cerca de 15 milhões de pessoas, diz Janine, citando dados divulgados na revista The Economist, o que representa 4% da mortalidade de um século atrás, 96% a menos, portanto. “A ciência foi a grande vitoriosa dessa batalha”, explica
Ao falar da importância da ciência no enfrentamento da última pandemia, ele destaca a velocidade com que se deu seus últimos avanços. “Nós temos quarenta anos de convivência com a Aids sem ter uma vacina contra ela aprovada. Em um ano houve cem experimentos de vacina contra a Covid e pelo menos uma dúzia que veio a público e está cumprindo o seu papel de proteção”, explica, lembrando que esse desenvolvimento científico e tecnológico deve continuar para nos preparar para eventuais novas pandemias.
Se a ciência está alcançando resultados mais rápidos, Janine lembra que a transmissão das doenças, por outro lado, também está mais veloz. “Uma variante pode chegar aqui em uma semana, talvez até menos. A ciência tem que se preparar para isso e nós temos que ter planos B de contingência”. O trabalho de prevenção exigirá, segundo sua avaliação, repensar as formas de gestão da ciência e da saúde, assim como a relação do ser humano com a natureza. “É preciso respeitar a floresta em primeiro lugar e ao mesmo tempo extrair dela o que ela tem de melhor, como, por exemplo, medicações”, explica, “identificando o que na floresta pode ser perigoso para o ser humano”.
Janine destaca que o papel da ciência para a soberania nacional estará no centro dos debates da reunião anual da SBPC que será realizada em Brasília, de 24 a 30 de junho, no formato híbrido. “A noção da independência do Brasil, muito associada apenas ao Grito do Ipiranga e à política do Rio de Janeiro na época, precisa ser complementada”, diz o professor, com o estudo de outros eventos históricos que reforçaram o movimento. Além disso, é preciso destacar, explica, que “a independência não é algo que foi conquistado de uma vez por todas há duzentos anos. A independência é uma batalha cotidiana”. A partir dessa constatação, a pergunta que norteará a reunião da SBPC será: Como a ciência contribui para a independência nacional e pode contribuir?
A esse respeito, Janine cita, como exemplo, a contribuição da cientista Johanna Döbereiner (1924-2000), nascida na então Checoslováquia e cujo centenário e nascimento será comemorado daqui a dois anos. “A Johanna descobriu que podia haver uma forma de fixar o nitrogênio no solo e economizou bilhões de dólares. Isso faz parte da independência nacional assegurada pela ciência”, sublinha. “O mesmo vale para as pesquisas científicas, impacto diretamente tecnológico e pesquisas científicas na área de humanas indicam as relações sociais e políticas como passíveis de melhora, como promissoras”.
Em relação à necessidade de fortalecimento estruturado dos investimentos em C&T, ele demonstra preocupação, pois “apesar das leis e da Constituição, têm sido cortados os recursos”, diz. Janine ressalta, ainda, que é preciso garantir que” as empresas realmente tenham interesse na pesquisa, na aplicação da ciência feita no Brasil para a sua inovação, feita no Brasil ou no mundo, mas estamos pensando muito na contribuição que a ciência brasileira dá para a produção”.
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