O Edital 02/2021 “Pesquisas em Família e Políticas no Brasil”, lançado pela Capes no dia 7 de janeiro, cujas inscrições se encerraram em 15 de março, a partir de um convênio com o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), causou mal-estar na comunidade acadêmica. Diversas instituições se manifestaram, dentre elas a SBPC, por meio de seu Grupo de Trabalho (GT), que classificou o edital como uma política excludente e conservadora.
Segundo o documento divulgado pelo GT da SBPC, Edital “Pesquisas em Família e Políticas no Brasil” e os direcionamentos da ministra Damares Alves’, embora a Chamada, em um primeiro olhar, não deixe claros os vínculos com a política que a ministra Damares Alves vem implantando no MMFDH, “as falas propaladas por ela em transmissões online sobre o edital deixaram evidente a intenção de impor ali uma linha excludente e conservadora, que descaracteriza e ignora a diversidade em termos de arranjos familiares.”
O GT aponta que a ideologia é corroborada por uma transmissão online de uma conversa da ministra com a deputada Bia Kicis (PSL-DF), na qual a ministra fala sobre o Edital 02/2021, situando-o, em diversos momentos, como a “realização de um sonho”, uma obra coletiva iniciada por ela, pela própria Bia Kicis e pelo advogado Miguel Nagib, fundador do movimento Escola sem Partido, no início da década passada.
“A impressão é que ele (o edital) já nasce carimbado e direcionado para determinados grupos e universidades conservadores”, comenta Miriam Grossi, coordenadora do Nigs da UFSC. Grossi destaca que o Brasil conta com mais de 2500 Núcleos de Pesquisa que analisam questões mais atuais e comprometidas com a realidade social no campo de famílias, relações de gênero e sexualidades, aspectos ignorados pelo edital. Ela também chama a atenção para a total inobservância de parâmetros legais assim como de definições nacionais e internacionais no que se refere à proteção das famílias, alinhados aos direitos humanos e à promoção e respeito à diversidade. “O Brasil é reconhecido pelos estudos qualificados sobre estes temas, tanto que nossas revistas são procuradas por pesquisadores latino-americanos”, explica.
Para a coordenadora do Nigs da UFSC, o edital assume de forma acrítica e naturalizada que a família é sempre uma instituição que oferece segurança, acolhimento e proteção a abusos. “Sabemos que em consonância com uma série de estudos nacionais e internacionais, as famílias podem perpetuar opressões patriarcais, práticas abusivas e violentas e violações de direitos humanos. A maioria dos casos de violência sexual contra crianças acontece dentro de casa, e o agressor é conhecido ou alguém da família”, observa.
“Eleger a família como objeto de estudo científico é recusar visões normativas sobre o que ela deveria ser e, em vez disso, levar a sério todas as suas características e diversidade concretas”, afirma a Rede Fluminense de Núcleos de Pesquisa de Gênero, Sexualidade e Feminismos nas Ciências Sociais (RedeGen) em nota oficial.
A RedeGen também concorda que o edital representa um retrocesso em relação às conquistas de pesquisas e políticas públicas que se debruçaram sobre as famílias brasileiras. “Para as Ciências Sociais, o bem-estar das famílias é inseparável das políticas de saúde, renda, trabalho, de combate à pobreza, de erradicação de violência etc. Quanto mais fortalecidas são essas políticas, melhores as condições de vida das famílias e dos indivíduos que as compõem. As chamadas “políticas familiares” do MMFDH são concebidas como inteiramente separadas dessas outras políticas e, por isso, não trarão bem-estar às famílias”, ressalta em nota.
Para o professor Luiz Antônio Cunha (UFRJ), o “Edital da Família” está alinhado com o Decreto nº 10.570 que faz referência a um modelo familiar no “singular”, que pressupõe a existência de uma família única e universal (heteronormativa, moldada na doutrina cristã), visão amplamente defendida pelo governo. Além de ir contrário à perspectiva ampliada de “família”, que abrange as diferentes configurações familiares existentes, previstas na Política Nacional de Assistência Social (PNAS) e reconhecidas por outras instituições, como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
“Para gerir este Edital, a Capes criou um Comitê novo que irá decidir sobre os projetos visando ao estudo especialmente da questão da família. E isso é grave. É uma espécie de drible que se deu nos há muito empregados da agência”, afirma. Para ele, toda essa manobra pode servir de atalho para inserir a ideologia conservadora dos projetos de lei que visavam uma “Escola sem Partido”, que encontraram uma forte resistência, inclusive no Poder Judiciário, no ano passado.
O edital também foi repudiado pela Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS), que, em nota oficial, afirmou que a Chamada é “mais uma peça conservadora e ultra neoliberal do Governo Federal e tem como objetivo patrulhar, coagir e censurar as/ os pesquisadoras/es, inviabilizando o pluralismo indispensável à produção de conhecimento”. Em seu manifesto sobre o edital, os GTs de “Psicologia, Política e Sexualidades” e de “Psicologia e Estudos de Gênero” da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia (Anpepp), afirmam que, ao adotar um “viés ultraconservador” e, tendo como primeiro critério de avaliação, a “Relevância e aderência do projeto de pesquisa aos objetivos e aos eixos estabelecidos para cada área temática do edital”, fica explícito quais temas que devem ser contemplados e executados, cerceando a pesquisa científica que diz pretender promover.
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Vivian Costa – Jornal da Ciência