EDITORIAL: A China estará (ainda) perto de nós?

“O grande desafio atual é conciliar democracia com uma governança baseada em ciência e evidências. Podemos criar um modelo político que combine o uso do conhecimento rigoroso com valores democráticos?”, questiona o presidente da SBPC, Renato Janine Ribeiro, em editorial da sessão especial do JC Notícias desta sexta-feira

whatsapp-image-2025-03-21-at-14-13-47Na década de 1960, mais precisamente em 1967, um filme italiano chamado La Cina è Vicina (“A China Está Próxima”), dirigido por Marco Bellocchio, causou certo impacto. O filme abordava o impacto que a China tinha como mito na época, especialmente pelo maoísmo, já que se estava nos albores da Revolução Cultural, e o pensamento de Mao Zedong era uma referência importante.

A história do filme é complexa e não muito interessante, mas o tema é relevante, pois cada vez mais a China está presente no cenário global – num sentido que nada ou pouco tem a ver com o maoismo, e muito com a economia e a mais ou menos esperada recuperação do peso daquele país no mundo. Na época do filme, o país havia superado a fome severa que assolava sua população desde os ataques dos impérios ocidentais na Guerra do Ópio, em 1840. Essa recuperação só começou com a criação da República Popular da China em 1949. Desde então, o país enfrentou muitas crises, incluindo a própria Revolução Cultural dos anos 1960.

A partir da década de 1980, sob a liderança de Deng Xiaoping, a China passou por um enorme desenvolvimento econômico, superando grandes desafios e tornando-se uma potência global. Hoje, o país é um dos principais parceiros do Brasil no BRICS, um bloco econômico formado por Brasil, Rússia, Índia, China e, mais recentemente, África do Sul. O conceito foi criado por um economista da Goldman Sachs, para identificar grandes economias emergentes. Mas esses países assumiram o acrônimo por conta própria – e buscaram maior integração, resultando na criação do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), atualmente dirigido por Dilma Rousseff, em Xangai.

Diante disso, qual é o papel da China no mundo hoje? O país pode ser considerado aquele que mais apostou na ciência para seu desenvolvimento. Em todas as nações desenvolvidas, a ciência tem um papel crucial, e a economista ítalo-britânica Mariana Mazzucato – amiga pessoal da presidente Dilma, consultora do atual governo brasileiro em várias políticas – estudou a importância dos investimentos públicos em tecnologia e inovação. Seu trabalho desmistifica a ideia de que as grandes empresas de tecnologia surgiram apenas da iniciativa de jovens empreendedores independentes, mostrando que, na realidade, por trás desse avanço, sempre houve um investimento público significativo.

O desenvolvimento da China nos últimos 40 anos pode ser dividido em duas fases. A primeira foi caracterizada por um crescimento acelerado, mas com graves problemas ambientais e pouca preocupação com a sustentabilidade. Nos últimos anos, o país tem revisado essa postura e investido fortemente no combate à poluição. Um exemplo disso é o avanço na produção de carros elétricos, que reduzem significativamente as emissões urbanas. No entanto, as baterias desses veículos ainda representam um desafio ambiental devido à extração e descarte dos minérios utilizados nelas.

Outro exemplo importante foi a resposta da China à pandemia de covid-19. Embora ainda haja debates sobre a origem do vírus, a China foi um dos primeiros países a enfrentar a crise com medidas rigorosas, reduzindo significativamente a mortalidade. O contraste entre sua abordagem e a de países como os Estados Unidos sob Trump e o Brasil sob Bolsonaro evidencia a eficácia das medidas adotadas, incluindo o isolamento físico e o desenvolvimento de vacinas.

Politicamente, a China apresenta um modelo de governança que eu tenho comparado ao “despotismo ilustrado” da Europa do século XVIII. Trata-se de um sistema que se baseia fortemente na ciência e na racionalidade, mas que não é democrático, pelo menos no sentido ocidental (sem sabermos se há outro sentido além deste, aliás). Isso nos leva a reflexões sobre a própria democracia.

A tradição democrática ocidental remonta à Grécia Antiga, em particular a Atenas, onde a democracia era direta. No entanto, a democracia moderna é representativa, criando uma distância entre governantes e governados. A admiração por Atenas persiste, mas é importante lembrar que sua população era insignificante em comparação com o mundo de hoje. Entre o colapso da democracia ateniense diante de Alexandre, o Grande, e sua retomada na Revolução Gloriosa da Inglaterra, em 1688, passaram-se dois mil anos.

Se a China tivesse sido o modelo dominante ao longo da história, talvez os valores confucianos de equilíbrio e conhecimento tivessem moldado a política global de forma diferente.

Mas o que hoje ameaça a democracia não é o despotismo chinês, e sim o avanço – frequentemente negacionista, antítese da Ilustração setecentista – da extrema direita em diversos países, dos Estados Unidos à Eslováquia, da Itália à Índia.

O grande desafio atual é conciliar democracia com uma governança baseada em ciência e evidências. Podemos criar um modelo político que combine o uso do conhecimento rigoroso com valores democráticos? Que assim una o melhor do legado ocidental, democrático, com o da experiência chinesa, do recurso à ciência como base para o desenvolvimento não só econômico, mas também social? Esse é um dos dilemas do nosso tempo e a grande esperança para o nosso futuro.

Renato Janine Ribeiro, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC

 

Veja as notas do Especial da Semana – China, a superpotência científica

O Globo, 23/02/2025 – EUA perdem espaço para China na produção científica

O Globo, 18/03/2025 – A ciência da guerra fria

The Hill,07/03/2025 – Os cortes científicos de Washington são um presente para Pequim

World Economic Forum, 11/03/2025 – Tensões EUA-China: o que isso significa para a ciência

CNN Brasil, 09/03/2025 – China anuncia fundo de alta tecnologia para desenvolver IA

BBC Brasil, 29/01/2025 – Como China pode ganhar (ainda mais) força na América Latina diante das tensões entre região e governo Trump

Brasil de Fato,14/02/2025 – China pode ajudar outros países a combater a hegemonia tecnológica e digital dos EUA, diz especialista chinês

Revista Fórum, 16/01/2025 – China tem papel central na geopolítica do mundo multipolar, aponta Fórum Econômico Mundial

BBC Brasil, 17/01/2025 – Cinco grandes desafios que China tem pela frente neste ano

BBC Brasil, 21/10/2024 – Por que o século 21 é o ‘século da China’

The Conversation Brasil, 18/11/2024 – Os Estados Unidos correm o risco de perder para a China na corrida de volta à Lua

Olhar Digital, 18/03/2025 – Como os EUA estão perdendo a corrida do “Sol artificial” para a China

O Globo, 11/08/2024 – Como a China desenvolveu sua capacidade tecnológica: aulas de química e laboratórios de pesquisa

O Globo, 14/03/2025 – Mina de ouro que pode ser a maior do mundo encontrada na China pode mudar a economia do planeta

MCTI, 21/11/2024 – Parceria Brasil-China: visita do presidente Xi Jinping reforça cooperação em ciência, tecnologia e inovação

Estadão – Lula e Xi Jinping assinam 37 acordos, sem adesão formal à nova Rota da Seda

DW-Brasil – Brasil e China assinam 37 acordos, sem adesão à Rota da Seda

Agência Brasil – Presidentes do Brasil e da China assinam 37 acordos bilaterais