EDITORIAL: A descriminalização da maconha e a reparação histórica

“Há uma questão ética que deve ser considerada: não se pode punir uma pessoa por algo que não prejudica outrem”, escreve Renato Janine Ribeiro, presidente da SBPC, em editorial da sessão especial do JC Notícias desta sexta-feira

WhatsApp Image 2024-06-28 at 13.37.25O Supremo Tribunal Federal (STF), em votação emblemática, decidiu esta semana pela descriminalização do porte de maconha para consumo próprio, estabelecendo um limite de 40 gramas da erva ou seis plantas fêmeas. Descriminalizar é diferente de legalizar – esta última é uma prerrogativa que cabe ao Congresso Nacional -, mas a decisão marca o início de uma necessária mudança na abordagem das políticas de drogas no Brasil.

A criminalização das drogas é, historicamente, uma ferramenta de opressão contra negros e pobres. No Brasil, onde a cor da pele frequentemente determina a aplicação mais branda ou severa da lei, a discriminação racial se manifesta em sua forma mais cruel justamente no sistema penal. Jovens negros e periféricos são desproporcionalmente alvos de prisões pelo crime de tráfico de drogas, independentemente da quantidade com a qual são “pegos”. Para os brancos da classe média, o enquadramento majoritário, quando acontece, é tratado com eufemismos e medidas administrativas, o famoso “tapinha nas costas”.

A maconha é uma das plantas medicinais mais antigas conhecidas: existem registros seus de até 12 mil anos atrás. O imperador chinês Shen Nung, considerado o pai da medicina chinesa, listou a cannabis em sua farmacopeia já em 2800 a.C. Escrituras hindus, bem como textos assírios, gregos e romanos, também mencionam as propriedades terapêuticas da erva há milênios. Acredita-se que a maconha tenha sido trazida ao Brasil pelos portugueses durante o período de descobrimento e, mais tarde, de forma mais consistente, pelos negros escravizados da África. Por séculos, a planta foi amplamente utilizada aqui: pela elite, como medicamento, vendida legalmente em farmácias no Rio de Janeiro colonial, e pelos negros escravizados, como uma forma de alívio espiritual e fuga da brutalidade de seus senhores. Foi esse uso recreativo por pretos e pobres que irritou os escravocratas, temerosos de que isso pudesse afetar a produtividade nas suas lavouras. Essa associação racista deixou uma marca indelével em nosso sistema Judiciário.

Em 1830, uma norma estabelecida no Código de Posturas da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, ainda durante o Império, proibiu o uso e a venda da maconha, punindo, majoritariamente, os negros. A cannabis foi proibida em todo o Brasil em 1938, por meio do Decreto-Lei Federal nº 891, que estabeleceu pena de prisão para condenados por uso, porte ou plantio para consumo pessoal.

Dados de 2020 indicam que aproximadamente 39,42% dos presos no sistema penitenciário brasileiro estão reclusos por crimes relacionados às drogas, sendo a maioria deles composta de negros. A falta de critérios objetivos para diferenciar usuários de traficantes tem permitido uma aplicação arbitrária da lei, na qual a cor da pele é frequentemente o fator decisivo. Quase cem anos se passaram, e a Justiça continua, em vão, tentando erradicar a droga por meio da repressão e criminalização, ao invés de tratar seu uso sob uma perspectiva de saúde pública. A criminalização da maconha no Brasil não apenas foi incapaz de controlar seu uso, mas também contribuiu para a superlotação carcerária e a perpetuação da desigualdade racial.

Economicamente, a política punitiva é onerosa. O Brasil gasta cerca de R$ 591,6 milhões ao ano para manter presos condenados por portar até 100 gramas de maconha, segundo estimativas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Esse recurso poderia ser redirecionado para políticas públicas de saúde e educação, ou investido em pesquisa e desenvolvimento de medicamentos à base de cannabis, gerando saúde, desenvolvimento e riqueza.

O IPEA mostrou, há poucos dias, que 42 mil pessoas não estariam presas se o limite de porte de maconha, para caracterizá-los como usuários, fosse de 25g – aquém dos 40 que o STF acaba de determinar. Pensando de forma puramente pragmática, a libertação dessas pessoas acarretaria – acarretará – uma economia de R$ 1,3 bilhão por ano para o Poder Público. E note-se que esse valor se refere apenas ao que é gasto com os aparelhos punitivos – polícia, Ministério Público, Judiciário, penitenciárias. Não inclui o que perdemos com o desvio, dessas pessoas, do mercado de trabalho, ou com o prejuízo que gera, para a sociedade, sua iniciação no mundo do crime dentro das cadeias.

Obviamente, além dos cursos econômicos e mais importante que eles, é a enorme injustiça que é cometida contra multidões de brasileiros e brasileiras, que assim são privados da liberdade por algo que não causa mal a nenhuma outra pessoa, e cujo dano ao próprio usuário é, pelo menos, bastante duvidoso. Há uma questão ética que deve ser considerada: não se pode punir uma pessoa por algo que não prejudica outrem.

A bem-vinda decisão do STF representa uma mudança de rota, mitigando arbitrariedades e injustiças, especialmente contra a juventude negra periférica. Alinha o Brasil a uma tendência global de abrandamento das políticas de drogas, movendo-se do enfoque punitivo para a abordagem da saúde pública, respaldada por evidências científicas dos benefícios terapêuticos da cannabis explorados há milênios.

Ao descriminalizar o porte de maconha, a Corte não apenas alivia o sistema carcerário sobrecarregado, mas também confronta uma herança racista que tem castigado desproporcionalmente a população negra do país. É um movimento que reconhece a necessidade de políticas de drogas mais humanas e equitativas, e um chamado à ação para o Congresso Nacional, que está envias de votar a Proposta de Emenda à Constituição 45/2023, também conhecida como PEC das Drogas, que criminaliza a posse e o porte de qualquer quantidade de droga. É hora do Parlamento brasileiro rever a nossa história e legislar em favor da igualdade, do bem-estar da população e da justiça.

Renato Janine Ribeiro, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC

 

Veja as notas do Especial da Semana – Maconha descriminalizada

O Globo, 27/06/2024 – Com decisão do STF, Brasil passa a compor grupo de 19 países que descriminalizaram porte de maconha

Poder 360 – STF fixa limite de 40 g de maconha para diferenciar usuário de traficante

Brasil de Fato, 26/06/2024 – Decisão do STF sobre porte de maconha traz avanços, mas não modifica guerra às drogas, apontam especialistas

BBC Brasil, 26/06/2024 – Quais são as regras sobre a maconha em países que descriminalizaram ou legalizaram a droga

Agência Câmara de Notícias – Deputados comentam decisão do STF a favor da descriminalização da maconha para uso pessoal

UOL, 27/06/2024 – Por que decisão do STF que descriminaliza maconha pode durar pouco?

Folha de S. Paulo, 21/06/2024 – SP enquadrou 31 mil negros como traficantes em situações similares às de brancos usuários

G1, 26/06/2024 – Brasil gasta quase R$ 600 milhões ao ano com presos condenados por portar até 100 gramas de maconha, aponta Ipea

UOL – Maconha: além de descriminalizar, é preciso desencarcerar

Nexo, 09/04/2024 – “Maconha é alvo de pânico moral recente e criminoso”, afirma Sidarta Ribeiro

Rádio Agência, 26/06/2024 – Cannabis é a droga mais utilizada no mundo, aponta levantamento da ONU

BBC Brasil, 26/06/2024 – Maconha faz mal? Os efeitos da droga na cognição e na mente, segundo pesquisas

Pública, 04/11/2023 – Flores do bem: neurocientista Sidarta Ribeiro explica relação entre maconha e saúde

Medicina S/A,12/01/2024 – Custo mensal para tratamento com cannabis medicinal caiu 41% em 2 anos

O Globo, 23/01/2024- ‘Cannabis’ sem privilégio

CNN Brasil, 014/04/2024 – Relembre marcos dos 10 anos de cannabis medicinal no Brasil

Conjur, 17/05/2024 – A PEC 45/2023 e a cannabis no Brasil

Agência Brasil, 26/06/2024 – Lula diz que ciência deve decidir sobre uso de maconha