EDITORIAL – A falta de lucro é um dos principais fatores impeditivos no combate das doenças negligenciadas

Nesta sexta-feira, a Editoria Especial do JC Notícias discute como o combate às doenças que, tradicionalmente, afetam as classes mais pobres, não pode ser dissociado da luta contra a desigualdade social

whatsapp-image-2025-01-17-at-14-30-49Assim como seu nome sugere, as doenças negligenciadas receberam essa classificação por serem esquecidas pelas indústrias farmacêuticas. Ou seja, apesar de serem doenças tratáveis e curáveis, seus métodos de tratamento são antigos e por vezes inadequados, já que não há investimentos contínuos em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) que busquem curas ou formas de diagnóstico para estes males.

Mas por que há essa negligência? Porque são doenças que, tradicionalmente, afetam as classes mais pobres, pessoas que não conseguem arcar com tratamentos caros de saúde. E, aqui, a indústria farmacêutica se comporta menos como farmácia e mais como indústria, priorizando mais o lucro do que o dever de cuidar das pessoas.

Em 2012, a jornalista Eliane Brum conseguiu definir o que é uma doença negligenciada e seu contexto de injustiça sem usar este conceito. Convidada pela ONG Médicos Sem Fronteiras a visitar um posto da entidade na Bolívia, Brum viu ali populações inteiras condenadas pela doença de Chagas e tentando garantir o mínimo de existência por meio de fórmulas medicinais paradas no tempo. Incrédula pelo mal que um mero mosquito fazia e pelo descaso de indústrias que haviam descontinuado as pesquisas sobre Chagas, a jornalista encontrou o melhor título para definir tal contexto: “Os vampiros da realidade só matam pobres”.

Aqui no Brasil, as doenças negligenciadas – chamadas principalmente de doenças tropicais negligenciadas (DTNs) – continuam a representar um grande desafio para a saúde pública, especialmente nas regiões mais vulneráveis, onde o acesso a saneamento básico e a serviços médicos é limitado.

Anualmente, 28,9 milhões de brasileiros estão expostos ao risco de contrair alguma das doenças tropicais negligenciadas, o que representa 14% da população total. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), essas doenças afetam mais de 1 bilhão de pessoas no mundo a cada ano.

As DTNs são causadas por agentes infecciosos ou parasitas e consideradas endêmicas em populações de baixa renda. Essas enfermidades, como a malária, a já citada doença de Chagas, a leishmaniose visceral, a filariose linfática, a dengue e a esquistossomose, entre outras, apresentam indicadores inaceitáveis e investimentos reduzidos em pesquisa, produção de medicamentos e no controle delas.

O fato é que o Brasil continua vulnerável a diversas DTNs. Das mais 20 moléstias listadas pela OMS que integram esse grupo, apenas duas não estão presentes no País: a dracunculíase, causada por um parasita chamado verme-da-guiné, que produz úlceras, principalmente nas pernas; e a tripanossomíase africana, desencadeada por diferentes subespécies de Trypanosoma brucei, transmitidos pela mosca tsé-tsé (Glossina), e que, em humanos, afeta o sistema nervoso, levando as vítimas, no extremo, ao coma e à morte.

Para chamar a atenção ao impacto das DTNs e aumentar a conscientização sobre o sofrimento causado por essas enfermidades, desde 2021, o Dia Mundial das Doenças Tropicais Negligenciadas é comemorado em 30 de janeiro. A data tem como objetivo mobilizar apoio para o controle, eliminação e erradicação dessas doenças. Inclusive, também se espelha à Meta 3.3 do Objetivo 3 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, que visa erradicar as doenças tropicais negligenciadas até 2030, junto com outras patologias.

Embora o mundo tenha alcançado progressos nas últimas décadas, ainda há muito a ser feito. No Brasil, uma medida importante foi sancionada em setembro do ano passado: a Lei 14.977, que estabelece a produção de medicamentos para doenças negligenciadas. Na ocasião, o relator do projeto, o senador Paulo Paim (PT-RS), destacou que os medicamentos para essas doenças geram baixo lucro para a indústria farmacêutica, o que aumenta o risco de desabastecimento para os pacientes.

Entre as organizações que trabalham em prol das pessoas que sofrem de doenças negligenciadas está a Iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi), criada em 2003 pela Médicos Sem Fronteiras e outras organizações internacionais como uma organização sem fins lucrativos para desenvolver novos medicamentos para doenças negligenciadas.

A DNDi ajudou a salvar milhões de vidas em todo o mundo, descobrindo, desenvolvendo e fornecendo acesso a 13 tratamentos novos, econômicos e mais bem tolerados para pacientes com doenças negligenciadas.

Diante disso, é fundamental investir em prevenção, diagnóstico e tratamentos mais acessíveis e eficazes. Para isso, é necessário impulsionar a inovação e a pesquisa, garantindo que as pessoas afetadas por essas doenças tenham acesso a cuidados de saúde adequados.

Dentro do histórico da SBPC, temos uma luta constante que é provar a importância da Ciência na formulação e execução de políticas públicas, e a questão das doenças tropicais negligenciadas ilustra essa realidade. É necessário que os atores dos poderes Executivo e Legislativo entendam que as descobertas da Ciência não devem ficar apenas nela, mas sim atender a sociedade. Precisamos olhar para os males que atingem o Brasil e investir no conhecimento que aqui é formado, para assim podermos obter o desenvolvimento que tanto o Brasil merece.

Renato Janine Ribeiro, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC)

 

Veja as matérias do JC Especial da Semana– Doenças Negligenciadas

BBC Brasil, 29/02/2024 – As doenças ‘esquecidas’ que deixam 28 milhões de brasileiros sob risco

Agência Senado, 19/09/2024 – Sancionada lei que determina produção de fármacos para doenças negligenciadas

Nexo, 12/09/2024 – Como enfrentamos as doenças tropicais negligenciadas

Veja, 05/06/2024 – O necessário esforço para eliminar doenças negligenciadas

The Conversation, 08/02/2024 – As doenças negligenciadas precisam de pesquisas, mas o financiamento é insuficiente

Nexo, 12/09/2024 – ‘Ainda temos altos índices de doenças ligadas à pobreza’

Nexo, 12/09/2024 – ‘Não existe doença tropical que não seja negligenciada’

Nexo, 12/10/2024 – ‘Combate a doenças é uma luta contra desigualdades sociais’

Folha, 31/10/2024 – Saúde do G20 aprova coalizão para produção de vacinas contra doenças negligenciadas

BBC Brasil, 5/06/2024 – O remédio inovador contra malária que começou a ser distribuído para crianças na Amazônia

Gov.br, 10/12/2024 – Ministério da Saúde e OMS reforçam parceria no enfrentamento à hanseníase

ONU Brasil, 30/01/2024 – Dia Mundial reforça luta contra desigualdades por trás de doenças negligenciadas

Rodrigo de Oliveira Andrade – Pesquisa Fapesp, 25/10/2023 – Orçamento para pesquisas sobre doenças negligenciadas encolhe no Brasil