EDITORIAL: A injustiça social é poderosa, mas não vamos desistir

Renato Janine Ribeiro, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC)

Quando fui Ministro da Educação, por uns breves meses no difícil ano de 2015, percebi algo importante: o Brasil tem um projeto de exclusão social, de injustiça social, que data de mais de 500 anos. Esse projeto foi sendo aprimorado, aperfeiçoado geração após geração. Não foi construído em um único dia; foi realizado ao longo de quase trinta gerações, de meio milênio. É obra dos colonizadores, dos escravagistas, dos exploradores de mão de obra barata – que, não por acaso, também exalam preconceito contra mulheres, negros, indígenas. Esse projeto é muito bem estruturado.

É o que em inglês chamam um success case, só que geralmente essa expressão designa algo a ser imitado, enquanto neste caso, a meu ver, é o que deve ser combatido. O Brasil é um caso de sucesso em injustiça e exclusão sociais, que merece ser estudado justamente para se conhecerem as causas de seu êxito e, por aí, ver como podemos reverter essa situação.

Porque, quando tentamos mudar isso, quando nosso intuito é inverter esse processo e construir um processo de inclusão social, no qual educação, saúde, cultura e meio ambiente estejam alinhados, sempre nos deparamos com algo elaborado, de forma muito meticulosa, para que tal articulação jamais aconteça.

É o que explica que, a cada passo rumo a um País justo, inúmeros problemas se levantem. Hoje, por exemplo, presenciamos uma recusa claríssima a tributar quem pode pagar – os mais ricos – e uma propaganda intensa da mídia e do poder econômico para se cortarem as já insuficientes verbas destinadas aos mais pobres. Os pretextos são apenas isso, pretextos, mas se mostram muito eficientes para impedir que o Brasil seja um país justo e próspero. Veja-se também que basta baixar o desemprego e aumentar a renda dos trabalhadores que já soa o alarme, por parte de quem deseja um País tacanho e mesquinho. No Brasil que eles querem, não cabe o povo brasileiro.

Esse é o ponto. Estamos constantemente enfrentando desafios. Não digo que seja enxugar gelo, mas a batalha pela justiça social exige muito esforço para conquistar sucessivas pequenas vitórias. E, a cada uma dessas vitórias, ressurge todo esse projeto bem-sucedido, tão bem costurado que consegue reverter os avanços que conquistamos ou, pelo menos, impedir as tarefas seguintes. É uma luta longa e que por vezes parece inglória.

Depois de deixar o Ministério, conheci uma frase de um ilustre predecessor meu à sua testa, Darcy Ribeiro, que dizia: “A má qualidade da educação no Brasil não é um problema, é um projeto.” Essa afirmação vai na mesma direção do que eu disse acima, com a diferença de que eu estendia isso ao Brasil como um todo. Darcy, de forma perspicaz, identificou o problema na área da educação, e é claro que ele vale para tudo. Esse projeto muito bem elaborado exige atenção constante e uma luta ininterrupta.

Estas reflexões me vêm à tona ao pensar na atual discussão sobre o possível corte de verbas do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT). Esse corte tem sido propagado como um balão de ensaio por setores da direita, por financistas e pela grande imprensa, embora não tenha sido confirmado pelo governo. Esperamos que seja apenas um alarme falso. Mas o fato é que colocar propostas desse tipo na conta de supostos técnicos da área econômica já é motivo de inquietação. Isso nos faz perceber que, mais uma vez, o projeto anti-Brasil, o projeto anti-povo, que impede o país de cumprir seu ideal e se tornar um lugar bom para a sua população, continua forte. E teremos que lutar para vencê-lo.

Nos últimos poucos dias, a SBPC se manifestou contra o erro que comete a FAPESC, ao se negar sequer a examinar projetos de pesquisa que tratem de questões de gênero em Santa Catarina, contra a anunciada partidarização da presidência da FAPERJ pelo governo fluminense e, agora, se mobiliza em defesa do FNDCT, que segundo a imprensa teria seus valores em risco. Essas três questões, para ficarmos apenas no campo da ciência. Porque, ao mesmo tempo, os setores mais reacionários também querem diminuir – entre outros – o Benefício de Prestação Continuada (BPC), importante medida pública para reduzir a miséria, a pobreza, a fome, bem como várias outras prestações das quais depende a própria vida dos mais pobres.

A injustiça social é poderosa, tem aliados fortes.

Tal situação faz lembrar o que dizia Churchill, ao conclamar seu povo a lutar contra uma possível invasão nazista: “Lutaremos nas praias, lutaremos nas ruas, lutaremos nas montanhas.” Vamos lutar, e sei que venceremos. Quanto tempo vai demorar? Não sei. Mas podemos ter certeza de que, quando vencermos cada uma dessas batalhas, a poderosa Hidra de Lerna ressurgirá, com suas sete cabeças, para nos desafiar e tentar, mais uma vez, impedir que este povo seja próspero e feliz. Mas nós não vamos desistir. E havemos de vencer.