EDITORIAL – Água: o curso da crise

“Estamos perdendo a capacidade de sustentar vidas, de manter ecossistemas e de garantir a segurança hídrica para o futuro. A água, outrora abundante, está se tornando um bem cada vez mais escasso e disputado”, alerta o presidente da SBPC, Renato Janine Ribeiro, em editorial para a seção especial do JC Notícias desta sexta-feira

WhatsApp Image 2024-09-20 at 12.31.05Na última semana, discutimos os incêndios que têm consumido nossa vegetação e devastado o País. Nesta semana, ampliamos o tema para um dos nossos bens mais vitais: a água. E, mais preocupante ainda, a crescente escassez dela. Neste Brasil que abriga dois dos maiores aquíferos do mundo – o Alter do Chão, ao Norte, e o Guarani, do Sul ao Centro-Oeste –, temos mais de 33 milhões de pessoas ainda vivendo sem acesso à água potável.

Em um planeta com mais de 70% da superfície coberta por água, apenas 2,5% dela é doce, própria para consumo humano. E a maior parte dela está inacessível, retida em geleiras ou em aquíferos profundos. E é com essa fração disponível que temos o desafio de abastecer mais de oito bilhões de seres humanos, irrigar plantações e sustentar os diversos ecossistemas dos quais dependemos.

E no Brasil, além das dificuldades de acesso, a comunidade científica vem alertando para um fato ainda mais preocupante: nossa superfície de água vem encolhendo. Dados divulgados em junho pelo MapBiomas Água revelam que, comparada a 1985, a superfície do território brasileiro coberta por água em 2023 sofreu uma redução de 6,3 milhões de hectares – uma queda aterrorizante de mais de 30%. Em 2023, mesmo nos meses de chuva, a área alagada do país diminuiu em 3% – isso significa que perdemos o que equivalente a cinco cidades de São Paulo em volume de água. O Pantanal, parte do grandioso aquífero Guarani, tem sido, proporcionalmente, o bioma mais afetado: desde 1985 já perdeu mais de 60% de sua superfície alagada. O desmatamento no entorno das nascentes, que antes alimentavam vastas áreas com água, é um golpe direto nas veias que irrigam o bioma.

Esse paradoxo nos coloca diante de uma realidade inquietante: vivemos em uma nação rica em água, mas incapaz de protegê-la e distribuí-la de forma equitativa. As mudanças climáticas, que intensificam secas e extremos de temperatura, somadas à expansão descontrolada da fronteira agrícola, colocam nossas reservas hídricas em risco crescente.

As tragédias climáticas deste ano – enchentes no Rio Grande do Sul, seca e queimadas no Centro-Oeste, Sudeste e Norte – são alertas que não podemos mais ignorar. Estamos perdendo a capacidade de sustentar vidas, de manter ecossistemas e de garantir a segurança hídrica para o futuro. A água, outrora abundante, está se tornando um bem cada vez mais escasso e disputado. Estamos nos aproximando de um cenário distópico, semelhante aos retratados em filmes como Mad Max, em que a luta feroz por esse recurso vital se transforma em uma questão de sobrevivência.

Os gregos antigos costumavam dizer que o Egito era uma dádiva do Nilo, referindo-se a um país que, provavelmente, é o Estado mais antigo do mundo ou, ao menos, o mais antigo com documentação material comprovada, datando de 5 mil anos atrás. Poderíamos muito bem pensar o Brasil como uma dádiva de seus aquíferos e bacias hidrográficas, mas, para isso, precisamos cuidar melhor desses recursos. A água é essencial para a vida, e o que dissemos sobre o Brasil vale para o mundo inteiro. A preservação da água e de sua qualidade deve ser uma prioridade absoluta para a humanidade e, consequentemente, deve ser considerada de forma central nas políticas públicas.

Se não tomarmos medidas urgentes para repensar a gestão dos nossos recursos hídricos e proteger as áreas que alimentam nossos rios e aquíferos, essa crise só se aprofundará. O futuro, como sempre, será moldado pelas escolhas que fazemos agora. Precisamos enxergar a água como muito mais que um recurso – mas a verdadeira essência da vida. Sem ela, o que restará de nós?

Renato Janine Ribeiro, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC

 

Veja as notas do Especial da Semana – Água

O Eco, 26/06/2024 – Cobertura de água no Brasil diminuiu 6,3 milhões de hectares nas últimas quatro décadas

DW-Brasil, 26/06/2024 – Brasil está secando, aponta Mapbiomas

DW Brasio, 14/09/2024 – Os impactos esperados da seca prolongada no Brasil

Agência Brasil, 22/03/2024 – Falta de acesso à água potável atinge 33 milhões de pessoas no Brasil

CNN Brasil, 05/06/2024 – Desperdício de água no Brasil poderia abastecer toda população do Rio Grande do Sul, diz estudo

DW-Brasil, 04/09/2024 – Mais de metade da população global sem acesso a água potável

Agroinsight, 19/09/2024 – Água, fogo e cinzas: a urgência da busca pelo equilíbrio

Agência Brasil, 22/03/2024 – Sete em cada 10 brasileiros acham que água é um bem pouco cuidado

DW-Brasil, 07/09/2024 – Iniciativa tenta aliviar escassez de água na América Latina

Outras Palavras, 17/09/2024 – Água: história de uma privatização infame

Folha de S. Paulo, 17/09/2024 – Reservatórios de regularização estocam água quando sobra e usam quando falta

Repórter Brasil, 09/09/2024 – Governo está há quase 2 anos sem monitorar agrotóxicos na água

Outras Palavras, 12/09/2024 – A Era da água escassa chegou

Correio Braziliense, 11/09/2024 – Não há Cerrado sem água

G1, 10/09/2024 – Rio Madeira bate nova mínima histórica e Defesa Civil começa a entregar água para ribeirinhos

Agência Gov, 22/07/2024 – G20 chega a acordo para ações que garantem acesso universal à água

Agência Câmara de Notícias, 10/07/2024 – Projeto inclui reúso da água na Política Nacional de Recursos Hídricos

MDS, 24/06/2024 – Governo Federal sanciona lei que institui Tarifa Social de Água e Esgoto para famílias de baixa renda

Agência Senado, 17/06/2024 – Tarifa Social de Água e Esgoto é sancionada e começa a valer em dezembro

Agência Brasil, 23/06/2024 – UFRJ desenvolve teste rápido para detectar água contaminada

Jornal da USP, 18/03/2024 – A complexa geografia da água no Brasil e no mundo

Le Monde Dipolomatique Brasil, 28/012/2023 – O clima é de colapso hídrico, e a culpa não é só do clima